terça-feira, novembro 25, 2008

Os custos da democracia

Segundo o PSD, as declarações de Manuela Ferreira Leite da semana passada - onde defendia a suspensão da democracia durante seis meses para "pôr tudo na ordem" e fazer as reformas necessárias - foram uma ironia dirigida contra o actual Governo. Logo, a questão que vale a pena discutir não é tanto sobre Manuela Ferreira Leite. É sobre nós. Se a ironia era o efeito desejado, por que razão falhou tão completamente? A ironia exige uma contradição entre aquilo que se diz e aquilo que de facto se quer transmitir. Mas para que essa contradição seja evidente para todos, o que é dito tem de ser obviamente deslocado e inaplicável. Mas, pelos vistos, para quem ouviu, nem tanto. A ideia de que a realização das reformas do país só seria possível com a suspensão da democracia pareceu algo que valia a pena debater ou contestar, e não como algo totalmente absurdo ou até vagamente cómico. E isso é que é verdadeiramente interessante.

Esta nossa reacção não significa que sobrevivam em Portugal resquícios significativos de apoio ao autoritarismo. Todos os estudos sobre a opinião pública portuguesa realizados desde meados dos anos 80 mostram que a esmagadora maioria dos cidadãos defende a superioridade da democracia em relação a qualquer das alternativas. Mas parece haver outro tipo de ideias que, após mais de uma década de estagnação económica, começam a ganhar - ou a recuperar - alguma credibilidade em Portugal. Já todos as ouvimos dezenas de vezes. Que a democracia impele os Governos a abandonar objectivos de longo prazo, fazendo com que manipulem a economia para fins eleitoralistas, abdiquem de fazer reformas necessárias e adoptem políticas que acabam por ser inimigas do crescimento económico. Que a democracia impede os Governos de controlar e confrontar os apetites dos grupos de interesses, que passam assim a poder impedir a adopção de políticas que aumentem o bem-estar geral. E, fechando o círculo, a ideia de que são os próprios eleitores, desinformados sobre a realidade e interessados unicamente no que se passa com a sua carteira, que acabam, na sua miopia, por obrigar os Governos a políticas disfuncionais e eleitoralistas. Há até quem recorde os anos áureos do crescimento económico em Portugal - os anos 60 - para mostrar, de forma irrefutável, como o autoritarismo produz, apesar de tudo, melhores resultados económicos. Acreditar nestas ideias não significa, repete-se, que se seja contra a democracia. Mas significa que se acredita que a liberdade e a igualdade políticas vêm acompanhadas de uma importante factura no que respeita à governabilidade e à prosperidade.

Sucede que todas estas crenças assentam em fundações teóricas e empíricas muito débeis. Olhemos, por exemplo, para a questão do crescimento económico. Num artigo publicado este ano no American Journal of Political Science, os economistas Hristos Doucouliagos e Mehmet Ulubasoglu passam em revista 84 estudos diferentes realizados nos últimos 30 anos sobre a relação entre o tipo de regime político e o crescimento económico. A conclusão mais sólida que se pode tirar deste conjunto de estudos é muito simples: não há qualquer relação directa entre o tipo de regime político e o crescimento económico. É certo que a democracia parece produzir vários efeitos indirectos sobre o crescimento, positivos nuns casos (ao aumentar a acumulação de capital humano, por exemplo) e negativos noutros (ao causar um maior peso do Estado, por exemplo). Mas o efeito final parece ser nulo. Por outras palavras, a ideia de que, ao optarmos pela democracia, estamos também a abdicar de regimes que poderiam produzir maior crescimento não tem, pura e simplesmente, qualquer fundamento na base dos dados disponíveis.

A segunda noção - de que as democracias são presas mais fáceis dos interesses particularistas do que as ditaduras - é igualmente problemática. Ela esquece que, nas ditaduras, o interesse mais particularista de todos e que tem ao mesmo tempo maiores probabilidades de vingar sem qualquer controlo é, claro, o do próprio ditador. Nada substitui a democracia como método de controlo desse potencial predador em que qualquer governante se pode transformar. É certo que a aparente cedência do Governo em face dos professores não deixará de ser apontada como exemplo recente das dificuldades dos governos democráticos em face de certos grupos organizados. Mas não creio que tenhamos saído deste processo tão mal como se julga. Precisamente por haver democracia e eleições, o Governo teve incentivos para mobilizar a maioria dos eleitores contra certos interesses organizados. O resultado é que, apesar de tudo, a consciência da insustentável preponderância que os sindicatos chegaram a ter na política educativa e dos privilégios concedidos a alguns segmentos da classe nunca foi tão grande como é hoje, e fornece uma base para quaisquer futuras reformas. E foi também precisamente por haver democracia que a mobilização dos sindicatos e o eco que teve na opinião pública impediu a adopção de um processo de avaliação manifestamente absurdo. Tudo podia ter sido feito melhor? Sem dúvida alguma. Ficámos pior do que estávamos no início? Não creio.

Finalmente, temos os eleitores, esses egoístas e manipuláveis míopes que impelem os Governos à adopção de políticas eleitoralistas e insensatas, voltadas para o curto prazo. Mas a verdade é que muito do que sabemos sobre os eleitores contraria em grande medida esta imagem. Por exemplo, os eleitores parecem ser muito mais atreitos a castigar ou recompensar Governos na base da percepção da situação do país como um todo e em reacção a indicadores objectivos do que na base da sua própria situação financeira pessoal. Para alegados egoístas, não deixa de ser curioso. Também não são tão influenciáveis e inconstantes como se pensa. A maioria, de resto, vota no mesmo partido (ou abstém-se) eleição após eleição, e a maior parte das mudanças que observamos nos resultados eleitorais decorrem de passagens do voto à abstenção (e vice-versa) e só raramente de mudanças de partido. E importa não esquecer que, há cerca de quatro anos, os eleitores portugueses saudaram com alívio a demissão de um Governo que poucos dias antes lhes tinha prometido, para o orçamento do ano seguinte, nada mais e nada menos do que aumentar as pensões e diminuir os impostos. Os eleitores não são tolos, mesmo que por vezes os eleitos pareçam julgar que sim. Devíamos ter mais fé neles e na democracia.

terça-feira, novembro 11, 2008

As diferenças

De todas as coisas que se disseram e escreveram em Portugal sobre as eleições americanas e as suas possíveis consequências, uma das mais intrigantes foi a ideia de que a identidade do vencedor não faria grande diferença, nem de um candidato para outro, nem em relação ao passado recente. Os argumentos utilizados variaram em grau de sofisticação e de aderência à realidade. Por exemplo, há quem insista ainda na ideia de que o discurso dos candidatos - especialmente o do que acabou por vencer - era "retórico", "vazio" ou "vago". Não estou indisponível para tentar compreender este argumento, mas não imagino, especialmente em comparação com os programas partidários portugueses, como isso me será possível. Lendo Blueprint for Change, o livrinho de 43 páginas onde o candidato democrata descrevia as suas propostas, encontramos promessas como "eliminar impostos sobre os rendimentos a todos os idosos que ganham menos de 50.000 dólares por ano", "exigir que os empregadores paguem sete dias de baixa aos seus empregados", "alargar o pagamento de subsídio de desemprego em 12 semanas" ou "aumentar o salário mínimo para 9,5 dólares por hora e indexá-lo à inflação". São apenas quatro exemplos de dezenas de medidas com objectivos quantificados, inequívocos e com relevância directa para temas politicamente salientes no contexto americano. Sensatos? Realizáveis? Cá estaremos para ver e discutir. Mas quem acha que coisas como estas são "vazias" ou "retóricas" mostra estar demasiado intoxicado pelas suas próprias preferências políticas para que possamos ter grandes esperanças quando ao seu "distanciamento" e "objectividade", quando se voltar a pronunciar sobre o assunto.

Há, contudo, um argumento potencialmente mais sofisticado por detrás da ideia de que o resultado desta eleição pode não fazer grande diferença: o de que, em face dos constrangimentos colocados pelo sistema político americano - um sistema federal, separando poderes executivo e legislativo e com partidos "indisciplinados" - a capacidade que os presidentes têm para "cumprir promessas" e alterar fundamentalmente o statu quo nas políticas públicas é muito limitada. Este problema colocar-se-ia de forma ainda mais clara no que diz respeito às políticas económicas, afectadas por constrangimentos ligados às situações económicas doméstica e internacional, os incentivos de curto prazo colocados por eleições regulares e pela forma como os agentes económicos se antecipam e reagem às mudanças anunciadas, neutralizando muitos dos seus efeitos desejados. Deste ponto de vista, governos "de esquerda" ou de "direita", os laços que cultivam com diferentes coligações de grupos sociais e as suas reputações por adoptarem políticas que favorecem ou desfavorecem esses grupos (as suas "ideologias") acabariam por não fazer grandes diferenças nas políticas que adoptam e muito menos nas suas consequências reais.

O principal problema com este argumento consiste no facto de ele não ser apoiado pela história e pelos números. Num capítulo do Oxford Handbook of Political Economy, Robert Franzese e Karen Long Jukso analisam a vasta literatura na Ciência Política e na Economia sobre a teoria dos "ciclos partidários" iniciada por Douglas Hibbs, ou seja, a noção de que a ideologia dos partidos no poder afecta as políticas que adoptam e os resultados da economia, produzindo, nomeadamente, maior inflação sob governos de esquerda e maior desemprego sob governos de direita. Em geral, especialmente nos estudos conduzidos desde os anos 70 nas democracias industrializadas - incluindo dados de períodos mais recentes e metodologias mais sofisticadas uma maioria significativa das investigações existentes conclui de facto pela existência desses efeitos, especialmente no que respeita a maiores despesas e receitas do Estado, crescimento do emprego e de políticas sociais sob governos de esquerda. E, curiosamente, a hipótese que tem menos apoio empírico é ao mesmo tempo a mais ingénua e a mais agitada na luta política: não parece haver qualquer relação entre a composição dos governos e o equilíbrio orçamental. A produção de défices é tão frequente sob governos de direita como sob governos de esquerda nas democracias industrializadas.

Os Estados Unidos não são excepção a estes padrões. Poderá ser também ingénuo e até algo manipulativo comparar o desempenho económico americano sob governos democratas e republicanos desde o pós-guerra e constatar que, sob os primeiros, o crescimento da economia foi três vezes superior ao verificado sob os segundos. Há muitos factores para além do controlo partidário do executivo que podem justificar esta discrepância. Mas os efeitos propriamente distributivos do controlo da presidência por um outro partido são, esses sim, claríssimos. Como mostra um estudo de 2004 do politólogo Larry Bartels, um efeito recorrente e sistemático da estadia de presidentes republicanos na Casa Branca é que, durante esses períodos, o rendimento das famílias cresceu tanto mais quanto mais elevado ele já era, com os 20 por cento mais pobres a serem os menos beneficiados e os rendimentos dos 5 por cento mais ricos a serem os que mais crescem. Pelo contrário, sob presidentes democratas, o padrão é muito mais equilibrado e, curiosamente, em comparação com presidentes republicanos, de crescimento superior para todos os escalões de rendimento, com a única excepção dos 5 por cento mais ricos. Bartels mostra que a grande responsabilidade por esta variação não está sequer em políticas fiscais mais ou menos redistributivas, mas sim em políticas que promovem o crescimento do emprego. Até aos anos 70 - como Hibbs já mostrava - mas também depois disso, a preocupação dos governos democratas com a diminuição do desemprego em desfavor do controlo da inflação teve como sistemática consequência o aumento do rendimento disponível para os sectores mais desfavorecidos.

Nos próximos meses, Barack Obama terá de tomar muitas decisões, tais como a de saber quais serão os 7000 funcionários que nomeará, que novos juízes indicará para os tribunais federais (incluindo o Supremo Tribunal) ou o que fará com Guantánamo. Estaremos cá para testar a mais do que implausível hipótese de que isto seja tudo irrelevante. Mas o que a história também diz é que, mesmo nos domínios onde é mais difícil um presidente democrata fazer diferença, ela existe e é de enormes consequências. Por que razão deveria ser diferente desta vez?