terça-feira, junho 16, 2009

Auditar ou proibir?

Em 1992, as últimas sondagens realizadas no Reino Unido apontavam para uma eleição renhida, mas com uma curta vantagem dos Trabalhistas. Contados os votos, os Conservadores tinham ganho a eleição com 7,6 pontos de vantagem, subestimada pelas sondagens em cerca de 9 pontos percentuais. Seguiu-se uma controvérsia sobre a fiabilidade das sondagens e a Market Research Society reuniu um painel de peritos para investigar o assunto. O relatório final listava as possíveis causas para o fracasso das sondagens: a inadequação das variáveis utilizadas para definir quotas ou para ponderar os resultados de amostras aleatórias, levando a uma sub-representação de eleitores Conservadores; a desactualização dos dados das estatísticas nacionais utilizados; taxas de recusa diferenciais entre eleitores Trabalhistas e Conservadores (os “shy Tories”), levando a que os segundos estivessem ainda mais sub-representados nas amostras; e opções inadequadas quer para a redistribuição de indecisos quer para tratamento de “abstencionistas declarados”. Este relatório* teve consequências importantes na forma como se passaram a fazer sondagens no Reino Unido, seja na amostragem seja na forma como se passou a lidar com os eleitores que se afirmam “indecisos” ou “abstencionistas” nas sondagens.

À luz do recente fracasso das sondagens para as eleições europeias, por que não promover uma “auditoria” semelhante em Portugal após esta e futuras eleições? As fichas técnicas divulgadas na imprensa, ou mesmo as depositadas na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), estão longe de fornecerem toda a informação necessária para apreciar a enorme quantidade de opções técnicas e práticas adoptadas pelos diferentes institutos. Uma investigação por um painel de peritos independentes poderia abordar em detalhe, por exemplo, as opções de amostragem, a construção dos questionários, a formação dos inquiridores ou o trabalho de campo. Com os dados brutos em seu poder, esse painel poderia apreciar as consequências de opções alternativas no tratamento dos dados, nomeadamente das “não respostas” e dos “indecisos”, assim como os desvios das amostras em relação a características conhecidas da população e as maneiras de os corrigir. Não faltariam pessoas capazes de fazer este tipo de auditoria. Se porventura se considerar que a ERC não é a entidade apropriada para a promover, ou que a APODEMO (a associação representativa das empresas do sector) está demasiado próxima dos interesses das empresas, certamente que na Associação Portuguesa de Sociologia, na Associação Portuguesa de Ciência Política ou na Sociedade Portuguesa de Matemática se encontrarão especialistas para formar semelhante painel. E é sempre possível convocar peritos estrangeiros, sem qualquer ligação aos interesses corporativos, económicos ou políticos em jogo.

Creio que quase todos teriam a ganhar com isto. Para o grande público, a noção de que o trabalho das empresas seria pública e regularmente escrutinado constituiria uma garantia adicional de que as empresas teriam ainda mais incentivos do que têm hoje para fazerem o melhor que está ao seu alcance dentro dos constrangimentos existentes. E haveria também benefícios para as próprias empresas. A realização destes estudos após cada eleição poderia contribuir para levar o batalhão de comentadores que, usando regular e sistematicamente as sondagens para fazer valer os seus argumentos e preferências políticas entre eleições, se mostram logo dispostos após as eleições a declarar a “incompetência” (após os fracassos) ou a “competência” (após os sucessos) das empresas de sondagens, a proferirem as suas sentenças com um pouco mais de informação. Para quem trabalha no ramo, isto seria também uma ocasião para aprender, repensar opções metodológicas e melhorar a qualidade do trabalho. “Segredos”? Há limites para o tipo de “segredos” que pode haver numa actividade com esta importância e potencial (apesar de raramente demonstrado) impacto político. É verdade que isto não garante que as coisas iriam sempre correr bem. Em várias eleições britânicas desde 1992, os desvios das sondagens foram ainda consideráveis. Em França, depois da catástrofe de 1997, onde as sondagens foram incapazes de antecipar a derrota da direita, os vários estudos realizados não impediram um segundo fracasso em 2002, com a subestimação da votação em Le Pen. Outros exemplos destas persistentes dificuldades poderiam ser avançados. Mas até a forma como esse fracassos são lidos e interpretados poderia ser um pouco mais tranquila e racional se fossem sempre seguidos de uma abordagem transparente do que se terá passado.

A alternativa que tem sido avançada a tudo isto é a de proibir a realização e divulgação de sondagens durante a campanha. Não seríamos caso único. Mas podemos, por isso mesmo, apreciar melhor as consequências de semelhante proibição. Na verdade, seria uma medida com a qual quer os partidos quer algumas empresas do sector poderiam concordar facilmente. Muitas continuariam a poder conduzir a maior parte do trabalho que já fazem hoje nestas áreas, ou seja – especialmente em véspera de autárquicas – trabalhos para os partidos políticos. E não seria a proibição da divulgação de sondagens nas últimas duas, três ou quatro semanas antes de uma eleição que impediria alguns partidos de fazerem aquilo que já fazem hoje. Por exemplo, comparar sondagens realizadas a um mês ou mais das eleições com os resultados finais, em eleições actuais ou passadas, sempre que isso lhes for útil para a sua argumentação política. Nem os impediria de anunciar, durante a campanha, a existência de “sondagens” realizadas por si ou para si próprios, cujos resultados e métodos permaneceriam completamente opacos e inverificáveis para os eleitores.

Nunca estive seguro de que as sondagens de intenções de voto divulgadas ao longo da campanha dessem uma grande contribuição para a nossa democracia. Elas alimentam a ilusão de que os resultados podem ser sempre infalivelmente previstos e ocupam porventura excessivo espaço na cobertura das eleições, transformando-as numa “corrida de cavalos” que talvez nos afaste do essencial que deveria ser discutido numa campanha. E já perdi as derradeiras ilusões sobre a capacidade do que escrevi acima para persuadir aqueles que preferem sempre ver nas sondagens um esforço deliberado para manipular a opinião pública. No que proponho, esses verão provavelmente um esforço adicional de manipulação, disfarçando sob uma discussão técnica aquilo que julgam ser um ânimo político das sondagens contra estes ou aqueles partidos. Seja. Não se pode discutir racionalmente com quem tem interesse em, precisamente, afastar a racionalidade da discussão. Contudo, aos restantes, mesmo que sejam uma minoria, sugiro que ponderem as consequências da proibição: mais desinformação, mais opacidade e mais (em vez de menos) manipulação política da opinião pública.

*Resumido aqui, e um estudo adicional aqui.

terça-feira, junho 02, 2009

Obrigados a votar?

Um dos temas mais curiosos que entrou pela campanha, pelas mãos de Carlos César, presidente do governo regional dos Açores, foi o do voto obrigatório. Segundo uma notícia do Público, as reacções por parte dos candidatos dos principais partidos foram invariavelmente negativas. Ilda Figueiredo e Vital Moreira consideraram a discussão inoportuna, à luz das alterações à lei eleitoral e à Constituição que exigiria. Paulo Rangel e Miguel Portas acham que o voto é um direito, nunca um dever. A notícia não relata o que Nuno Melo opina sobre o assunto, mas Paulo Portas parece fazer parte de uma improvável convergência com o BE e o PSD nesta matéria.

O tema merece um pouco mais de atenção, até porque os argumentos esgrimidos até ao momento não são particularmente interessantes ou decisivos. Do ponto de vista normativo, sobre o que a democracia é ou deveria ser, o argumento de que existe um “direito a não votar”, de que o voto não passa, na melhor das hipóteses, de um dever moral ou cívico e de que a imposição de penalizações a quem não vota é uma violação dos direitos e liberdades individuais é, claro, perfeitamente defensável. Tão defensável como a noção de que o voto seria apenas mais uma de muitas outras obrigações a que os cidadãos numa democracia podem ser vinculados  colocar os filhos na escola ou pagar impostos, por exemplo,  e de que ninguém é obrigado a fazer uma escolha que não deseje num sistema de voto obrigatório (mas apenas a comparecer na assembleia de voto, podendo votar em branco ou nulo). Anti-democrático? Vinte e nove democracias no Mundo prevêem hoje o voto obrigatório. Em países como a Bélgica, o Luxemburgo, a Austrália, o voto obrigatório é imposto com recurso sistemático a sanções monetárias consideráveis. É preciso algum contorcionismo argumentativo para conseguir estabelecer que estes três países, por exemplo, são menos “democráticos” ou menos “livres” que Portugal devido ao simples facto de punirem os eleitores que não votam.

Logo, num país onde o voto não é obrigatório, a discussão pode ser outra: resolveria o voto obrigatório os problemas que é suposto resolver e produziria os efeitos benéficos que lhe são atribuídos? O primeiro problema que o voto obrigatório alegadamente resolve é, claro, o da abstenção (se acharmos que a abstenção é um problema, o que não é tão consensual como possa parecer). Não há dúvida que, em certas condições, resolve mesmo. O factor que melhor explica a participação eleitoral nas eleições europeias é, precisamente, a existência ou não de voto obrigatório. Um estudo de Mark Franklin sobre as eleições europeias desde 1979 até 2004 mostra que, mesmo quando se tomam em conta os efeitos de outros factores, os países com voto obrigatório tiveram taxas de participação eleitoral 30 pontos acima dos restantes. Contudo, isso é verdade apenas na medida em que as sanções por não votar sejam efectivamente aplicadas. Num país como a Grécia, onde o voto é obrigatório, a abstenção nas últimas europeias chegou quase aos 40 por cento. Isso sucede porque, na Grécia, a obrigatoriedade do voto é principalmente um simbolismo legal sem sanções reais. E num país como Portugal, onde permanece incerteza sobre algo tão simples como precisão e a actualização dos cadernos eleitorais e onde o sistema judicial funciona com a esplendorosa eficiência de todos conhecida, as dúvidas sobre a possibilidade de criar um sistema com sanções efectivas para os abstencionistas e isenções justas para aqueles que de facto não pudessem votar são, naturalmente, muitas.

O segundo problema que o voto obrigatório alegadamente ajudaria a resolver seria o do desinteresse, desinformação e cinismo do eleitorado em relação à política. Deste ponto de vista, levados inicialmente a votar pela obrigação de o fazer, os eleitores acabariam por obter mais informação e desenvolver mais interesse pela política. Mas não há provas de que assim seja. Num estudo recentemente realizado na Bélgica, Bart Engelen e Marc Hooghe compararam os níveis de informação política dos eleitores que afirmaram votar meramente para evitar a sanção com os restantes, mostrando que os primeiros permanecem menos informados e interessados na política. E uma experiência recente no Canadá, comparando dois grupos de estudantes – uns que receberam um incentivo financeiro por votarem e outros não – mostra que esse incentivo não produziu consequências na sua motivação para se informarem sobre as eleições.

O terceiro problema que o voto obrigatório supostamente resolve é o da participação assimétrica de grupos sociais e ideológicos. Naturalmente, em países como a Bélgica ou a Austrália, pobres e ricos, mais ou menos instruídos e pessoas que se situam à esquerda ou à direita participam igualmente nas eleições. O mesmo pode não suceder noutros contextos onde o voto não é obrigatório. Desta forma, a obrigatoriedade do voto serviria um propósito de igualdade política: se todos votarem, os interesses de todos serão tomados em conta na representação, nas decisões políticas e nas políticas públicas. Mas se é verdade que, por exemplo, nos Estados Unidos, os mais pobres, os menos instruídos e as minorias étnicas votam menos, isto não se passa da mesma forma em todos os contextos. Em Portugal, por exemplo, o rendimento, o status social e a instrução têm efeitos diminutos na participação eleitoral, e o mesmo sucede com o posicionamento ideológico à esquerda ou à direita. Muitos outros países exibem padrões semelhantes. Um estudo recente publicado na revista Economics and Politics sugere uma relação entre o voto obrigatório e menores desigualdades na distribuição dos rendimentos. Mas os factores que causam a desigualdade são muitos e complexos, e não é garantido, de resto, que qualquer relação causal entre a obrigatoriedade do voto e a igualdade não seja, afinal, na direcção oposta à sugerida.

Em suma, nuns casos, não é garantido que o voto obrigatório resolva os problemas que é suposto resolver, enquanto que, noutros o problema que resolve pode lá não estar. De resto, há um outro problema que ninguém pode achar, creio, que mais participação possa por si só resolver: 90% de participação nas Europeias dariam a estas eleições efeitos mais claros, tornariam o sistema político europeu mais transparente e os “défices democráticos” nacionais e europeu uma coisa do passado? Perguntem aos belgas, aos gregos, aos luxemburgueses e aos cipriotas. Não creio que eles tenham melhores coisas a dizer sobre o assunto que os portugueses.