terça-feira, outubro 30, 2007

O círculo vicioso

Não é fácil inovar quando se trata de apresentar argumentos a favor e contra a realização de referendos. Está quase tudo dito e nada parece restar para além de aplicar os velhos argumentos a cada nova circunstância. Quem queira argumentar pela desejabilidade dos referendos pode começar por assinalar as reduzidas oportunidades que os eleitores têm para dar a conhecer as suas preferências entre eleições nas democracias representativas. Antecipando desde logo possíveis objecções, pode até defender que a falta de interesse e o desconhecimento de muitos eleitores em relação aos temas políticos é compensada pelos próprios referendos, que funcionariam como estímulos ao debate e à circulação de informação. E do lado dos oponentes, a panóplia de argumentos é igualmente conhecida. Os referendos colocam assuntos complexos nas mãos de cidadãos cuja competência para decidir sobre eles é duvidosa, sobretudo quando se trata de tratar através de decisões "sim/não" assuntos que, pela sua natureza, dificilmente se podem esgotar nesta escolha simplista. A consequência disto seria que, muitas vezes, as opções dos eleitores acabam por ser motivadas por factores que nada têm a ver com o que está em jogo. E por detrás destes argumentos abstractos a favor ou contra o referendo podemos encontrar, não raras vezes, outros bem mais instrumentais. O referendo fornece uma derradeira oportunidade para impedir a aprovação de uma decisão previamente tomada. Logo, os defensores dessa decisão serão sempre os principais opositores do referendo e vice-versa, excepto quando o apoio popular previsível à decisão é tão grande que os seus mais sofisticados oponentes preferem privá-la dessa legitimação adicional. Vimos de tudo isto um pouco durante a última semana, e tudo isto regressará sempre que o tema reaparecer na agenda.Este tipo de discussão é potencialmente interessante.

Mas talvez mais interessante seja verificar que, para a população em geral, ela parece já ter sido decidida. Num Eurobarómetro de 1997 que questionava os europeus acerca da conveniência de um recurso mais frequente a referendos, a maior parte dos países apoiava a ideia com maiorias muito expressivas. E Portugal não é excepção, como se confirma uma vez mais através dos resultados de uma sondagem divulgada na passada quinta-feira, onde dois em cada três dos inquiridos com opinião sobre o tema, mesmo com toda a carga favorável associado ao tratado europeu acordado em Lisboa, defendiam a sua submissão a referendo.

É talvez por isto que, pressentindo o generalizado apoio popular à democracia directa, fruto de uma combinação entre a crescente autoconfiança dos cidadãos nas suas próprias competências e a sua crescente desconfiança em relação à política "convencional", os agentes políticos vão declarando episodicamente o seu amor eterno pelos referendos, particularmente quando estão em campanha eleitoral. Contudo, quando saímos dos momentos onde só conta a propaganda, não é invulgar ver-se uma marcha-atrás. "A ratificação pelo Parlamento é tão válida quanto a ratificação por referendo", explicava anteontem o primeiro-ministro do mesmo Governo que, no seu programa, defendia que a "modernização do sistema político" e a "qualificação da democracia" se deveria fazer "através do alargamento do âmbito do referendo nacional", e que o referendo ao Tratado Constitucional era necessário para reforçar a "base" e "legitimação" democráticas do "processo de construção europeia". O padrão, aliás, é particularmente comum no caso português: em face de sintomas de desconfiança dos cidadãos em relação ao sistema, os actores políticos respondem com promessas de reforma institucional e democrática que, mais tarde, arranjam forma de nunca cumprir, alimentando um círculo vicioso de mais desconfiança e renovadas promessas. A crescente competência, informação e sofisticação política dos cidadãos até pode não ser suficiente para tomar decisões sobre matérias tão complexas como um tratado europeu. Mas é suficiente para perceber quando estão a ser enganados, e como a discussão sobre os méritos e deméritos de um referendo europeu é ociosa em face do óbvio ululante: o referendo foi, sem margem para dúvidas, uma promessa eleitoral do actual Governo.

Era bom que se encontrasse alguma forma de quebrar este círculo vicioso. As nossas elites políticas têm provavelmente razões para estarem preocupadas com a desconfiança que hoje inspiram nos cidadãos, assim como com a demagogia, o populismo ou a deslegitimação da democracia representativa que os referendos podem trazer. Mas, se é esse o caso, fariam sempre melhor se evitassem adoptar nas campanhas eleitorais tudo aquilo que agora vêm dizer temer. De resto, nada nos garante que os referendos tenham sempre essas características, ou mesmo que a sua realização não ajude a quebrar este círculo vicioso. Uma das coisas mais curiosas do já mencionado estudo de 1997 é que, entre os cinco países onde o apoio à democracia directa era mais forte - Bélgica, Portugal, Alemanha, Irlanda e Grécia -, quatro deles eram países que nunca tinham tido, à época, referendos nacionais, enquanto a Dinamarca era, compreensivelmente, o país onde o cepticismo em relação à democracia directa era maior. Os eleitores aprendem várias coisas observando o funcionamento do seu sistema político, inclusivamente que os referendos não são a solução mágica para tudo. Mas este círculo vicioso só ensina desconfiança, cepticismo e receio.

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terça-feira, outubro 16, 2007

Populistas e antipopulistas

A vitória de Luís Filipe Menezes nas eleições para a liderança do PSD tem gerado muitos comentários, maioritariamente críticos e receosos, sobre a "ascensão do populismo" que supostamente representa. É como se se tivesse aberto uma nova era na política portuguesa, em suposta ruptura com o passado. Mas não é fácil perceber que espécie de "populismo" é esse que terá agora nascido, nem a que passado glorioso vem agora pôr fim. Será esse passado aquele em que os partidos portugueses eram organizações solidamente estruturadas e ancoradas em bases sociais identificáveis, em vez de concentrarem poderes em "chefes" que dialogam directamente, através dos meios de comunicação social, com "as massas anónimas"? Aquele em que os votantes faziam escolhas eleitorais na base da congruência entre as propostas políticas dos partidos e os seus próprios valores e ideias, em vez se basearem no mero descontentamento em relação ao desempenho recente das lideranças ou nas supostas qualidades pessoais dos candidatos? Talvez seja aquele em que os líderes dos partidos com ambição de chegar ao poder se escusavam a explorar o descontentamento social, abdicando de fazer propostas eleitoralistas, inexequíveis e insustentáveis a longo prazo? Ou será aquele em que a retórica e a acção políticas evitavam colocar em confronto os interesses das "elites", dos "privilegiados" ou das "corporações" contra o "interesse geral" do "povo"?

Deixemos de lado a questão de saber se estes "passados" alguma vez existiram nas democracias ocidentais, particularmente as mais antigas e consolidadas. O certo é que, pelo menos em Portugal, eles são todos virtuais. Os partidos portugueses (à excepção do PCP) foram todos criados num momento de transição de regime, ainda por cima de uma transição que se deu por colapso do regime anterior. Orientaram-se desde o início para a ocupação de cargos políticos e para a disputa do poder nesse novo regime, e não para se estruturarem como organizações ligadas à sociedade e capazes de agregar interesses sociais. Nasceram, ainda por cima, num momento histórico em que, na generalidade das democracias ocidentais, o desenvolvimento dos meios de comunicação social e o recurso a formas de financiamento que iam para além a contribuição dos militantes começavam a mudar a natureza dos partidos, dispensando as formas tradicionais de mobilização e concentrando poder nas lideranças. Têm e sempre tiveram eleitorados fluidos e, em grande medida, socialmente indiferenciados, deslocando sistematicamente o combate político e as escolhas eleitorais do terreno das ideologias e dos programas para o do desempenho governativo e das qualidades dos candidatos, favorecendo um estilo plebiscitário e personalista de actuação política. Num país em que a Constituição foi revista sete vezes em 31 anos, o "respeito pelas instituições" só pode ser, digamos, relativo. E não terão sido a irresponsabilidade e o eleitoralismo fiscais a norma da governação nas últimas três décadas, só se lhes pondo fim, com ajustamentos e custos sociais penosos, quando as ordens - primeiro do FMI, depois da União Europeia - vieram de fora?

Não me parece absolutamente evidente, por isso, a que passado de "responsabilidade" e "institucionalismo" a ascensão de figuras como Santana Lopes, em 2004, ou como Menezes, agora, vieram pôr fim. Há certamente muitas diferenças de estilo entre eles e aqueles que, supostamente, representam as alternativas mais "sérias", dentro e fora do PSD. Mas está por provar que as diferenças sejam de substância. Se o "populismo" for, na sua acepção mais simples, um método político através do qual a maximização dos votos e a busca do apoio do "povo" contra as "elites" se sobrepõe à exequibilidade das políticas e à representação de interesses sociais, as diferenças parecem-me, confesso, ser mais de grau e de circunstâncias do que, verdadeiramente, de espécie. Menezes e os seus predecessores e concorrentes são criaturas de um mesmo sistema político, não tão favorável ao populismo como aqueles que se encontram ainda na América Latina ou na Europa de Leste, mas não tão longe desses casos como se imaginaria.

Mas suponhamos, por um momento, que a nova liderança do PSD representa de facto um fenómeno verdadeiramente novo e nocivo no sistema político português. Como lhe responder? Há maneiras e maneiras. Anteontem, Manuela Ferreira Leite, dirigindo-se ao congresso do PSD, explicava por que razão os temas da regionalização e do referendo europeu não deveriam fazer parte da agenda do partido no futuro próximo. Quanto ao primeiro, cito de memória, isso corresponderia a "servir de lebre ao PS" e a perder uma bandeira (a da oposição à regionalização) que tinha dado sucessos políticos e eleitorais ao partido no passado. Quanto ao referendo europeu, ele seria de evitar porque obrigaria a fazer campanha com o PS sobre um tema no qual os dois partidos estão de acordo, desfavorecendo, mais uma vez, a possibilidade de o segundo se diferenciar do primeiro. Sobre se a regionalização, o tratado europeu ou a sua submissão a referendo são "bons" ou "maus" em si mesmos, não recordo uma palavra. Assim, os eleitores que tenham ouvido Manuela Ferreira Leite só podem chegar a duas conclusões. A primeira é que a entrada ou saída dos temas da agenda não tem, pelos vistos, rigorosamente nada a ver com a sua substância, mas sim com a maneira ela como pode afectar o "jogo" político e as perspectivas eleitorais do partido. A segunda é que os "antipopulistas" não têm apenas receio das lideranças "populistas": aquilo de que eles têm mais receio é, afinal, dos eleitores. É desta maneira de lidar com o populismo que, receio, o populismo melhor se poderá alimentar.

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terça-feira, outubro 02, 2007

Quatro ideias simples sobre as directas no PSD

1. A vitória de Menezes não foi uma surpresa. Nas sondagens, enquanto José Sócrates perdia popularidade desde Março deste ano, Marques Mendes conseguia o feito notável de perder ainda mais do que Sócrates. À beira das directas, Luís Filipe Menezes era visto como mais apto para liderar o partido quer pelos eleitores em geral, quer pelos eleitores do PSD. Sobre este último ponto havia, claro, uma subtileza a tomar em conta: entre os "actuais" eleitores do PSD, Marques Mendes parecia liderar. Mas era precisamente a sua maior simpatia por Mendes que fazia deles eleitores "actuais". Já entre os "simpatizantes" ou mesmo "votantes do PSD em 2005", definições muito mais fiáveis da base eleitoral do partido, Menezes dominava confortavelmente.

Isto é importante porque ajuda a explicar uma das consequências que tendem a resultar das eleições directas dos líderes partidários: a sintonia entre as lideranças e a base eleitoral dos partidos e eliminação precoce de líderes eleitoralmente inviáveis. Digo "tendem", porque nem sempre é assim. Nas famosas directas de 1998 para a liderança do PSOE, a surpreendente vitória de Josep Borrell sobre Joaquin Almunia colocou no poder uma figura desejada apenas pelos militantes situados à esquerda quer dos quadros dirigentes, quer das bases eleitorais do partido. Contudo, em partidos como o PSD, onde a ideologia conta para pouco, não há grandes diferenças entre os militantes e base eleitoral mais alargada.

2. A culpa do que se passou não é das directas. Há sempre quem ache que são elas as culpadas de que o debate político se centre nos atributos dos líderes e não em programas políticos. Ou de que se beneficiem figuras que recorrem directamente aos media e aos apelos directos à opinião pública, em vez de adquirirem capital político em percursos tradicionais no Parlamento ou no governo. O resultado é, ao que parece, o "populismo". Mas quem critica tudo isto, de que julga que se faz, nas democracias modernas, a política eleitoral? E quem poderia achar que o PSD é, neste momento, outra coisa que não aquilo que se viu? As directas trazem para dentro dos partidos o que está lá fora e revelam para fora aquilo de que eles são realmente feitos. A primeira função é útil para o partido. A segunda é instrutiva para todos nós.

3. O resultado ilustra a crescente importância do poder local na política nacional. Há uns meses, a propósito do fenómeno dos "candidatos independentes", mencionei aqui que uma das características emergentes em muitos partidos contemporâneos é a sua transformação em "estratarquias", onde cada nível da organização partidária - nacional, regional, local - é relativamente autónomo em relação aos restantes, dispondo de mãos livres para gerir a distribuição de lugares políticos no nível respectivo. Por outras palavras, à medida que a descentralização política cria subsistemas com algum grau de autonomia e que a coesão ideológica e programática perde importância, a solução que os partidos encontram para não se dilacerarem internamente é a acomodação mútua, uma espécie de laissez-faire intrapartidário: vocês gerem os vossos assuntos aí na capital, e deixam-nos gerir os nossos. Marques Mendes quis remar contra esta maré, e a maré passou-lhe por cima.

De resto, o resultado destas directas no PSD chama claramente a atenção para outra das consequências da eleição directa das lideranças partidárias. Nos Estados Unidos, a generalização das primárias - fenómeno que só acelerou decisivamente no início dos anos 70 -produziu uma mudança no perfil dos candidatos presidenciais: um aumento dos ex-governadores estaduais em desfavor dos detentores de cargos públicos a nível federal. Das 14 candidaturas presidenciais dos partidos democrata e republicano desde 1980, oito foram de ex-governadores, e só em 1988 uma destas candidaturas perdeu uma eleição presidencial. A vitória de Borrell em 1998 pode ser vista pelo mesmo prisma: o da ascendência, através das directas, de figuras que retiram parte do seu capital político da ligação sólida a interesses e bases eleitorais subnacionais, em vez de o retirarem exclusivamente de uma carreira política nacional no topo da hierarquia partidária. Menezes já pode ser contado como um exemplo adicional deste mesmo fenómeno.

4. O resultado não é um desastre para o PSD. Há quem preveja um futuro de divisionismo, o abandono das "elites" do partido e a queda no abismo. Calma. Em primeiro lugar, convém recordar que, em rigor, foi Marques Mendes quem foi abandonado pelas "elites" no meio do seu labirinto lisboeta, quem sabe se por alguns daqueles que agora vêm profetizar a "desgraça". Em segundo lugar, voltemos ao caso das directas do PSOE: é certo que, na altura, dividiram o partido, mas isso não chegou para pôr em risco a sua coesão. De resto, foi com o abalo causado pelas directas de 1998 que o PSOE começou a sair da passividade e da sombra do "filipismo". E recordemos, já agora, o que passou de seguida. No ano seguinte, Borrell já tinha abandonado a liderança após acusações de corrupção. Em 2000, os restos do "filipismo" eram cilindrados eleitoralmente pelo PP - para que, finalmente, em 2004, o PSOE já estivesse pronto para triunfar e governar. Se quisermos ser realistas, toda a gente sabe que as próximas legislativas, para o PSD, seriam sempre, em princípio, para perder. E o que preferiam essas tais "elites" do PSD? Que seja Menezes o derrotado em 2009, ou que fosse Menezes a aparecer como líder após essa derrota? Se pensarem bem, verão que a coisa não correu tão mal como isso.

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