quinta-feira, maio 31, 2007

Recuperação: A partidarização do Tribunal Constitucional

A propósito deste artigo de Pedro Lomba (de que só não subscrevo a primeira parte do último parágrafo), mencionado aqui, recupero um texto que escrevi há quase cinco anos (27 de Junho de 2002), publicado no Público. Não lhe retiraria hoje uma vírgula (o que é raro). Talvez aproveitasse, por estes dias, para fazer umas considerações adicionais sobre o STJ, os seus juízes e a sua jurisprudência. E isso não me impede de reconhecer que a saída de Rui Pereira é um sintoma de insuficiente prestígio da instituição em comparação com instituições congéneres.

A decisão do Tribunal Constitucional (TC) que se pronunciou pela inconstitucionalidade das alterações à Lei da Televisão ressuscitou o debate acerca da designação dos seus juízes.

A primeira linha de argumentação crítica consiste em contestar a própria existência da instituição, defendendo-se que seja substituída, por exemplo, pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Na verdade, há democracias onde a fiscalização da constitucionalidade das leis, quando existe, é concedida exclusivamente aos tribunais comuns. Contudo, importa notar que esses supremos tribunais se parecem muito pouco com os nossos, sendo, em regra, escolhidos por órgãos políticos (tal como sucede com o Supremo Tribunal nos Estados Unidos). Logo, transferir os actuais poderes do TC para o STJ colocar-nos-ia numa posição absolutamente singular no panorama internacional. Ser-se original não é pecado. Mas cabe aos proponentes dessa ideia explicar por que razão deverá o enorme poder de contrariar a vontade das maiorias parlamentares ser concedido a juízes politicamente irresponsáveis e cujos méritos técnico-jurídicos nestas matérias estão longe de se poderem dar como adquiridos. Afinal, a opacidade do funcionamento interno do poder judicial em Portugal, a negligente aplicação de critérios de mérito na progressão na carreira e o permanente impedimento à entrada de não-juízes nos tribunais superiores são as melhores razões para que, ao contrário de José Marques Vidal, não possamos ver o Tribunal Constitucional como "um luxo desnecessário".

Muito mais interessante é o debate acerca das modalidades de designação dos juízes do TC e das suas consequências. Para Manuel Villaverde Cabral (MVC), a eleição parlamentar dos juízes e a actuação dos agentes políticos transformou o TC numa mera "emanação do sistema partidário", que produz "decisões puramente partidárias", vistas como tal por cidadãos que, na sua maioria, pouca ou nenhuma confiança depositam nos tribunais. Até Mário Mesquita, que no fundamental discorda de MVC, entende que "a composição do TC não deveria ser exclusivamente ditada pela Assembleia".

Concentremo-nos nos factos. Primeiro, em todas as dezassete democracias do Conselho da Europa onde existem tribunais constitucionais, os parlamentos (ou seja, os partidos) intervêm sempre, em maior ou menor grau, na eleição dos juízes. Segundo, a intervenção de outras entidades neste domínio não garante a "despartidarização" dos juízes. Os membros do Conselho Constitucional francês designados pelo Presidente não são menos "partidários" que os restantes, e este poder de escolher de forma incondicionada uma "quota" de juízes tem resultado inclusivamente na selecção de ex-ministros ou deputados, política e pessoalmente fiéis a quem o nomeou. E os casos espanhol e italiano mostram como a lógica partidária penetra mesmo as instituições julgadas "impolutas": os juízes destes TC's designados pelos conselhos das magistraturas são facilmente enquadráveis em facções "progressistas" ou "conservadoras" do poder judicial, todas elas com fortes laços a partidos políticos. Em resumo, em menor ou maior grau, a "partidarização" na selecção dos juízes é comum a todos - repito, todos - os tribunais constitucionais nas democracias ocidentais.

Resta assim perguntar se as coisas poderiam ou deveriam ser doutra maneira. Para quem ache que a aplicação das leis constitucionais pode alguma vez ser uma actividade "apolítica", ou que os juízes de carreira são menos "políticos" que os outros, haverá sempre outras soluções. Infelizmente, ambas as pressuposições são totalmente irrealistas. Para os restantes, há duas maneiras de responder à questão colocada. Por um lado, os estudos existentes demonstram que, na fiscalização preventiva, há de facto uma tendência para que os juízes do TC votem pela inconstitucionalidade de diplomas que tiveram no parlamento a oposição dos partidos que "indicaram" os seus nomes. Contudo, estes estudos não provam que isso suceda noutras modalidades de fiscalização da constitucionalidade (abstracta sucessiva ou concreta). Mais: se os partidos votam as leis no parlamento de acordo com as suas preferências ideológicas e propõem juízes que esperam estarem próximos dessas preferências, porque haveriam estes, em matérias que frequentemente apelam à sua interpretação do direito constitucional, de votar de uma forma politicamente aleatória? Assim, nada disto permite concluir que o que se passa na fiscalização preventiva decorra de um voto de pura "disciplina partidária".

A segunda resposta é muito mais simples: nada disto importa, mas sim as decisões do TC como um todo. E desse ponto de vista, receio que sejam infrutíferas as tentativas para encontrar nos últimos vinte anos uma tendência de favorecimento sistemático de uma qualquer força partidária por parte do TC. Esse é, aliás, um resultado directo da elegância da solução engendrada em 1982. É certo a designação por dois terços do parlamento de dez juízes e cooptação dos restantes três foi muito ditada por preocupações estritamente político-partidárias, tais como reduzir a capacidade de intervenção de Ramalho Eanes. É também verdade que, ao longo da história do TC, houve dificuldades e atrasos nalgumas nomeações e escolhas porventura menos felizes, e que a modalidade inicial (alterada na revisão de 1997) de mandatos curtos e renováveis não favoreceu uma imagem de autonomia em relação aos partidos.

Contudo, importa não ignorar as virtudes da solução. A eleição por maioria qualificada tem favorecido o equilíbrio no TC entre um pensamento constitucional "de esquerda" e "de direita", e facilitado que até os pequenos partidos - incluindo o CDS e o PCP - se vejam representados no Tribunal e lhe reconheçam legitimidade (basta ir a Espanha para ver que isto não é um problema menor). E ao contrário do que sugere MVC, não parece que a solução tenha tido especiais custos em termos da adesão dos cidadãos à instituição. Afinal, como demonstra um estudo publicado na American Political Science Review em 1998, os tribunais constitucionais da Alemanha, Polónia e Portugal - precisamente os três onde não há intervenção do Presidente, do Governo, ou dos conselhos das magistraturas na designação dos juízes - são aqueles que, na Europa, maior apoio recebem por parte dos cidadãos. Em Portugal, e como mostram três estudos realizados em três anos consecutivos pela Universidade Católica, o TC é objecto de menor desconfiança por parte dos cidadãos do que o STJ e, já agora, do que o parlamento ou o governo. Coincidências? Não creio.

terça-feira, maio 29, 2007

O PS agradece

Em Outubro de 2005, o PS sofria uma primeira derrota desde a maioria absoluta histórica obtida em Fevereiro desse mesmo ano. A dimensão dessa derrota foi surpreendente. É certo que os Governos se costumam dar mal nas eleições autárquicas: assim foi em sete das nove eleições do género realizadas desde 1976. Mas havia razões para supor que, nas autárquicas de 2005, o PS poderia de alguma forma mitigar essas perdas. Afinal, as duas excepções ao padrão de punição do Governo em eleições locais - 1979 e 1985 - também tinham sido eleições realizadas durante aquilo a que se costuma chamar a "lua-de-mel" governamental, menos de um ano após as legislativas precedentes. Que o PS não tenha, afinal, conseguido fazer melhor em 2005 do que no desastroso ano de 2001 foi bem o reflexo, para além de algumas escolhas duvidosas de cabeças de lista, de quão rapidamente a popularidade deste Governo (tal como, de resto, a do seu predecessor) se desgastou em menos de um ano. Enquanto a opinião publicada continuava a falar de "estado de graça", as sondagens já diziam outra coisa: entre Março e 2005 e Outubro de 2005, o saldo de popularidade de José Sócrates (a percentagem de opiniões positivas subtraída da percentagem de opiniões negativas) tinha descido de quase 40 pontos positivos para 4 pontos negativos.

O facto de os eleitores aproveitarem para castigar os Governos em eleições que nada têm a ver com a governação não significa, como de vez em quando se diz, que "não sabem distinguir as coisas". Pelo contrário, é precisamente por saberem que uma derrota do Governo nessas eleições não implica colocar em S. Bento uma oposição ainda mais indigente que se podem dar ao luxo de exprimir plenamente a sua insatisfação. O que se passou em Janeiro de 2006, nas presidenciais, teve também a ver com isto. Sabe-se hoje, com a ajuda de estudos pós-eleitorais (.pdf) realizados após as legislativas e as presidenciais, que dois aspectos que ajudam a caracterizar os eleitores socialistas que abandonaram Soares foi o facto de estarem insatisfeitos com a actuação do Governo e terem considerado a eleição pouco importante. De resto, a aparente - e, como se tem visto até agora, justificada - indiferença de José Sócrates em relação a uma possível vitória de Cavaco Silva nessas eleições facilitou ainda mais a vida a esses eleitores. E a isto juntaram-se, claro, alguns ingredientes adicionais, tais como o processo trapalhão de escolha de candidato ou a candidatura "independente" de Manuel Alegre, cujo discurso crítico em relação ao statu quo partidário soa cada vez mais como música aos ouvidos dos eleitores.

À primeira vista, as eleições intercalares em Lisboa tinham todas as condições para apresentar uma combinação mortífera - para o PS - das piores características das autárquicas de 2005 e das presidenciais de 2006. A nível nacional, a popularidade do Governo está hoje a níveis quase tão baixos como estava em Outubro de 2005. No concelho de Lisboa, menos de um em cada cinco eleitores fazem uma avaliação positiva da actuação do Governo nacional. Reeditando Alegre, há desta vez Helena Roseta, com toda uma lista possível de argumentos sobre o "autismo" do poder socialista - "mandei-lhe uma carta" - e as virtudes da "cidadania" contra os "partidos". E como se isto não bastasse, o divórcio entre o PSD e Carmona Rodrigues dava desde logo ao primeiro a vantagem de o poder dissociar da acção de uma câmara cuja avaliação pública também não é particularmente favorável.

Mas sucede que um dos actores nesta peça, a quem cabia pouco mais do que não se deixar cair do palco abaixo, tomou uma decisão inexplicável. Dispondo do poder de agendar como e quando Carmona Rodrigues ia cair, Marques Mendes decidiu provocar essa queda sem ter, pelos vistos, previamente preparada a apresentação de um bom candidato para a Câmara de Lisboa. Esse candidato poderia ter constrangido a escolha do PS e retirado espaço de manobra a Carmona, ajudando a predeterminar o resultado desta eleição como mais uma derrota socialista. Aconteceu o inverso. Aquilo que Mendes não soube ou não pôde fazer ao PS fez-lhe o PS a ele, apresentando como candidato um dos ministros mais conhecidos (ou menos desconhecidos) e mais populares (ou menos impopulares) deste Governo. O resto é conhecido. Carmona é candidato, e há um ex-director da PJ, ex-ministro de Santana Lopes e vereador no Seixal* que, ao que parece, também é. Obviamente, António Costa lidera as sondagens, com intenções de voto entre os 32 e os 36 por cento.

É certo que estas primeiras sondagens - e se calhar até as últimas - devem ser encaradas com enorme cuidado. Em 2005, as conduzidas em concelhos onde concorreram candidatos independentes foram sistematicamente mais imprecisas que as restantes, fenómeno possivelmente causado pela fluidez que essas candidaturas introduzem nas escolhas dos eleitores. E é difícil saber quem vai ser mais prejudicado, à última hora, por uma abstenção que se prevê particularmente elevada. No entanto, o PS parece ter aprendido lições das derrotas anteriores. Declarou o caos antes de Costa, dramatizou as eleições com pedidos de maioria absoluta e prometeu aquilo que já tinha prometido nas legislativas de 2005: "seriedade" e "rigor". Tenta, deste modo, que em vez de se parecerem com as anteriores autárquicas ou com as presidenciais de 2006, estas eleições se pareçam com outras, também recentes, de que o PS tem melhores recordações. Não sabemos se conseguirá. Mas Marques Mendes já deu a ajuda possível e, nos últimos dias, até Santana Lopes deu mais um ar da sua graça. O PS agradece.

*Erro no original. É Setúbal, claro. Lapso freudiano.

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segunda-feira, maio 14, 2007

A tragédia de Blair

Tony Blair iniciou e completou a transformação do Partido Trabalhista num partido social-democrata moderno. Do ponto de vista eleitoral foi, de longe, o mais bem sucedido líder da história do partido. Presidiu a dez anos consecutivos de crescimento económico e de diminuição do desemprego. E no entanto, no dia 27 de Junho, abandonará o poder caído em desgraça perante a opinião pública. É certo que, num estudo conduzido em Março passado pelo British Election Study, apenas um em cada quatro britânicos faz um juízo negativo da evolução económica do país nos últimos dez anos. Contudo, isso parece ser irrelevante para a avaliação global que fazem do legado de Blair. São muito poucos os que acham que o Reino Unido é hoje uma nação de maior sucesso, melhor para se viver e mais feliz do que em 1997. A confiança dos britânicos em todas as instituições, políticas e sociais, declinou desde então. A taxa de aprovação do primeiro-ministro nas sondagens anda pelos 30 por cento, uma das mais baixas registadas desde sempre. E desde o início de 2006 que os trabalhistas seguem num distante segundo lugar atrás dos conservadores nas intenções de voto nas legislativas.

Como conciliar estes factos aparentemente contraditórios? Num estudo escrito há dois anos sobre a "economia política" do apoio aos trabalhistas, o politólogo David Sanders ensaiava uma explicação. Segundo Sanders, o governo de Blair teria sido uma vítima inesperada quer do insucesso alheio, quer do seu próprio sucesso. Com a reputação económica dos conservadores abalada pela crise do Sistema Monetário Europeu em 1992, e à vista dos resultados positivos do projecto macroeconómico da dupla Blair e Brown, a economia teria deixado de ser um assunto saliente na política britânica. Contudo, o facto de uma economia florescente deixar de ser assunto de discussão não é uma boa notícia para quem quer ser visto responsável por ela. O desaparecimento da economia da agenda pública abre espaço para a política. E foi na política que Blair fracassou.

Dezenas de estudos encomendados sobre os efeitos das reformas dos serviços públicos produziram, desde o início deste século, conclusões e indicadores de desempenho contraditórios, ou seja, muito aquém daquilo que a plataforma política do New Labour tinha prometido. De resto, a avaliação que os cidadãos britânicos fazem das políticas públicas nos últimos dez anos é desastrosa, especialmente nos domínios da saúde, da educação, da criminalidade, do combate à pobreza, dos transportes ou da imigração ilegal. As múltiplas reformas institucionais -desde a reforma da Câmara dos Lordes até à devolução de poderes à Escócia - terão gerado tantos ressentimentos como efeitos positivos. Ficaram, também, muito longe das ambições iniciais, quando se chegava a falar da mais do que improvável (ou melhor, impossível) reforma do sistema eleitoral. A relação dos britânicos com o projecto de integração europeia, que Blair prometeu revolucionar, acabou como começou: hostil ou, no mínimo, desconfiada por parte da população; hipócrita ou, na melhor das hipóteses, meramente utilitária por parte das elites políticas e diplomáticas britânicas. E a invasão do Iraque degradou o papel e o prestígio do Reino Unido na cena internacional, liquidando, pelo caminho, qualquer ilusão que Blair possa ter tido de transformar o Reino Unido numa "ponte" entre os Estados Unidos e a Europa. E no cerne da "política" estava, claro, o próprio Tony Blair. A partir de 2000, quando o tema da economia começava a perder importância para os eleitores britânicos, as intenções de voto no Partido Trabalhista começavam a seguir mais de perto, mês a mês, a avaliação que os eleitores faziam da actuação do próprio primeiro-ministro. Chega a invasão do Iraque, e é a derrocada.

No sábado passado, o presidente do Iraque saudava Blair como um "herói". Com toda a razão. Mas o Tony Blair que no dia anterior, em Sedgefield, jurava comovido, "com a mão no coração, ter feito o que pensava estar certo", é, em rigor, um herói trágico. Os mesmos 30 por cento de aprovação que George W. Bush tem hoje nos Estados Unidos, ou as humilhações públicas de Donald Rumsfeld, Paul Wolfowitz ou Alfredo González, não são verdadeiro material trágico. Como explicava Aristóteles na Poética, a inevitável queda dos vilões pode satisfazer o sentido moral dos espectadores, mas não evoca, pelo contrário, pena ou medo. Blair, ele sim, é um herói trágico, precisamente porque não foi um vilão ou uma personagem moralmente inferior. Foi, pelo contrário, um homem "bom" e "virtuoso", com o qual os britânicos se podiam identificar. E que cai por ter cometido um "erro fatal".

Numa sondagem recente da You Gov, a maioria dos ingleses ainda o descreve como "likeable as a person", alguém de quem se pode gostar. Mas também, claro, como um homem sem princípios e indigno de confiança. O julgamento pode parecer severo. Não sabemos, afinal, se a sua contribuição para a catástrofe iraquiana resultou de um mero lapso ou de um mais profundo defeito moral. O problema, contudo, é que os ingleses perceberam que talvez nem o próprio saiba. É especialmente curioso que, na sua despedida em Sedgefield, logo depois de ter jurado ter sempre feito o que julgava correcto, Blair tenha afirmado que "pode ter estado errado, mas isso é algo que vos cabe dizer". Ele, pelos vistos, não o consegue fazer. Não surpreende, por isso, que, no estudo do British Election Study, convidados a optar entre diferentes definições do "carácter" do primeiro-ministro, a maioria dos inquiridos o tenha descrito como alguém "que se consegue convencer a si próprio do que aquilo que decidiu deve ser moralmente correcto". Ou mais precisamente, como escrevia Jasper Gerard no Sunday Times a propósito do romance Saturday, de Ian McEwan - que numa breve passagem autobiográfica fornece o melhor retrato alguma vez escrito sobre Blair - "nobody does sincerity as convincingly as Blair, because his lies deceive even himself". A queda de Blair, como em todas as tragédias, era inevitável e merecida.

P.S. - A descrição do percurso de Blair como "tragédia", no pleno sentido do termo, não é, constato, original. Um amigo mandou-me isto hoje. Para Marquand, a "falha trágica" é o "presentismo". Vale a pena ler.

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terça-feira, maio 01, 2007

A segunda volta francesa e uma nota portuguesa

1. A primeira volta das eleições presidenciais em França não trouxe especiais surpresas. Le Pen teve, é certo, uma votação menor do que se previa: 10,5 por cento, abaixo dos valores entre os 13 e os 16 por cento que lhe chegaram a ser atribuídos a poucos dias das eleições. Mas os dois candidatos que nunca deixaram os primeiros lugares das intenções de voto nas sondagens, Sarkozy e Royal, foram precisamente os que passaram à segunda volta. Neste momento - tal como, de resto, desde Janeiro passado - é Sarkozy quem lidera as intenções de voto para essa segunda volta, com valores entre os 52 e os 54 por cento.

É certo que, por detrás desta aparente estabilidade, se esconde um eleitorado particularmente escorregadio. Segundo as altamente precisas sondagens à boca das urnas, quase metade daqueles que votaram em Sarkozy ou Royal na primeira volta ou não simpatizam com qualquer partido, ou simpatizam com partidos diferentes dos dos candidatos onde acabaram por votar. Houve, por outras palavras, muito "voto útil": da extrema-esquerda para Royal, da extrema-direita para Sarkozy e até (surpresa) do PS para Bayrou. E houve muito voto decidido à última hora, afectado pelas contingências da campanha: um em cada três eleitores diz ter tomado a sua decisão na última semana antes das eleições, valor que aumenta para um em cada dois entre os que não se identificam com qualquer partido. O que eleitores como estes - apartidários, infiéis, indecisos e com pouca adesão aos candidatos onde votaram ou dizem tencionar votar - possam realmente fazer no dia 6 é impossível de prever. No passado, as campanhas da segunda volta fizeram sempre alguma diferença, com Mitterrand e Chirac, por exemplo, nas eleições de 1988 e 1995, a acabarem com algo menos do que se esperava inicialmente. Nesses casos, isso não fez diferença no resultado final. Mas, nessa altura, a vantagem dos favoritos nas intenções de voto também não andava, como anda hoje, abaixo dos quatro pontos.

Contudo, é evidente que Ségolène tem a tarefa mais difícil. Joga contra ela a necessidade de, para triunfar, ter ao mesmo tempo de, por um lado, apelar à mobilização do eleitorado à sua esquerda e que dela não gosta e, por outro, de atrair aquele que está à sua direita e terá votado em Bayrou na primeira volta. Para Sarkozy, estes dilemas posicionais encontram-se resolvidos há muito tempo. Com excepcional paciência, Sarkozy fez ao longo dos últimos anos tudo aquilo que precisava para, agora, não se ter de preocupar com a direita. Chegou a altura de falar docemente, porque de resto, diga o que disser, a extrema-direita não deixará de votar nele em massa no dia 6. E depois se verá o que faz Sarkozy com esses votos se for eleito. Gérard Grunberg, director do CEVIPOF, recordava há dias as semelhanças entre a estratégia de Sarkozy em relação à Frente Nacional para estas eleições e aquela que Mitterrand preparou para atrair o voto comunista em 1981. Faltou-lhe apenas lembrar que, depois de eleito, Mitterrand aproveitou para acabar de vez com o PCF enquanto partido significativo na política francesa. Veremos se a história se repete.

2. Uma reacção comum à entrada de Joaquim Pina Moura para a administração da Media Capital - um convite feito e aceite, segundo palavras do próprio, com uma "motivação ideológica" - tem consistido em dizer-se que é "natural" em qualquer democracia que os órgãos de comunicação social tenham orientações políticas claras e conhecidas de todos. Afinal, ninguém desconhece que o El País, o New York Times ou o Guardian se orientam para a "esquerda" nos seus países, da mesma forma que o ABC, o Wall Street Journal ou o Telegraph são de "direita". Tudo isto seria até "saudável", "claro", "transparente" e até contribui para o "pluralismo".

Até pode ser que seja, mas há nesta reacção duas coisas que, talvez ingenuamente, me parecem intrigantes. A primeira é a forma como assim se admite que uma mudança no conselho de administração de uma empresa de comunicação social possa (ou até deva) ter como consequência "natural" a adopção de uma linha editorial política e ideologicamente marcada. A segunda é esta utilização de tantos exemplos retirados da imprensa quando o assunto, afinal, nada tem a ver com ela. Entre a imprensa e a televisão - porque é da segunda que estamos a falar - vai, em termos de alcance e impacto sobre as agendas políticas e o eleitorado, um mundo de diferença, que só a pequena minoria daqueles que julgam que o resto do país também lê jornais para consumir informação política pode ignorar. E talvez esse mundo de diferença ajude a explicar por que razão não se conseguirá - para além da repelente Fox News e da televisão italiana- encontrar facilmente exemplos de democracias fora da Europa de Leste e da América Latina onde canais de televisão dêem à sua informação uma orientação política e ideológica assumida.

Não se sabe se a entrada de Pina Moura na Media Capital vai significar a transformação da TVI num órgão mais ou menos oficioso do Partido Socialista. Mas, se assim for, fico curioso. O que dirão aqueles que encaram isso com "naturalidade" quando, regressado o centro-direita ao poder, se encarregar de tomar de assalto os canais públicos para assegurar um "saudável pluralismo" político e ideológico na informação televisiva? Acharão "natural"? Duvido. Mas nessa altura já será tarde.

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