terça-feira, outubro 24, 2006

A opinião pública e a despenalização do aborto

Em 1992, o cientista político John Zaller escreveu um livro intitulado The nature and origins of mass opinion (Cambridge University Press), onde pretendeu encontrar uma explicação para fenómenos que há muito tempo intrigavam os estudiosos da opinião pública. Quando sujeitos à mesma pergunta de sondagem para sondagem, os mesmos inquiridos dão frequentemente respostas contraditórias. Num único inquérito, muitas pessoas transmitem opiniões diferentes sobre um mesmo tema, dependendo de ligeiras modificações na formulação das perguntas. Sondagens diferentes feitas num curto espaço de tempo podem produzir resultados dramaticamente diferentes, dependendo da linguagem utilizada nas questões ou, tão só, das perguntas que as antecedem. Antes de Zaller, a explicação destes fenómenos tendia a partir do pressuposto que de que eram as imperfeições do método que impediam que acedêssemos de forma fiável às "reais" opiniões dos indivíduos. A resposta de Zaller, contudo, consistiu em virar este pressuposto do avesso: a explicação, segundo ele, é que a maior parte das pessoas não têm verdadeiras opiniões seja sobre o que for.

O que têm são duas outras coisas: "predisposições" e "considerações". As primeiras são crenças e valores muito genéricos, tais como o igualitarismo, o individualismo ou os sentimentos de identificação com os interesses de um grupo. Elas não são, contudo, de aplicação directa quando de trata de opinar sobre um tema concreto. É preciso um grau anormalmente elevado de sofisticação política para conseguir converter de forma coerente e sistemática estas orientações gerais em tomadas de posição concretas e, para além disso, essas predisposições podem tornar-se intrinsecamente contraditórias quando se trata de apreciar todos os aspectos de um mesmo tema. As "considerações" são, por sua vez, argumentos a favor ou contra uma determinada posição, que vão sendo recolhidos pelos indivíduos através da exposição aos meios de comunicação social. Sucede que, nas democracias, circulam muitas considerações de sinal oposto sobre um mesmo tema, e a consequência é que os cidadãos acabam por acolher muitas considerações contraditórias sobre um único assunto. O que acontece, então, quando nos pedem que emitamos uma opinião? Geralmente, damo-la. Mas aquilo que estamos a dar é apenas a aplicação, a um determinado estímulo, de uma das várias considerações que normalmente coexistem na nossa cabeça. A que acaba por "sair" em cada caso concreto depende, em parte, do acaso e, de outro ponto de vista, da maneira o assunto é enquadrado na pergunta.

Vem tudo isto a propósito do referendo que se aproxima sobre a despenalização do aborto e daquilo que nós julgamos saber acerca da "opinião" dos portugueses. Há temas como, por exemplo, a política fiscal ou a segurança social, em quase tudo se joga em termos de conflitos de interesses. Todos podemos apurar de que lado estamos e todos sabemos - mesmo quando fingimos o contrário - que os recursos são finitos. É isto, aliás, que torna possível a negociação e o compromisso. Contudo, tudo muda quando se trata de saber como o Estado deverá regular os comportamentos dos indivíduos. Ao contrário do que sucede com os recursos materiais, a opção de regulação não se mede em quantidades e os interesses envolvidos são difusos. Entram em confronto valores fundamentais que, ainda por cima, podem ser defendidos ao mesmo tempo pela mesma pessoa. Quem pensará que o respeito pela vida ou pela escolha da mulher não merecem ser ambos levados a sério? E como se isto não bastasse, o tema do aborto é, como outros, multi-dimensional. Que razões deverão ser invocáveis? Quantas semanas? Que acompanhamento médico e psicológico, se é que deve existir? Rede pública, clínicas privadas ou ambas? Quem e como é punido se violar a lei, seja ela qual for? A consequência fundamental de tudo isto é que, para usar a linguagem de Zaller, este é um tema sobre o qual todos ou quase todos teremos várias considerações contraditórias e a vários níveis nas nossas cabeças.

Daqui resultam implicações empíricas e um corolário. Nos últimos dias, já vimos sondagens sobre a despenalização do aborto, realizadas num curto espaço de tempo, produzirem resultados altamente discrepantes. As discrepâncias não dependem apenas das opções técnicas seguidas por cada instituto mas também de coisas tão simples como a mera formulação concreta de uma pergunta ou o local exacto no questionário onde ela aparece: o mesmo instituto, entre Fevereiro de 2004 e Outubro de 2006, e usando a mesma metodologia de inquirição e amostragem, já reportou resultados onde a razão entre as percentagens de apoiantes e opositores da despenalização variou entre, respectivamente, quase seis para um e pouco mais de um para um. Também já vimos que, numa única sondagem, enquanto mais de 50 por cento dos inquiridos dizem que votariam sim à pergunta proposta para o referendo, apenas 29 por cento respondem afirmativamente quando se lhes pergunta se o aborto deve ser legal nos casos em que a mulher não deseje ter o filho. Logo, à luz da informação disponível, o que parece prevalecer entre a opinião pública é a incerteza e a ambivalência.

O corolário é mais simples: nada está decidido. Se Zaller tiver razão, dois factores serão absolutamente determinantes no desfecho do referendo. O primeiro é a forma como o assunto vai ser "enquadrado" no discurso mediático. Desse enquadramento depende, em grande medida, que tipo de considerações - favoráveis ou desfavoráveis - se tornarão mais acessíveis e aplicáveis para os eleitores quando de tratar de tomar uma posição. Só para dar um exemplo, um enquadramento novo e que começa a ganhar destaque nalguns órgãos de comunicação social é a ideia de que a despenalização do aborto será fonte de lucro para clínicas privadas estrangeiras que se irão instalar em Portugal. É em torno de coisas como estas que se ganham ou perdem referendos em temas como estes. O segundo factor determinante será a posição dos partidos políticos. A maneira como os eleitores costumam resolver as suas incertezas é olhando para as pistas fornecidas pelos grupos políticos com os quais se identificam. Mas se deles vier apenas ambiguidade e calculismo, a resposta será imprevisível. Foi assim que se decidiu o referendo de 1998. É assim que se decidirá o de 2007.

terça-feira, outubro 10, 2006

A nova Europa

Nas vésperas da invasão do Iraque, Donald Rumsfeld, secretário de defesa norte-americano, falou da existência de uma "nova Europa", um bloco de países europeus com posições alternativas às da aliança franco-alemã e que seria mais favorável ao papel dos Estados Unidos do mundo. Há poucas semanas, foram divulgados os resultados de um conjunto de inquéritos de opinião realizados nos Estados Unidos e em doze países europeus sobre temas de política externa e a imagem que europeus e americanos têm do seu papel na cena internacional. O projecto, intitulado Transatlantic Trends, vai na sua quarta edição anual e, graças ao apoio da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, inclui Portugal desde 2003. Os resultados ajudam a perceber o que aconteceu à "nova Europa" de Rumsfeld.

Previsivelmente, quando questionados sobre se a parceria entre os Estados Unidos e a União Europeia em questões diplomáticas e de segurança se deveria estreitar ou se, pelo contrário, a UE deveria assumir uma atitude mais independente dos Estados Unidos, mais de metade dos franceses e dos alemães optam pela segunda opção. Contudo, é curioso verificar que o mesmo sucede com os britânicos, os italianos, os portugueses, os espanhóis ou os holandeses. Destes países, só no Reino Unido e na Holanda há maiorias que consideram desejável que os Estados Unidos utilizem uma forte liderança nas questões mundiais, e mesmo nestes casos trata-se de maiorias que se vêm estreitando rapidamente desde 2002. E quem pensar que a "nova Europa" de Rumsfeld está, afinal, localizada mais a leste, fará melhor em olhar outra vez. Eslováquia e Bulgária não se distinguem, a este nível, dos países da Europa ocidental, e até na Polónia, apesar do seu justificado receio histórico dos vizinhos alemães e russos, há mais pessoas a classificarem a liderança dos Estados Unidos como "indesejável" do que o contrário. Sobra a Roménia, indefectível apoiante dos Estados Unidos neste inquérito. Com a próxima entrada do país na UE no próximo ano, deverá ser coisa de pouca dura.

A coisa não fica por aqui. Cerca de 80 por cento dos cidadãos americanos concordam com a ideia de que, "sob certas condições, a guerra é necessária para obter justiça". A opinião pública nos Estados Unidos continua, assim, a ser dominada por uma peculiar combinação entre aqueles que Ronald Asmus, Philip Everts e Pierangelo Isernia, num artigo publicado em 2004 na revista Policy Review, designavam como os "falcões" e os "pragmáticos". Os primeiros acreditam na preeminência do poder militar e estão dispostos a utilizá-lo; os segundos crêem-no menos importante que outros poderes (o económico, por exemplo), mas não excluem a sua utilização. Contudo, na Europa, ao passo que os "falcões" praticamente não existem, os "pragmáticos" estão também em vias de extinção. Nos sete países europeus onde este estudo vem sendo conduzido há mais tempo - França, Alemanha, Reino Unido, Holanda, Itália Polónia e Portugal - metade da população defendia, em 2003, a ideia de que a guerra pode ser necessária nalgumas circunstâncias. Hoje, passados três anos, essa percentagem diminuiu, em média, para um terço da população. As consequências desta clivagem entre a Europa e os Estados Unidos são visíveis, por exemplo, nas opiniões que prevalecem em relação ao que fazer se o Irão acabar por adquirir armas nucleares: entre os países europeus, só em França existe uma maioria (estreita) capaz de conceber uma acção militar contra o Irão mesmo como derradeiro recurso, e há já parcelas significativas das populações de todos os países europeus preparadas para aceitar a inevitabilidade da conversão do Irão numa potência nuclear. Os Estados Unidos estão, deste ponto de vista, cada vez mais sós.

Finalmente, Portugal. Dividido entre uma vocação atlantista e outra europeia, entre as tradicionais alianças e os novos compromissos europeus? Nem por isso. Entre as elites diplomáticas e os analistas da inserção geo-estratégica de Portugal, os velhos hábitos demorarão a morrer. Mas entre a população, a completa "europeização" é evidente, mesmo numa escala de tempo tão curta. No que respeita aos Estados Unidos, a convergência das opiniões dos portugueses com as detectadas nos países do resto da Europa é total. E quanto ao papel da União Europeia como potência internacional, os portugueses só se distinguem pelo seu especial entusiasmo em relação ao reforço do poder militar da União, à centralização da política externa em Bruxelas ou ainda ao papel da UE na promoção da democracia no Mundo.

O resultado final de tudo isto é particularmente curioso. Por toda a União Europeia, especialmente após os referendos em França e na Holanda, o discurso prevalecente entre as elites políticas e intelectuais é pessimista, detectando-se crises de identidade, dores de crescimento e falta de rumo. Os fracassos políticos sucedem-se, sendo o mais recente o da cooperação policial e judiciária. Contudo, entre as populações, o consenso aparece onde menos se esperaria: em matérias onde as diferentes posições geo-estratégicas e os interesses e identidades nacionais pareceriam irreconciliáveis. O conteúdo substantivo desse consenso e a forma como ele irá constranger as acções dos estados europeus pode agradar mais a uns do que a outros. A mim, por exemplo, não me agrada completamente a convicção de que o soft power pode produzir alguns efeitos sem ser acompanhado por algum hard power. Mas o que eu penso interessa pouco. A "nova Europa" já existe, mas não é aquela que Rumsfeld supunha existir. É aquela que Rumsfeld e os seus colegas criaram.