A nova Europa
Nas vésperas da invasão do Iraque, Donald Rumsfeld, secretário de defesa norte-americano, falou da existência de uma "nova Europa", um bloco de países europeus com posições alternativas às da aliança franco-alemã e que seria mais favorável ao papel dos Estados Unidos do mundo. Há poucas semanas, foram divulgados os resultados de um conjunto de inquéritos de opinião realizados nos Estados Unidos e em doze países europeus sobre temas de política externa e a imagem que europeus e americanos têm do seu papel na cena internacional. O projecto, intitulado Transatlantic Trends, vai na sua quarta edição anual e, graças ao apoio da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, inclui Portugal desde 2003. Os resultados ajudam a perceber o que aconteceu à "nova Europa" de Rumsfeld.
Previsivelmente, quando questionados sobre se a parceria entre os Estados Unidos e a União Europeia em questões diplomáticas e de segurança se deveria estreitar ou se, pelo contrário, a UE deveria assumir uma atitude mais independente dos Estados Unidos, mais de metade dos franceses e dos alemães optam pela segunda opção. Contudo, é curioso verificar que o mesmo sucede com os britânicos, os italianos, os portugueses, os espanhóis ou os holandeses. Destes países, só no Reino Unido e na Holanda há maiorias que consideram desejável que os Estados Unidos utilizem uma forte liderança nas questões mundiais, e mesmo nestes casos trata-se de maiorias que se vêm estreitando rapidamente desde 2002. E quem pensar que a "nova Europa" de Rumsfeld está, afinal, localizada mais a leste, fará melhor em olhar outra vez. Eslováquia e Bulgária não se distinguem, a este nível, dos países da Europa ocidental, e até na Polónia, apesar do seu justificado receio histórico dos vizinhos alemães e russos, há mais pessoas a classificarem a liderança dos Estados Unidos como "indesejável" do que o contrário. Sobra a Roménia, indefectível apoiante dos Estados Unidos neste inquérito. Com a próxima entrada do país na UE no próximo ano, deverá ser coisa de pouca dura.
A coisa não fica por aqui. Cerca de 80 por cento dos cidadãos americanos concordam com a ideia de que, "sob certas condições, a guerra é necessária para obter justiça". A opinião pública nos Estados Unidos continua, assim, a ser dominada por uma peculiar combinação entre aqueles que Ronald Asmus, Philip Everts e Pierangelo Isernia, num artigo publicado em 2004 na revista Policy Review, designavam como os "falcões" e os "pragmáticos". Os primeiros acreditam na preeminência do poder militar e estão dispostos a utilizá-lo; os segundos crêem-no menos importante que outros poderes (o económico, por exemplo), mas não excluem a sua utilização. Contudo, na Europa, ao passo que os "falcões" praticamente não existem, os "pragmáticos" estão também em vias de extinção. Nos sete países europeus onde este estudo vem sendo conduzido há mais tempo - França, Alemanha, Reino Unido, Holanda, Itália Polónia e Portugal - metade da população defendia, em 2003, a ideia de que a guerra pode ser necessária nalgumas circunstâncias. Hoje, passados três anos, essa percentagem diminuiu, em média, para um terço da população. As consequências desta clivagem entre a Europa e os Estados Unidos são visíveis, por exemplo, nas opiniões que prevalecem em relação ao que fazer se o Irão acabar por adquirir armas nucleares: entre os países europeus, só em França existe uma maioria (estreita) capaz de conceber uma acção militar contra o Irão mesmo como derradeiro recurso, e há já parcelas significativas das populações de todos os países europeus preparadas para aceitar a inevitabilidade da conversão do Irão numa potência nuclear. Os Estados Unidos estão, deste ponto de vista, cada vez mais sós.
Finalmente, Portugal. Dividido entre uma vocação atlantista e outra europeia, entre as tradicionais alianças e os novos compromissos europeus? Nem por isso. Entre as elites diplomáticas e os analistas da inserção geo-estratégica de Portugal, os velhos hábitos demorarão a morrer. Mas entre a população, a completa "europeização" é evidente, mesmo numa escala de tempo tão curta. No que respeita aos Estados Unidos, a convergência das opiniões dos portugueses com as detectadas nos países do resto da Europa é total. E quanto ao papel da União Europeia como potência internacional, os portugueses só se distinguem pelo seu especial entusiasmo em relação ao reforço do poder militar da União, à centralização da política externa em Bruxelas ou ainda ao papel da UE na promoção da democracia no Mundo.
O resultado final de tudo isto é particularmente curioso. Por toda a União Europeia, especialmente após os referendos em França e na Holanda, o discurso prevalecente entre as elites políticas e intelectuais é pessimista, detectando-se crises de identidade, dores de crescimento e falta de rumo. Os fracassos políticos sucedem-se, sendo o mais recente o da cooperação policial e judiciária. Contudo, entre as populações, o consenso aparece onde menos se esperaria: em matérias onde as diferentes posições geo-estratégicas e os interesses e identidades nacionais pareceriam irreconciliáveis. O conteúdo substantivo desse consenso e a forma como ele irá constranger as acções dos estados europeus pode agradar mais a uns do que a outros. A mim, por exemplo, não me agrada completamente a convicção de que o soft power pode produzir alguns efeitos sem ser acompanhado por algum hard power. Mas o que eu penso interessa pouco. A "nova Europa" já existe, mas não é aquela que Rumsfeld supunha existir. É aquela que Rumsfeld e os seus colegas criaram.
Previsivelmente, quando questionados sobre se a parceria entre os Estados Unidos e a União Europeia em questões diplomáticas e de segurança se deveria estreitar ou se, pelo contrário, a UE deveria assumir uma atitude mais independente dos Estados Unidos, mais de metade dos franceses e dos alemães optam pela segunda opção. Contudo, é curioso verificar que o mesmo sucede com os britânicos, os italianos, os portugueses, os espanhóis ou os holandeses. Destes países, só no Reino Unido e na Holanda há maiorias que consideram desejável que os Estados Unidos utilizem uma forte liderança nas questões mundiais, e mesmo nestes casos trata-se de maiorias que se vêm estreitando rapidamente desde 2002. E quem pensar que a "nova Europa" de Rumsfeld está, afinal, localizada mais a leste, fará melhor em olhar outra vez. Eslováquia e Bulgária não se distinguem, a este nível, dos países da Europa ocidental, e até na Polónia, apesar do seu justificado receio histórico dos vizinhos alemães e russos, há mais pessoas a classificarem a liderança dos Estados Unidos como "indesejável" do que o contrário. Sobra a Roménia, indefectível apoiante dos Estados Unidos neste inquérito. Com a próxima entrada do país na UE no próximo ano, deverá ser coisa de pouca dura.
A coisa não fica por aqui. Cerca de 80 por cento dos cidadãos americanos concordam com a ideia de que, "sob certas condições, a guerra é necessária para obter justiça". A opinião pública nos Estados Unidos continua, assim, a ser dominada por uma peculiar combinação entre aqueles que Ronald Asmus, Philip Everts e Pierangelo Isernia, num artigo publicado em 2004 na revista Policy Review, designavam como os "falcões" e os "pragmáticos". Os primeiros acreditam na preeminência do poder militar e estão dispostos a utilizá-lo; os segundos crêem-no menos importante que outros poderes (o económico, por exemplo), mas não excluem a sua utilização. Contudo, na Europa, ao passo que os "falcões" praticamente não existem, os "pragmáticos" estão também em vias de extinção. Nos sete países europeus onde este estudo vem sendo conduzido há mais tempo - França, Alemanha, Reino Unido, Holanda, Itália Polónia e Portugal - metade da população defendia, em 2003, a ideia de que a guerra pode ser necessária nalgumas circunstâncias. Hoje, passados três anos, essa percentagem diminuiu, em média, para um terço da população. As consequências desta clivagem entre a Europa e os Estados Unidos são visíveis, por exemplo, nas opiniões que prevalecem em relação ao que fazer se o Irão acabar por adquirir armas nucleares: entre os países europeus, só em França existe uma maioria (estreita) capaz de conceber uma acção militar contra o Irão mesmo como derradeiro recurso, e há já parcelas significativas das populações de todos os países europeus preparadas para aceitar a inevitabilidade da conversão do Irão numa potência nuclear. Os Estados Unidos estão, deste ponto de vista, cada vez mais sós.
Finalmente, Portugal. Dividido entre uma vocação atlantista e outra europeia, entre as tradicionais alianças e os novos compromissos europeus? Nem por isso. Entre as elites diplomáticas e os analistas da inserção geo-estratégica de Portugal, os velhos hábitos demorarão a morrer. Mas entre a população, a completa "europeização" é evidente, mesmo numa escala de tempo tão curta. No que respeita aos Estados Unidos, a convergência das opiniões dos portugueses com as detectadas nos países do resto da Europa é total. E quanto ao papel da União Europeia como potência internacional, os portugueses só se distinguem pelo seu especial entusiasmo em relação ao reforço do poder militar da União, à centralização da política externa em Bruxelas ou ainda ao papel da UE na promoção da democracia no Mundo.
O resultado final de tudo isto é particularmente curioso. Por toda a União Europeia, especialmente após os referendos em França e na Holanda, o discurso prevalecente entre as elites políticas e intelectuais é pessimista, detectando-se crises de identidade, dores de crescimento e falta de rumo. Os fracassos políticos sucedem-se, sendo o mais recente o da cooperação policial e judiciária. Contudo, entre as populações, o consenso aparece onde menos se esperaria: em matérias onde as diferentes posições geo-estratégicas e os interesses e identidades nacionais pareceriam irreconciliáveis. O conteúdo substantivo desse consenso e a forma como ele irá constranger as acções dos estados europeus pode agradar mais a uns do que a outros. A mim, por exemplo, não me agrada completamente a convicção de que o soft power pode produzir alguns efeitos sem ser acompanhado por algum hard power. Mas o que eu penso interessa pouco. A "nova Europa" já existe, mas não é aquela que Rumsfeld supunha existir. É aquela que Rumsfeld e os seus colegas criaram.
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