segunda-feira, dezembro 18, 2006

Televisão, opinião e "ciência"

Nas últimas semanas, vimos assistindo em Portugal a uma controvérsia sobre o conteúdo da informação na televisão pública e sobre o seu alegado enviesamento pró-governamental. Não é a primeira e não será a última. Contudo, há uma aparente novidade. À habitual retórica política que sempre se empregou nestes debates junta-se, desta vez, uma preocupação de "cientificidade" na análise da "independência" do serviço público, se com isso entendermos um esforço de generalização e sustentação empírica dos diagnósticos feitos acerca dos conteúdos noticiosos. Desde logo, a deliberação da Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC) a propósito do famoso artigo de Eduardo Cintra Torres (ECT) veio acompanhada por um extenso relatório (.pdf) sobre a cobertura noticiosa dos incêndios, onde se analisa, para o período entre Maio de Setembro de 2006, o número de peças dedicadas ao tema por cada canal e sua duração, o seu peso relativo à totalidade do conteúdo noticioso, o lugar dessas peças nos alinhamentos, as fontes de informação utilizadas e os actores intervenientes. Através deste relatório, a ERC procurou chegar a conclusões "rigorosas" sobre as diferenças entre a RTP e os restantes canais. E de resto, este tipo de dados já vinha sendo utilizado por ECT e outros analistas dos media em artigos de opinião, aludindo, por exemplo, ao peso relativo dos ministros como protagonistas do espaço noticioso e associando-o a um maior grau de "governamentalização".

Se a ideia é mesmo ir por este caminho, impõem-se algumas cautelas. Como já assinalou José Pacheco Pereira no seu blogue Abrupto, "as análises quantitativas da comunicação social (...) podem, se isoladas do contexto (...) dar resultados exactamente ao contrário do que parecem dizer". Eu até colocaria o problema de modo diferente: a primeira questão não é tanto a de saber se as análises são "quantitativas" ou não, mas sim a de saber que quantidades e de quê elas medem e comparam. O tempo dedicado à cobertura de um tema ou de uma pessoa pouco nos diz sobre o conteúdo da mensagem transmitida, em particular sobre as considerações positivas ou negativas transmitidos sobre esse tema ou pessoa ou o "tom" predominante em cada peça. Sabemos, por exemplo, que Pedro Santana Lopes foi, durante a campanha eleitoral para as eleições de 2005, o líder partidário que mais vezes e durante mais tempo apareceu nos noticiários televisivos, mas só um grande esforço de imaginação poderia fazer supor que toda essa cobertura lhe terá sido favorável.

É certo que o mero acesso aos media dá a um protagonista político a oportunidade de apresentar a sua versão da realidade, o que à partida lhe poderá ser vantajoso. Contudo, basta que a mesma peça televisiva apresente, por exemplo, uma "vista" de poucos e desanimados participantes num comício para que, com uma simples pista visual, se converta em potencial perda aquilo que à partida parecia um ganho. E quando os factos relatados são inequivocamente negativos - incêndios, por exemplo - será sempre vantajoso para um membro do governo "aparecer", relembrando os espectadores sobre promessas incumpridas e a quem atribuir responsabilidades? Nenhuma destas ou de muitas outras subtis características da "mensagem televisiva" são impossíveis de "quantificar". Mas como ECT e alguns membros da ERC saberão melhor do que eu, uma análise de conteúdo que dê informação suficiente para permitir inferências sobre a "independência" da informação televisiva - presumindo que tal coisa é possível - implica procedimentos metodológicos de tal modo exigentes e recursos de tal modo grandes que impedem que a medição e a subsequente análise dos dados resultantes possa servir, como parece supor-se ser possível, para fazer, com seriedade, "barómetros", "monitorizações" ou outros diagnósticos de curto-prazo sobre a governamentalização da informação.

Para além disso, importa recordar que a análise deste tipo de fenómenos raramente se pode ficar pelo mero conteúdo dos media. Na verdade, ele serve muitas vezes apenas para ilustrar processos que só se conseguem estudar com análises documentais, observação participante, entrevistas a antigos intervenientes e, em geral, distância histórica. A dependência dos jornalistas em relação a fontes governamentais para obterem informação e a manifesta assimetria de conhecimentos e experiência da maioria da classe jornalística em comparação com as elites políticas e burocráticas são apenas dois dos muitos mecanismos através dos quais, dispensando a ingerência directa, os governos e os aparelhos de estado conseguem condicionar quotidianamente o conteúdo dos media. E já agora, importa dizer que, como assinala Michael Schudson (The Sociology of News, W. W. Norton, 2003), são também estes mecanismos que fazem com que a diferença entre a cobertura dos temas políticos por parte de operadores públicos e privados seja, na Europa, muito menor do que por vezes se supõe, ou que, dependendo de formas de recrutamento de pessoal ou recursos materiais e organizacionais disponíveis, existam enormes variações entre diferentes países no que respeita ao grau de "governamentalização" da informação das televisões públicas. Tudo isto permanece invisível quando se olha apenas, a jusante, para o conteúdo dos media, e tudo isto só pode permanecer inconclusivo quando é abordado na base de meros indícios ou suposições em colunas de opinião.

É por tudo isto que, não se duvidando das excelentes intenções da ERC, se começa a detectar na sua actuação uma confusão de papéis. Meros artigos de opinião são tratados como matéria de facto a exigir investigação, investigação essa que, inevitavelmente, fica aquém dos objectivos irrazoáveis que se lhe atribuiu. Outros merecem respostas que são, elas próprias, emocionais e opinativas. A imprensa atribui, e bem, cada vez mais espaço à opinião sobre os media. A investigação académica na área da comunicação vive um momento florescente, com o aparecimento de novas revistas académicas e um grande número de livros publicados. Assim, talvez a ERC fizesse melhor em deixar a opinião para os colunistas e a ciência para os cientistas.

segunda-feira, dezembro 11, 2006

O Papa, a Europa e a Turquia

Nos últimos tempos, tudo parece correr mal nas relações entre a União Europeia e a Turquia. Na passada quarta-feira, a Comissão recomendou a suspensão das negociações de adesão em oito dos trinta e cinco capítulos nos quais toda a legislação comunitária foi dividida para fins de análise de progresso dos países candidatos. A razão mais próxima é a recusa da Turquia em abrir os portos e aeroportos do país aos navios e aviões cipriotas. Contudo, este não é o único problema. Segundo o último relatório de progresso, a Turquia não terá feito esforços suficientes nas questões dos direitos culturais e das mulheres, na liberdade de expressão e de actividade sindical e nas relações entre o poder civil e militar. A percepção geral é a de uma desaceleração do ritmo das reformas no último ano.

Uma reacção possível a estes desenvolvimentos consiste simplesmente em defender o óbvio: o governo turco terá de cumprir as regras, reconhecendo Chipre e promovendo avanços decisivos nas reformas democráticas pedidas pela Comissão. Mas há muita gente para quem o óbvio não é suficiente. Há quem fale da dimensão populacional da Turquia e do peso político que isso lhe trará, apesar da adesão da Polónia não ter produzido, aparentemente, semelhantes preocupações. Outros mencionam o baixo nível de desenvolvimento económico da Turquia, apesar da Roménia e da Bulgária, com indicadores semelhantes, irem aderir à UE em breve. Há também quem teorize sobre a “capacidade de absorção” de novos membros por parte da actual União Europeia, conceito concebido durante a presidência austríaca, destinado a impedir que a entrada de novos países dependa unicamente do seu cumprimento dos critérios de Copenhaga e usado agora por Angela Merkel para aquilo que sabe que a Turquia nunca poderá aceitar, uma “parceria privilegiada” aquém da adesão.

E há, claro, o mais intratável de todos os problemas, o dilema existencial da “identidade” cultural e geográfica da Europa. Nicolas Sarkozy, já em plena campanha eleitoral, defendeu que a decisão da Comissão só peca por defeito, aproveitando para dar uma breve lição de história e geografia: “a Europa foi feita para os estados europeus e a Turquia é na Ásia Menor”. Que Nicósia fique mais perto de Damasco que Ancara é, afinal, um mero detalhe. Que os turcos, em vários estudos recentes, defendam a separação entre o governo e a religião com mais intensidade que vários países europeus ou mesmo os Estados Unidos, ou que exibam atitudes políticas favoráveis à democracia e à liberdade de expressão em números semelhantes aos verificados na Europa Ocidental, são coisas que, pelos vistos, devemos ver como indicando um inultrapassável “abismo cultural”. E talvez, enquanto vamos ruminando este ponderoso assunto, nos esqueçamos das verdadeiras razões que fazem com que Alemanha e França não desejem, na verdade, a adesão da Turquia. É na Alemanha que vai ser recebida a maior parte da imigração turca que, independentemente dos benefícios que trará ao crescimento económico europeu, levará certamente, a curto-prazo, à diminuição dos salários dos trabalhadores alemães menos qualificados. E apesar do impacto da adesão turca nas transferências orçamentais não ser superior ao que vai resultando da adesão dos últimos dez estados-membros, ele será, de facto, insustentável no domínio dos subsídios agrícolas sem uma reforma da Política Agrícola Comum, reforma essa que os franceses, previsivelmente, desejam impedir por todos os meios ao seu alcance.

A hipocrisia política costuma levar à irracionalidade da opinião pública, e este caso não é excepção. Em 1996, a Turquia encontrava-se mergulhada numa profunda crise política e era classificada pela Freedom House como assegurando um grau de protecção dos direitos cívicos e políticos inferior ao de países como a Rússia, a Jordânia ou o Líbano. Nessa altura, 44 por cento dos europeus opunham-se à sua entrada na UE. Dez anos depois, abolida a pena de morte e a jurisdição dos tribunais militares sobre civis, fortalecido o controlo do poder político sobre os militares e reconhecida a supremacia jurídica das convenções internacionais sobre direitos humanos, há já 55 por cento de europeus que se opõem à adesão da Turquia. Pelo caminho, um inquérito de Julho de 2006 mostra que a percentagem de turcos que consideram a adesão do país à União como algo “positivo” ou “vantajoso” é cada vez menor. Os turcos vão deixando de acreditar que a entrada na União seja algo que ainda dependa da sua vontade ou capacidade. As implicações negativas para a capacidade reformista deste e de qualquer futuro governo na Turquia são evidentes.

É por tudo isto que as recentes declarações de Bento XVI de que veria com bons olhos a entrada do país na UE — relatadas por terceiros, mas até hoje não desmentidas — são tão importantes. Acompanhadas pela declaração conjunta com o Patriarca Bartolomeu I no passado dia 30, elas retomam o fundamental e o óbvio: a Turquia pode entrar na UE, mas deve para tal respeitar a democracia e o estado de direito, as liberdade cívicas e, especialmente, os direitos das minorias religiosas. Esta posição vem da autoridade máxima da confissão religiosa que mais contribuiu para a unificação da Europa, seja através de católicos devotos como Schuman, Adenauer e de Gasperi, ou através do papel desempenhado pelos partidos e eleitores democratas-cristãos nos últimos cinquenta anos. E talvez ainda mais importante, ela esvazia a retórica que algumas figuras menos felizes da actual democracia-cristã europeia adoptam sobre o tema, impedindo que se escudem em argumentos que não reflectem nem a sua real posição nem aquilo que a fundamenta. O caminho que a Turquia tem de percorrer ainda é longo. E os problemas que a sua adesão causará na Europa são reais e merecem ser ponderados. Mas são problemas políticos, e não da ordem do “intangível” ou do “primordial”. A autoridade religiosa também pode servir para restabelecer alguma racionalidade no mundo.