terça-feira, junho 02, 2009

Obrigados a votar?

Um dos temas mais curiosos que entrou pela campanha, pelas mãos de Carlos César, presidente do governo regional dos Açores, foi o do voto obrigatório. Segundo uma notícia do Público, as reacções por parte dos candidatos dos principais partidos foram invariavelmente negativas. Ilda Figueiredo e Vital Moreira consideraram a discussão inoportuna, à luz das alterações à lei eleitoral e à Constituição que exigiria. Paulo Rangel e Miguel Portas acham que o voto é um direito, nunca um dever. A notícia não relata o que Nuno Melo opina sobre o assunto, mas Paulo Portas parece fazer parte de uma improvável convergência com o BE e o PSD nesta matéria.

O tema merece um pouco mais de atenção, até porque os argumentos esgrimidos até ao momento não são particularmente interessantes ou decisivos. Do ponto de vista normativo, sobre o que a democracia é ou deveria ser, o argumento de que existe um “direito a não votar”, de que o voto não passa, na melhor das hipóteses, de um dever moral ou cívico e de que a imposição de penalizações a quem não vota é uma violação dos direitos e liberdades individuais é, claro, perfeitamente defensável. Tão defensável como a noção de que o voto seria apenas mais uma de muitas outras obrigações a que os cidadãos numa democracia podem ser vinculados  colocar os filhos na escola ou pagar impostos, por exemplo,  e de que ninguém é obrigado a fazer uma escolha que não deseje num sistema de voto obrigatório (mas apenas a comparecer na assembleia de voto, podendo votar em branco ou nulo). Anti-democrático? Vinte e nove democracias no Mundo prevêem hoje o voto obrigatório. Em países como a Bélgica, o Luxemburgo, a Austrália, o voto obrigatório é imposto com recurso sistemático a sanções monetárias consideráveis. É preciso algum contorcionismo argumentativo para conseguir estabelecer que estes três países, por exemplo, são menos “democráticos” ou menos “livres” que Portugal devido ao simples facto de punirem os eleitores que não votam.

Logo, num país onde o voto não é obrigatório, a discussão pode ser outra: resolveria o voto obrigatório os problemas que é suposto resolver e produziria os efeitos benéficos que lhe são atribuídos? O primeiro problema que o voto obrigatório alegadamente resolve é, claro, o da abstenção (se acharmos que a abstenção é um problema, o que não é tão consensual como possa parecer). Não há dúvida que, em certas condições, resolve mesmo. O factor que melhor explica a participação eleitoral nas eleições europeias é, precisamente, a existência ou não de voto obrigatório. Um estudo de Mark Franklin sobre as eleições europeias desde 1979 até 2004 mostra que, mesmo quando se tomam em conta os efeitos de outros factores, os países com voto obrigatório tiveram taxas de participação eleitoral 30 pontos acima dos restantes. Contudo, isso é verdade apenas na medida em que as sanções por não votar sejam efectivamente aplicadas. Num país como a Grécia, onde o voto é obrigatório, a abstenção nas últimas europeias chegou quase aos 40 por cento. Isso sucede porque, na Grécia, a obrigatoriedade do voto é principalmente um simbolismo legal sem sanções reais. E num país como Portugal, onde permanece incerteza sobre algo tão simples como precisão e a actualização dos cadernos eleitorais e onde o sistema judicial funciona com a esplendorosa eficiência de todos conhecida, as dúvidas sobre a possibilidade de criar um sistema com sanções efectivas para os abstencionistas e isenções justas para aqueles que de facto não pudessem votar são, naturalmente, muitas.

O segundo problema que o voto obrigatório alegadamente ajudaria a resolver seria o do desinteresse, desinformação e cinismo do eleitorado em relação à política. Deste ponto de vista, levados inicialmente a votar pela obrigação de o fazer, os eleitores acabariam por obter mais informação e desenvolver mais interesse pela política. Mas não há provas de que assim seja. Num estudo recentemente realizado na Bélgica, Bart Engelen e Marc Hooghe compararam os níveis de informação política dos eleitores que afirmaram votar meramente para evitar a sanção com os restantes, mostrando que os primeiros permanecem menos informados e interessados na política. E uma experiência recente no Canadá, comparando dois grupos de estudantes – uns que receberam um incentivo financeiro por votarem e outros não – mostra que esse incentivo não produziu consequências na sua motivação para se informarem sobre as eleições.

O terceiro problema que o voto obrigatório supostamente resolve é o da participação assimétrica de grupos sociais e ideológicos. Naturalmente, em países como a Bélgica ou a Austrália, pobres e ricos, mais ou menos instruídos e pessoas que se situam à esquerda ou à direita participam igualmente nas eleições. O mesmo pode não suceder noutros contextos onde o voto não é obrigatório. Desta forma, a obrigatoriedade do voto serviria um propósito de igualdade política: se todos votarem, os interesses de todos serão tomados em conta na representação, nas decisões políticas e nas políticas públicas. Mas se é verdade que, por exemplo, nos Estados Unidos, os mais pobres, os menos instruídos e as minorias étnicas votam menos, isto não se passa da mesma forma em todos os contextos. Em Portugal, por exemplo, o rendimento, o status social e a instrução têm efeitos diminutos na participação eleitoral, e o mesmo sucede com o posicionamento ideológico à esquerda ou à direita. Muitos outros países exibem padrões semelhantes. Um estudo recente publicado na revista Economics and Politics sugere uma relação entre o voto obrigatório e menores desigualdades na distribuição dos rendimentos. Mas os factores que causam a desigualdade são muitos e complexos, e não é garantido, de resto, que qualquer relação causal entre a obrigatoriedade do voto e a igualdade não seja, afinal, na direcção oposta à sugerida.

Em suma, nuns casos, não é garantido que o voto obrigatório resolva os problemas que é suposto resolver, enquanto que, noutros o problema que resolve pode lá não estar. De resto, há um outro problema que ninguém pode achar, creio, que mais participação possa por si só resolver: 90% de participação nas Europeias dariam a estas eleições efeitos mais claros, tornariam o sistema político europeu mais transparente e os “défices democráticos” nacionais e europeu uma coisa do passado? Perguntem aos belgas, aos gregos, aos luxemburgueses e aos cipriotas. Não creio que eles tenham melhores coisas a dizer sobre o assunto que os portugueses.