terça-feira, fevereiro 19, 2008

Um mundo irreal

António Costa veio dizer que existe uma campanha mediática contra o primeiro-ministro, orquestrada pelo PÚBLICO, pelo seu director e pelo seu proprietário. Luís Filipe Menezes, retomando argumentos antigos, acha que o tempo de antena que a RTP devota ao comentário político devia ser loteado pelos principais partidos e suas tendências. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social devota uma parte considerável dos seus recursos a avaliar o "rigor informativo" dos diversos órgãos de comunicação e o tempo que devotam a este ou aquele partido ou líder, assim zelando pela "independência" dos órgãos de comunicação social em relação aos poderes político e económico. Não há eleições em Portugal que passem sem uma boa polémica sobre conspirações dos institutos de sondagens e da imprensa que as divulga contra este ou aquele candidato ou partido. Um estrangeiro que chegue a Portugal e se depare com tudo isto, julgará ter aterrado na Venezuela. E andamos nisto desde que me recordo de prestar alguma atenção à política: a imparcialidade da comunicação social (pública ou privada) e as alegadas manipulações e conspirações contra este ou aquele partido ou interesse são um tema quase permanente na agenda política portuguesa.

Parte da explicação para isto não será exclusivamente nacional. É simplesmente humana. Num estudo já clássico realizado em 1982, sobre aquilo que acabou por ficar consagrado na bibliografia com a designação de hostile media effect, três psicólogos norte-americanos pediram a mais de uma centena de alunos da Universidade de Stanford que assistissem a um bloco de notícias sobre os massacres de Sabra e de Chatilla. Antes do visionamento, os estudantes respondiam a um questionário onde se media o seu conhecimento factual sobre o que se tinha passado, assim como a sua simpatia ou antipatia em relação aos actores relevantes. Após assistirem aos segmentos noticiosos - iguais para todos os participantes e retirados de emissões reais de cadeias noticiosas norte-americanas - esses estudantes responderam a um novo questionário, onde avaliavam o grau de imparcialidade do que tinham acabado de assistir. Os resultados descrevem-se de forma simples: enquanto os estudantes pró-israelitas avaliaram as notícias como sendo pró-árabes, os estudantes pró-árabes avaliaram as notícias como sendo pró-israelitas. Mais interessante ainda, este enviesamento na percepção do grau de parcialidade das notícias não diminuía entre os estudantes com maior conhecimento dos factos. Pelo contrário, paradoxalmente, quanto mais informados estavam sobre o tema, mais os estudantes viam as notícias como estando enviesadas contra o lado com o qual mais simpatizavam. Por outras palavras, estamos todos convencidos de que existe uma "verdade dos factos" e um mundo que pode ser facilmente pintado a preto e branco. Mas, como a cor que vemos nessa "verdade" depende das nossas preferências e inclinações, tudo o que tenha tons de cinzento é visto como sendo favorável aos nossos adversários e, logo, uma "mentira" ou uma "manipulação". Que os mais informados ainda sejam mais atreitos a esta enviesamento cognitivo mostra como a informação é usada para confirmar preconceitos em vez de os afastar.

Mas imaginemos que esta espécie de mania de perseguição pela comunicação social, fenómeno psicológico quase universal, tem alguns fundamentos reais. Também não seria surpreendente que assim fosse. Como imaginar que as direcções editoriais dos órgãos de comunicação social são compostas por pessoas sem preferências políticas e ideológicas, que os seus proprietários não têm interesses que gostariam de ver satisfeitos e que nada disso se reflecte no conteúdo noticioso? Mas o debate em Portugal sobre estes temas permanece num mundo de "faz de conta". É um mundo em que se espera imparcialidade, neutralidade e equilíbrio de todos os órgãos de comunicação social. Mais grave ainda, é um mundo em que, na - inevitável - ausência desses maravilhosos e democráticos atributos, se espera e exige muitas vezes uma qualquer - indefinida - regulação e resolução do "problema". Parte disto resulta do facto de, em Portugal, ter existido até muito tarde na imprensa escrita um enorme sector público, que foi, durante as primeiras duas décadas da nossa democracia, objecto de óbvia manipulação política. Desde então, a "falta de independência" da comunicação social entrou como tema legítimo de combate na agenda política portuguesa para dela nunca mais sair. Por outro lado, isto resulta também da dimensão reduzidíssima do mercado de leitores de jornais em Portugal, que fez com que a criação de órgãos de imprensa escrita alinhados de forma mais ou menos explícita com correntes ideológicas ou partidos políticos tenha sido sempre economicamente inviável. Logo, na ausência de órgãos assumidamente sintonizados com este ou aquele partido, o debate sobre estes temas em Portugal passa-se num mundo fictício em que parece legítimo esperar e pedir que, por exemplo, o PÚBLICO, o Diário de Notícias ou o Expresso e as suas direcções editoriais não tenham agendas próprias, temas dilectos e, porque não dizê-lo, preferências ideológicas e objectivos e adversários políticos. Aqui ao lado, em Espanha, debates deste género sobre a "imparcialidade" do El Mundo, do ABC ou do El Pais, sobre como "zelar" - palavra horrível - pela independência de órgãos de comunicação privados ou sobre como garantir a "correcção" das sondagens feitas de institutos privados seriam em grande medida destituídos de sentido. Mas em Portugal, pelos vistos, não são.

Mas suponho que teremos de ser tolerantes. Uma das coisas mais curiosas que me ficaram das minhas raras interacções com responsáveis político-partidários é a sua tendência para a obsessão com a comunicação social, com a perseguição que sentem ser-lhes movida pelos jornais ou pela televisão, com as alegadas distorções e manipulações das sondagens ou com o que está por detrás das opiniões de malévolos comentadores. Mas compreendamos que este é, afinal, o "mundo real" dos políticos (e, em grande medida, de muitos jornalistas), só ocasionalmente entremeado por alguns indicadores estatísticos e umas visitas "ao terreno" organizadas pelas estruturais locais dos partidos. Entre eleições, a política é um jogo onde não há golos, como no futebol, ou pontos, como no boxe. Todos querem saber "quem está a ganhar", mas não há outros indicadores que não sejam as tendências das sondagens, os editoriais dos jornais e as notícias das secções de política. Tudo bem. Só se espera que esta obsessão não os faça esquecer que há outro mundo, bem menos irreal, no qual vivem todos os restantes portugueses.

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

O regresso das ideias

Não há evento político seguido com maior atenção no mundo do que a eleição do Presidente dos Estados Unidos. E, no entanto, esta visibilidade por vezes não chega para afastar alguns mitos. O principal é talvez o de que, no fundamental, os principais candidatos dos dois grandes partidos têm posições que, à luz da experiência europeia, seriam quase indistinguíveis. E de que os eleitores americanos, quando se trata de escolher em que candidato votar, dão muito mais importância às personalidades, qualidades pessoais e "imagens" dos candidatos do que às suas propostas ou à maneira como elas afectam os interesses dos grupos sociais. É um mito que não resiste à análise mais superficial da informação disponível.

As supostas convergências entre os principais candidatos são, desde logo, difíceis de detectar quando observamos as suas declarações públicas e programáticas. Pelo lado democrata, quer Clinton quer Obama defendem o aumento dos impostos sobre as famílias de mais altos rendimentos, que deverão, por sua vez, servir para financiar (em conjunto com as grandes empresas) seguros de saúde obrigatórios (para todos, no caso de Clinton, para os menores de idade, no caso de Obama). E ao passo que Clinton defende um plano de investimento e subsídios públicos para lidar com a crise económica, Obama propõe o aumento dos impostos sobre os rendimentos de capitais. Pelo lado republicano, McCain e Romney opõem-se a estes planos, defendendo a diminuição (ou mesmo eliminação) dos impostos imobiliários e, no caso do segundo, a diminuição dos impostos sobre as empresas e a eliminação daqueles que incidem sobre os rendimentos de capitais para a "classe média". No tema da saúde, McCain e Romney enfatizam a diminuição dos custos, mas opõem-se a qualquer obrigatoriedade de contratação e financiamento estatal de seguros. E a lista de diferenças entre os candidatos democratas e republicanos continua, quase interminável, desde o tema do aborto até ao Iraque. A imigração é dos poucos temas em que as posições se confundem, com Romney a ser o único a rejeitar a possibilidade de legalização para imigrantes ilegais. Mas em quase tudo o resto, as diferenças são de uma clareza que, admita-se, já dificilmente se encontra na competição política entre partidos de Governo no contexto europeu.

O outro lado do mito prevalecente é que, para os eleitores americanos, o que mais conta seria a avaliação das qualidades pessoais dos candidatos, em campanhas dominadas pela tecnologia e pela televisão onde a forma - a "imagem" - prevaleceria sobre o conteúdo - as "ideias". É verdade que, especialmente a partir dos anos 60, a coligação forjada pelo New Deal entre sindicalistas, minorias sociais e o eleitorado de mais baixos rendimentos se foi esboroando, como resultado da dessegregação racial no Sul, da expansão das classes médias e da crescente saliência dos temas de natureza moral e cultural. E é também verdade que tudo o que tem a ver com a imagem pública dos candidatos é estudado e preparado ao pormenor. Mas estes factos não nos devem fazer esquecer outros que, de resto, marcam de forma muito mais clara as diferenças entre a política como se faz nos EUA e nas democracias europeias. Primeiro, apesar do seu declínio, há clivagens sociais que continuam a marcar de forma previsível e decisiva o comportamento eleitoral: nas eleições de 2004, 90 por cento dos negros, 70 por cento dos hispânicos e 60 por cento dos sindicalizados votaram em John Kerry, ao passo que Bush dominou entre os eleitores dos subúrbios das grandes cidades, no meio rural e entre as famílias de mais altos rendimentos. Segundo, mesmo que a pertença a grupos sociais tenha enfraquecido, o mesmo não sucede com a pertença a identidades políticas e ideológicas. Em 2004, mais de dois terços dos eleitores americanos detectaram diferenças ideológicas claras entre Kerry e Bush, e a esmagadora maioria desses votou de acordo com a relação entre as suas posições e as dos candidatos.

E a prevalência da "imagem" sobre o "conteúdo", estimulada pelas modernas campanhas eleitorais e apoiada por sondagens e novas tecnologias de informação e de comunicação? Deste ponto de vista, é curioso verificar como um dos aspectos mais importantes da interacção entre as novas tecnologias e as campanhas é a forma como as primeiras vêm potenciado decisões cada vez mais baseadas em "ideias" em vez de "imagens". De há anos para cá, a Internet contém vários sites onde se faz o inventário das declarações públicas dos candidatos sobre os mais variados temas, ajudando os eleitores a aferirem as suas posições e suas mudanças ao longo do tempo. Outros sites facultam análises sistemáticas do comportamento de voto dos eleitos para o Senado, a Câmara dos Representantes e os parlamentos estaduais, ajudando os eleitores a confrontarem a retórica com o comportamento dos que elegem. E há experiências recentes de smartvoting que permitem aos eleitores, através da resposta a questionários, a comparação entre as suas próprias opiniões e as dos candidatos. É certo que estes instrumentos, para além de serem falíveis e exigirem competências de que apenas alguns eleitores dispõem, simplificam muito o que conta na política: vê-se reduzida a um mundo de "ideias" e "promessas", ignorando como se faz também do confronto entre esse mundo e os constrangimentos colocados pela realidade. E não ignoro as diferenças tremendas entre sistemas políticos que favorecem ou inibem este tipo de abordagem da vida política. Contudo, num panorama político como o português - tão frequentemente feito de reviravoltas ideológicas, promessas abandonadas, esquecimentos selectivos e intrigas de vão de escada - esta "simplificação" é bem capaz de ser aquilo de que mais estamos a precisar neste momento.