Uma floresta de enganos
O absentismo dos deputados parece ser suficientemente grave para que, segundo se anuncia, o Presidente da República vá amanhã falar sobre o assunto no parlamento. Estamos em terreno de tal modo fértil para a demagogia e as banalidades que não estou seguro, confesso, de conseguir chegar ao fim deste texto sem incorrer numa ou noutras. Será então prudente que comece pelos factos.
O primeiro é que os parlamentares portugueses parecem ter adoptado para si próprios um dos mais duros regimes de punição de faltas às sessões plenárias existentes nas democracias ocidentais, prevendo — salvo motivo justificado — a perda de mandato por falta de comparência a apenas quatro sessões plenárias. Uma visita à base de dados da União Interparlamentar revela, por exemplo, que dos vinte e cinco regimentos dos parlamentos da União Europeia, apenas em quatro deles (Áustria, Finlândia, Letónia e Portugal) se prevê a perda de mandato de deputado por semelhante motivo. Na maioria dos casos existem apenas sanções pecuniárias, havendo inclusivamente seis países — Bélgica, Dinamarca, Holanda, Suécia, Reino Unido e Estónia — em que não existe sequer uma obrigatoriedade de presença no plenário. Não consta que tenha sido isto que levou ao declínio do Império Britânico, nem que seja factor de peso na “qualidade” das democracias dinamarquesa ou sueca. E não deixa de ser enigmático que, na mesma altura em que instituições como o Centro Europeu de Pesquisa e Documentação Parlamentar discutem a utilização de meios electrónicos que permitam discussões e votações sem a presença física dos deputados no parlamento - para que possam passar mais tempo junto dos seus círculos eleitorais e noutras actividades políticas - os nossos deputados coloquem tanto empenho em criar regras que, supostamente, os deveriam manter sentados no hemiciclo.
O segundo facto ajuda a decifrar o enigma. Na verdade, não é evidente que os parlamentares portugueses tenham tido alguma vez a intenção de colocar estas regras draconianas em prática, se não na letra pelo menos no espírito. Por exemplo, em Julho de 2001, numa das várias épocas de caça ao deputado faltoso abertas pela comunicação social nos últimos anos, relatava-se que nada menos de 30 deputados tinham já ultrapassado o limite de três faltas injustificadas nessa sessão legislativa. Mas ficou-se também a saber que o processo de perda de mandatos não tinha sequer sido accionado, alegando-se que os serviços administrativos tinham marcado faltas ao plenário a quem estava a trabalhar em comissão. E pelo caminho, foi o próprio Presidente da Assembleia quem veio afirmar, afinal, a sua discordância “pessoal” com o “excesso de rigor” da norma. Ao longo dos meses que se seguiram, os faltosos puderam — chamemos-lhe assim — “justificar” as suas faltas, muito depois do período regulamentar para tal. Através deste e outros processos semelhantes ocorridos nos últimos anos, nunca um deputado perdeu o mandato por excesso de faltas injustificadas, sendo mesmo raríssimos os casos de faltas que tenham ficado por justificar.
O que se costuma seguir a esta constatação é a denúncia pública do “escândalo”, a contrição dos líderes partidários e parlamentares e o apelo a mais regras “moralizadoras”, de forma a “recuperar o prestígio” do parlamento junto da opinião pública. Tudo bem. Mas talvez seja importante recordar que não há qualquer estudo de opinião que sugira que a imagem que os portugueses têm do seu parlamento seja minimamente afectada, para o mal ou para o bem, quer pelos supostos “escândalos” quer pelas supostas “reformas” que lhes têm respondido ao longo dos últimos anos. Não tem havido, em termos da imagem do parlamento, um “antes” ou um “depois” dos diversos “pacotes” de reforma parlamentar. O que a investigação sugere é, pelo contrário, que o anti-partidarismo dos portugueses é forte, arreigado e não tem sofrido mudanças especialmente notáveis nos últimos anos. E que as avaliações que fazem do parlamento são muito mais sensíveis a factores como o desemprego, a inflação e o crescimento económico, sendo também mais negativas, naturalmente, entre os simpatizantes dos partidos que estão a cada momento na oposição. De facto, nem é sequer seguro que os cidadãos tenham uma “imagem” propriamente dita do “parlamento”, de tão dependente que ela parece ser daquela que é feita do sistema político em geral e do seu desempenho.
Deste modo, a preocupação com o impacto destes rocambolescos eventos na imagem do parlamento e dos políticos está provavelmente a confundir causas e efeitos. Se os parlamentares vão aprovando para si próprios normas de conduta de aplicabilidade incerta e, nalguns casos, indesejada à partida, é precisamente porque querem dar ao público aquilo que pensam — provavelmente com razão — que o público quer, ou seja, regras que tratem os políticos na base de um princípio generalizado de suspeição. E se de seguida os mesmos parlamentares subvertem o espírito das normas que por eles próprios aprovadas, é porque também julgam — mais uma vez com acerto — que, quando chegar a hora da verdade, nada disto vai ter qualquer efeito no que realmente conta: a sua colocação em lugares elegíveis nas listas e a opção de voto dos eleitores neste ou naquele partido.
É por tudo isto que o habitual discurso do “escândalo”, seguido da necessidade de “moralização”, pode facilmente tornar-se, nesta floresta de enganos, no mais situacionista dos discursos. Em primeiro lugar, porque permite que não se repense sequer por um segundo qual poderá ser o papel dos deputados e dos parlamentos nas democracias contemporâneas, ou sequer os mecanismos de responsabilização política que poderiam dispensar a adopção de regras mais ou menos absurdas que tratam deputados eleitos como funcionários públicos tendencialmente relapsos. E em segundo lugar, porque ajuda a perpetuar um jogo perverso entre políticos, jornalistas e opinião pública que, a esta hora, os primeiros já aprenderam a jogar de olhos fechados.
O primeiro é que os parlamentares portugueses parecem ter adoptado para si próprios um dos mais duros regimes de punição de faltas às sessões plenárias existentes nas democracias ocidentais, prevendo — salvo motivo justificado — a perda de mandato por falta de comparência a apenas quatro sessões plenárias. Uma visita à base de dados da União Interparlamentar revela, por exemplo, que dos vinte e cinco regimentos dos parlamentos da União Europeia, apenas em quatro deles (Áustria, Finlândia, Letónia e Portugal) se prevê a perda de mandato de deputado por semelhante motivo. Na maioria dos casos existem apenas sanções pecuniárias, havendo inclusivamente seis países — Bélgica, Dinamarca, Holanda, Suécia, Reino Unido e Estónia — em que não existe sequer uma obrigatoriedade de presença no plenário. Não consta que tenha sido isto que levou ao declínio do Império Britânico, nem que seja factor de peso na “qualidade” das democracias dinamarquesa ou sueca. E não deixa de ser enigmático que, na mesma altura em que instituições como o Centro Europeu de Pesquisa e Documentação Parlamentar discutem a utilização de meios electrónicos que permitam discussões e votações sem a presença física dos deputados no parlamento - para que possam passar mais tempo junto dos seus círculos eleitorais e noutras actividades políticas - os nossos deputados coloquem tanto empenho em criar regras que, supostamente, os deveriam manter sentados no hemiciclo.
O segundo facto ajuda a decifrar o enigma. Na verdade, não é evidente que os parlamentares portugueses tenham tido alguma vez a intenção de colocar estas regras draconianas em prática, se não na letra pelo menos no espírito. Por exemplo, em Julho de 2001, numa das várias épocas de caça ao deputado faltoso abertas pela comunicação social nos últimos anos, relatava-se que nada menos de 30 deputados tinham já ultrapassado o limite de três faltas injustificadas nessa sessão legislativa. Mas ficou-se também a saber que o processo de perda de mandatos não tinha sequer sido accionado, alegando-se que os serviços administrativos tinham marcado faltas ao plenário a quem estava a trabalhar em comissão. E pelo caminho, foi o próprio Presidente da Assembleia quem veio afirmar, afinal, a sua discordância “pessoal” com o “excesso de rigor” da norma. Ao longo dos meses que se seguiram, os faltosos puderam — chamemos-lhe assim — “justificar” as suas faltas, muito depois do período regulamentar para tal. Através deste e outros processos semelhantes ocorridos nos últimos anos, nunca um deputado perdeu o mandato por excesso de faltas injustificadas, sendo mesmo raríssimos os casos de faltas que tenham ficado por justificar.
O que se costuma seguir a esta constatação é a denúncia pública do “escândalo”, a contrição dos líderes partidários e parlamentares e o apelo a mais regras “moralizadoras”, de forma a “recuperar o prestígio” do parlamento junto da opinião pública. Tudo bem. Mas talvez seja importante recordar que não há qualquer estudo de opinião que sugira que a imagem que os portugueses têm do seu parlamento seja minimamente afectada, para o mal ou para o bem, quer pelos supostos “escândalos” quer pelas supostas “reformas” que lhes têm respondido ao longo dos últimos anos. Não tem havido, em termos da imagem do parlamento, um “antes” ou um “depois” dos diversos “pacotes” de reforma parlamentar. O que a investigação sugere é, pelo contrário, que o anti-partidarismo dos portugueses é forte, arreigado e não tem sofrido mudanças especialmente notáveis nos últimos anos. E que as avaliações que fazem do parlamento são muito mais sensíveis a factores como o desemprego, a inflação e o crescimento económico, sendo também mais negativas, naturalmente, entre os simpatizantes dos partidos que estão a cada momento na oposição. De facto, nem é sequer seguro que os cidadãos tenham uma “imagem” propriamente dita do “parlamento”, de tão dependente que ela parece ser daquela que é feita do sistema político em geral e do seu desempenho.
Deste modo, a preocupação com o impacto destes rocambolescos eventos na imagem do parlamento e dos políticos está provavelmente a confundir causas e efeitos. Se os parlamentares vão aprovando para si próprios normas de conduta de aplicabilidade incerta e, nalguns casos, indesejada à partida, é precisamente porque querem dar ao público aquilo que pensam — provavelmente com razão — que o público quer, ou seja, regras que tratem os políticos na base de um princípio generalizado de suspeição. E se de seguida os mesmos parlamentares subvertem o espírito das normas que por eles próprios aprovadas, é porque também julgam — mais uma vez com acerto — que, quando chegar a hora da verdade, nada disto vai ter qualquer efeito no que realmente conta: a sua colocação em lugares elegíveis nas listas e a opção de voto dos eleitores neste ou naquele partido.
É por tudo isto que o habitual discurso do “escândalo”, seguido da necessidade de “moralização”, pode facilmente tornar-se, nesta floresta de enganos, no mais situacionista dos discursos. Em primeiro lugar, porque permite que não se repense sequer por um segundo qual poderá ser o papel dos deputados e dos parlamentos nas democracias contemporâneas, ou sequer os mecanismos de responsabilização política que poderiam dispensar a adopção de regras mais ou menos absurdas que tratam deputados eleitos como funcionários públicos tendencialmente relapsos. E em segundo lugar, porque ajuda a perpetuar um jogo perverso entre políticos, jornalistas e opinião pública que, a esta hora, os primeiros já aprenderam a jogar de olhos fechados.
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