terça-feira, abril 17, 2007

Esquizofrenia política

Daqui a menos de uma semana, os franceses vão dar o primeiro passo na escolha do seu novo presidente. Nicolas Sarkozy, candidato da União para Um Movimento Popular - a enésima reencarnação da principal máquina eleitoral destinada a apoiar candidatos e presidentes da direita francesa -, está desde Janeiro claramente à frente nas intenções de voto, se bem que este "claramente à frente" não signifique mais do que 30 por cento. Ségolène Royal, candidata do Partido Socialista, vem lentamente perdendo fôlego desde essa altura, andando por estes dias à volta dos 25 por cento das intenções de voto. Já o caso de Le Pen parece resolvido. O eterno candidato da Frente Nacional está, na média das últimas sondagens conduzidas, a nove pontos de Royal, pelo que uma repetição do que sucedeu em 2002, quando acabou por passar à segunda volta com um resultado três pontos percentuais acima do que as últimas sondagens lhe concediam, é implausível. As inquietações gerais suscitadas por tudo o que vem da política francesa podem, por este lado, ser aplacadas.

Isto não impede, contudo, que se possam hoje detectar sintomas de crise algo mais subtis do que a passagem de Le Pen à segunda volta em 2002. Um interessante trabalho do instituto de sondagens BVA, divulgado há algumas semanas, comparava os temas que os eleitores franceses consideravam ser mais importantes quando se trata de decidir o seu voto com os temas que esses mesmos eleitores achavam que estavam a receber maior destaque na campanha. Nos primeiros lugares dos temas importantes para os eleitores surgiam, bem à frente, a pobreza, o desemprego e a diminuição do poder de compra. Noutro estudo, o do Barómetro Político Francês do Cevipof, mais de dois em cada três franceses declaravam-se muito inquietos sobre o futuro da segurança social, pessimistas sobre a situação económica francesa nos próximos seis meses e em risco pessoal de se encontrarem no desemprego num futuro próximo. Contudo, questionados sobre os temas que acham que estão a ser mais destacados pelos candidatos, os franceses apontam a insegurança e a imigração. Pudera. Enquanto Sarkozy, com o seu já vasto currículo nestas matérias, propõe a criação de um "Ministério da Imigração e da Identidade Nacional", Ségolène vem apelar, por exemplo, à memorização da letra da Marselhesa, à disponibilização de bandeiras nas escolas para exibir no Dia da Bastilha ou à militarização dos centros de detenção de menores.

Encontra-se assim instalado um curioso ambiente de esquizofrenia política, que vai, a pouco e pouco, produzindo as suas consequências. Mais de 60 por cento dos franceses respondem, por exemplo, que "não têm confiança nem na esquerda nem na direita para governar", 15 pontos acima dos que defendiam a mesma ideia há dez anos atrás. Questionados sobre se "o resultado das eleições presidenciais permitirá melhorar as coisas em França", mais de metade responde pela negativa. Instados a pronunciarem-se sobre qual dos dois principais candidatos melhor "encarna a mudança", a maioria acaba por responder, supõe-se que através de algo semelhante ao método da moeda ao ar, Sarkozy, que, caso ninguém tenha reparado, é o candidato do partido do poder. E é também com a ajuda deste ambiente que se vem afirmando François Bayrou, o candidato dessa peculiar mistura entre democratas-cristãos, liberais e federalistas europeus originalmente congeminada para manter Giscard d"Estaing no poder. Bayrou está hoje em terceiro lugar nas sondagens, com cerca de 20 por cento das intenções de voto, muito acima do potencial eleitoral do seu próprio partido. E aparece em todos os estudos como favorito num cenário de segunda volta, quer contra Ségolène quer contra Sarkozy. É hoje, inclusivamente, tão popular junto dos eleitores de esquerda como dos de direita, aproximando-se, nos primeiros, dos valores da própria Ségolène Royal.

É certo que parte da popularidade de Bayrou decorre da sua capacidade para cavalgar - de forma nem sempre isenta de demagogia e populismo - a insatisfação dos franceses com a sua classe política, infestando o seu programa político com propostas de reformas institucionais cuja exequibilidade saberá certamente ser nula. E é também certo que o voto em Bayrou labora num equívoco, o de se pensar que um presidente de um partido como a UDF poderia alguma vez formar uma coligação de apoio parlamentar que lhe permitisse levar a cabo a maior parte das suas promessas. Mas estes elementos de vacuidade ou de ilusão política não são necessariamente piores do que os que caracterizam a candidatura de Ségolène, que, assombrada pela derrota de Jospin em 2002, já prometeu tudo a todos na esquerda enquanto vai ocasionalmente piscando o olho aos instintos mais conservadores da direita. Bayrou, pelo contrário, fez aquilo que muitos partidos sociais-democratas europeus já fizeram, mas de que o PS francês parece incapaz: detectar, num segmento cada vez maior do eleitorado da esquerda, a disponibilidade para aceitar a estabilidade orçamental e o crescimento económico como condições prévias e necessárias para a sobrevivência de uma qualquer forma de Estado social. Compreender que aqueles que defendem as funções sociais do Estado - a esmagadora maioria dos eleitores franceses e das democracias europeias em geral - precisam de ouvir qualquer coisa de vagamente realista que aplaque a sua inquietação sobre a sobrevivência desse Estado. Como podemos avaliar pelo caso Blair, que sairá em breve pela porta baixa, a "terceira via" tem, claro, muito que se lhe diga. Mas vejamos: qual é a alternativa? Pelo vistos, é Sarkozy.

terça-feira, abril 03, 2007

Pequenos portugueses

Na semana passada falou-se muito sobre os resultados do concurso “Grandes Portugueses”, promovido pela RTP à imagem de iniciativas semelhantes noutros países. O que mais intriga, contudo, não são os resultados das votações, de resto inúteis para qualquer fim analítico. O interessante é o que se disse sobre eles, e é sobre esse discurso que vale a pena meditar.

Sei que o que se segue vai parecer sobranceiro, mas a primeira coisa que impressiona no que se disse e escreveu é a quase completa impermeabilidade do “senso comum” veiculado por muita da intelectualidade nacional aos mais elementares rudimentos da cultura científica. Vários artigos escritos sobre o tema ainda começavam com um breve intróito sobre a “falta de representatividade da amostra” que produziu os resultados do concurso. Mas logo de seguida, em imediata auto-negação, passavam ao diagnóstico daquilo que os resultados queriam “realmente” dizer, desde a preferência autóctone por líderes “fortes” e “autoritários” ao desconhecimento generalizado da História de Portugal, passando pela persistência do “mito” salazarista ou pelo “voto de protesto” contra o “estado das coisas”. Um pouco como começar por dizer que não se deve acreditar na astrologia para de seguida se abordar, com toda a seriedade, algumas das consequências relevantes do ascendente em Escorpião. O facto de não se dispor de qualquer elemento que permita aferir se o “call in”, tal como foi feito, nos diz “realmente” alguma coisa sobre seja o que for, é algo que parece ter passado ao lado de muitos observadores.

A culpa, contudo, não será toda deles. Quando, no Reino Unido, o Great Britons é encarado como uma brincadeira nacional, ao passo que em Portugal é visto por gente séria como dizendo algo de fundamental sobre o país, é porque haverá qualquer coisa errada na maneira como os cientistas sociais portugueses se têm inserido no espaço público. O padrão, de resto, faz lembrar o que sucede em França, onde todos os anos se multiplicam os sucessos editoriais de luminárias - e já tivemos um ou dois desses em Portugal - que descrevem o “pulsar da alma nacional” recorrendo para tal, exclusivamente, ao “pulsar” das suas próprias almas. Uma cultura de análise política ideológica e anti-empírica, onde se supõe que a qualidade e erudição da escrita dispensam o aborrecimento de prestar uma vaga atenção à realidade. Onde a reticência daqueles que estão na academia em saírem uma vez por outra dos seus gabinetes permite que os discursos sobre a sociedade e a política sejam dominados pela especulação pura e simples. E onde a hierarquização e o paroquialismo na própria academia produzem atitudes de acomodação e “respeitinho” em relação a coisas que, em rigor, não as merecem.

Contudo, o mais interessante de tudo é a visão da sociedade portuguesa que transparece dos comentários feitos na última semana. É uma visão céptica e inquieta sobre a consolidação da democracia portuguesa, em particular sobre as “qualificações democráticas” dos cidadãos. De nada serve que quase vinte anos de investigação sobre as atitudes políticas dos portugueses revele que, pelo menos desde finais dos anos 80, não existe em Portugal qualquer clivagem cultural em torno do regime. Que a opção dos portugueses pela democracia, mais do que “vazia” ou de “conveniência”, decorra de preferências e rejeições de formas concretas como a nossa sociedade política deve ser organizada. Preferências pela existência de eleições livres e regulares, pela liberdade para criticar o poder e pela possibilidade de participar politicamente. E rejeições do recurso a “líderes fortes” que nos “livrem de parlamentos e eleições” ou a “ditaduras de emergência”. Estas atitudes são tanto mais prevalecentes quanto mais jovens são os eleitores, sendo que a geração nascida após o 25 de Abril é também a que tem hoje uma imagem mais negativa do Estado Novo, apesar dessa imagem negativa se predominante, de resto, entre os cidadãos com menos de 70 anos. Contudo, um concurso onde Salazar e Cunhal aparecem à frente dumas votações por telefone são suficientes para que nada disto tenha qualquer importância.

E por que será? Em parte, já respondi, mas talvez haja mais qualquer coisa. Não deixa de ser curioso que uma parcela substancial das nossas elites intelectuais esteja disposta a tomar como bom ponto de partida para a reflexão tudo aquilo que confirme a ideia de que os portugueses são desinformados, medrosos, intolerantes, incultos, infantis ou autoritários. Insatisfeitos com a democracia, dispostos a voltar ao passado ou, pelo menos, vulneráveis aos populismos. Deve ser também por isso que um cartaz vagamente cómico colocado no Marquês de Pombal dá direito a notícias de abertura em espaços noticiosos e gera declarações de ministros, parlamentares e procuradores. Semelhante paternalismo, mesmo que iliberal no que toca ao direito de exprimir opiniões (por imbecis ou abjectas que sejam), até pode ser bem intencionado. Mas já agora, se me permitem a pergunta: quando as elites intelectuais de um país acham que o povo desse país é, no fundo, um bocado estúpido, até que ponto podem elas próprias ser, digamos, sinceramente democráticas?