O problema das receitas
A nacionalização das reservas de gás e petróleo levada a cabo pelo presidente Evo Morales fornece um exemplo — entre muitos possíveis — de como as receitas ideológicas tradicionais se revelam altamente deficientes para interpretar o mundo e conceber soluções para os problemas. O caso boliviano tem suscitado, em muitos dos comentários na imprensa, duas reacções genéricas. A primeira consiste em apresentá-lo como sintoma da rejeição popular das políticas “neo-liberais” seguidas nos últimos quinze anos na América Latina e do renascimento de “vias alternativas para enfrentar os desequilíbrios sociais”, numa suposta “viragem à esquerda” em toda a região. A segunda reacção é simétrica em relação à anterior, e consiste em descrever os acontecimentos na Bolívia como fazendo parte de uma onda de “populismos de esquerda” que atravessaria hoje a América Latina, cuja oposição ao “consenso de Washington” implicará um desvio catastrófico em relação à exemplar “receita” que, por exemplo, tinha transformado a Bolívia dos anos 90 num “caso de sucesso” aos olhos do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional.
Sucede, infelizmente, que estes esquemas interpretativos convivem mal com alguns factos. Por um lado, importa recordar que um dos aspectos mais curiosos das políticas de ajustamento seguidas na maioria dos países da América Latina a partir dos anos 90 é o facto de terem contado com substancial apoio político e social durante mais de uma década, apesar produzirem custos de curto prazo susceptíveis de gerar enorme descontentamento. É certo que esse apoio diminuir com a crise económica de 2000-2003. Mas um olhar pelos dados recolhidos pelo Latinobarómetro em 2005 revela uma realidade que continuará a ser, porventura, surpreendente para muitos. Por exemplo, mais de metade dos cidadãos da América Latina continuam a considerar que a economia de mercado é “o único sistema na base do qual o país pode chegar a ser desenvolvido” ou que “as empresas privadas são indispensáveis para o desenvolvimento”, mesmo em países como a Nicarágua, as Honduras e a própria Bolívia. E se é certo que o apoio às privatizações diminuiu com a crise económica, a verdade é que também ele voltou a crescer desde então.
Mais interessante ainda é verificar quem são e onde estão os opositores à liberalização económica. Como demonstra uma série de estudos dos economistas Eduardo Lora e Ugo Panizza (.pdf) para além de não haver sinais de uma deslocação dos eleitorados destes países para a esquerda, as correlações entre o seu posicionamento ideológico e as opiniões sobre a economia de mercado, o sector privado, o investimento externo ou as privatizações são, em geral, baixíssimas. Pelo contrário, aqueles que mais se opõem à liberalização económica não são necessariamente os estratos sociais mais pobres e desfavorecidos, mas sim aqueles que, seja qual for a sua classe social, pressentem que a corrupção é um problema importante nas suas sociedades e, especialmente, se sentem distantes do processo político e sem confiança nos partidos. Como assinalam os autores, num artigo publicado em 2003 no Journal of Democracy (mas cujas conclusões empíricas se mantêm válidas), “a rejeição [dos processos de reforma] não é mais forte nos países onde mais se avançou na liberalização económica, mas sim onde ela foi mais contaminada pela corrupção ou onde a regulação não foi capaz de prevenir práticas monopolistas”. Sobre a hostilidade intrínseca do “povo de esquerda” ao “neo-liberalismo”, estamos conversados.
Contudo, do outro lado da barricada ideológica, a miopia não é necessariamente menor. É certo que aqueles que permanecem defensores do “consenso de Washington” têm a seu favor o facto de ser difícil imaginar maiores custos sociais do que aqueles que resultaram da hiper-inflação dos anos 80 (com taxas acima dos 1.000% ao ano) em países como a Argentina, o Brasil, o Peru ou a Bolívia. Contudo, seria um erro sobrestimar os feitos ou subestimar os efeitos perversos daquilo que se que se seguiu, por exemplo, no caso da Bolívia: o esforço mais drástico de liberalização económica em toda a América Latina. Ao contrário daquilo que vão prometendo aqueles que encaram o crescimento económico com um fim em si mesmo, a distribuição dos seus benefícios foi de tal modo assimétrica que, para alguns sectores da população, não existiram de todo. Apesar da pobreza na Bolívia ter, até 2000, diminuído entre a população urbana, ela atinge hoje, exactamente como há vinte anos, mais de 80% da população rural (1). Ao mesmo tempo – e mais importante ainda — a pulverização dos anteriormente poderosos sindicatos, resultado das privatizações, acabou também por desarticular a única base institucionalizada de representação dos interesses das camadas sociais mais desfavorecidas e, logo, por aumentar a margem de manobra de uma das classes políticas mais oligárquicas de toda a América Latina, que repartiu uma grande parte dos benefícios do crescimento na base de um modelo predominantemente neo-patrimonialista. Repetiu-se, assim, uma história já conhecida: a de como, em sociedades com baixos níveis de desenvolvimento económico e institucional, a “receita” da liberalização económica acaba por quebrar as já ténues ligações entre a sociedade e o poder político e por abrir novas oportunidades para o clientelismo. No caso concreto da Bolívia, a proibição da cultura da coca, as fortes tradições de mobilização social do campesinato e a inusitada violência com que o regime lhe foi respondendo trataram do resto.
Logo, em vez de perderem tempo a lamentar o “populismo de esquerda” e as suas previsíveis consequências desastrosas, os defensores do defunto “consenso de Washington” fariam talvez melhor em ponderar exactamente como, quando e por quem foram criadas as oportunidades para a emergência de empreendedores políticos que, agora, são capazes de mobilizar na pior direcção o profundo desalento e cinismo político que atinge os cidadãos de vários países da América Latina. E desta vez, é favor evitar a receita do costume.
(1) Em 2002, 42,2% da população da Bolívia vivia com menos de $2,15 por dia a preços de 1993 (PPP). Em Portugal, essa percentagem, em 1994 (o Banco Mundial, a fonte que tenho à mão neste momento, não tem dados posteriores), era de 2%. No Brasil, em 2003, 21,3%. Com esta definição, se todos os milionários que vivem nos Estados Unidos se mudassem para a Bolívia, o "nível de pobreza" da Bolívia não "disparava", mas passava de uns chocantes 42% para uns igualmente chocantes 34%. Há brincadeiras que não têm graça nenhuma.
Sucede, infelizmente, que estes esquemas interpretativos convivem mal com alguns factos. Por um lado, importa recordar que um dos aspectos mais curiosos das políticas de ajustamento seguidas na maioria dos países da América Latina a partir dos anos 90 é o facto de terem contado com substancial apoio político e social durante mais de uma década, apesar produzirem custos de curto prazo susceptíveis de gerar enorme descontentamento. É certo que esse apoio diminuir com a crise económica de 2000-2003. Mas um olhar pelos dados recolhidos pelo Latinobarómetro em 2005 revela uma realidade que continuará a ser, porventura, surpreendente para muitos. Por exemplo, mais de metade dos cidadãos da América Latina continuam a considerar que a economia de mercado é “o único sistema na base do qual o país pode chegar a ser desenvolvido” ou que “as empresas privadas são indispensáveis para o desenvolvimento”, mesmo em países como a Nicarágua, as Honduras e a própria Bolívia. E se é certo que o apoio às privatizações diminuiu com a crise económica, a verdade é que também ele voltou a crescer desde então.
Mais interessante ainda é verificar quem são e onde estão os opositores à liberalização económica. Como demonstra uma série de estudos dos economistas Eduardo Lora e Ugo Panizza (.pdf) para além de não haver sinais de uma deslocação dos eleitorados destes países para a esquerda, as correlações entre o seu posicionamento ideológico e as opiniões sobre a economia de mercado, o sector privado, o investimento externo ou as privatizações são, em geral, baixíssimas. Pelo contrário, aqueles que mais se opõem à liberalização económica não são necessariamente os estratos sociais mais pobres e desfavorecidos, mas sim aqueles que, seja qual for a sua classe social, pressentem que a corrupção é um problema importante nas suas sociedades e, especialmente, se sentem distantes do processo político e sem confiança nos partidos. Como assinalam os autores, num artigo publicado em 2003 no Journal of Democracy (mas cujas conclusões empíricas se mantêm válidas), “a rejeição [dos processos de reforma] não é mais forte nos países onde mais se avançou na liberalização económica, mas sim onde ela foi mais contaminada pela corrupção ou onde a regulação não foi capaz de prevenir práticas monopolistas”. Sobre a hostilidade intrínseca do “povo de esquerda” ao “neo-liberalismo”, estamos conversados.
Contudo, do outro lado da barricada ideológica, a miopia não é necessariamente menor. É certo que aqueles que permanecem defensores do “consenso de Washington” têm a seu favor o facto de ser difícil imaginar maiores custos sociais do que aqueles que resultaram da hiper-inflação dos anos 80 (com taxas acima dos 1.000% ao ano) em países como a Argentina, o Brasil, o Peru ou a Bolívia. Contudo, seria um erro sobrestimar os feitos ou subestimar os efeitos perversos daquilo que se que se seguiu, por exemplo, no caso da Bolívia: o esforço mais drástico de liberalização económica em toda a América Latina. Ao contrário daquilo que vão prometendo aqueles que encaram o crescimento económico com um fim em si mesmo, a distribuição dos seus benefícios foi de tal modo assimétrica que, para alguns sectores da população, não existiram de todo. Apesar da pobreza na Bolívia ter, até 2000, diminuído entre a população urbana, ela atinge hoje, exactamente como há vinte anos, mais de 80% da população rural (1). Ao mesmo tempo – e mais importante ainda — a pulverização dos anteriormente poderosos sindicatos, resultado das privatizações, acabou também por desarticular a única base institucionalizada de representação dos interesses das camadas sociais mais desfavorecidas e, logo, por aumentar a margem de manobra de uma das classes políticas mais oligárquicas de toda a América Latina, que repartiu uma grande parte dos benefícios do crescimento na base de um modelo predominantemente neo-patrimonialista. Repetiu-se, assim, uma história já conhecida: a de como, em sociedades com baixos níveis de desenvolvimento económico e institucional, a “receita” da liberalização económica acaba por quebrar as já ténues ligações entre a sociedade e o poder político e por abrir novas oportunidades para o clientelismo. No caso concreto da Bolívia, a proibição da cultura da coca, as fortes tradições de mobilização social do campesinato e a inusitada violência com que o regime lhe foi respondendo trataram do resto.
Logo, em vez de perderem tempo a lamentar o “populismo de esquerda” e as suas previsíveis consequências desastrosas, os defensores do defunto “consenso de Washington” fariam talvez melhor em ponderar exactamente como, quando e por quem foram criadas as oportunidades para a emergência de empreendedores políticos que, agora, são capazes de mobilizar na pior direcção o profundo desalento e cinismo político que atinge os cidadãos de vários países da América Latina. E desta vez, é favor evitar a receita do costume.
(1) Em 2002, 42,2% da população da Bolívia vivia com menos de $2,15 por dia a preços de 1993 (PPP). Em Portugal, essa percentagem, em 1994 (o Banco Mundial, a fonte que tenho à mão neste momento, não tem dados posteriores), era de 2%. No Brasil, em 2003, 21,3%. Com esta definição, se todos os milionários que vivem nos Estados Unidos se mudassem para a Bolívia, o "nível de pobreza" da Bolívia não "disparava", mas passava de uns chocantes 42% para uns igualmente chocantes 34%. Há brincadeiras que não têm graça nenhuma.
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