segunda-feira, abril 10, 2006

Presidenciais e anti-partidarismo

Que espécie de eleição é aquela onde se escolhe um presidente num sistema de governo semi-presidencial? Em França, tudo se assemelha ao que sucede em regimes presidenciais. Por um lado, apesar da personalização do cargo, os eleitores deixam-se guiar por pistas como o “partido” ou a “ideologia” na sua opção de voto. Por outro lado, especialmente após períodos de coincidência político-partidária entre a presidência e o governo, o voto é também influenciado por factores como o desempenho da economia, pelo qual o presidente (ou o candidato do seu partido) tende a ser directamente responsabilizado.

Pelo contrário, em países como a Irlanda ou a Islândia — onde, tal como em França, um presidente eleito coexiste com um chefe de governo responsável perante o parlamento — predomina uma despolitização quase completa. O apoio partidário a este ou aquele candidato — que no caso da Islândia é, de resto, raramente explicitado — parece ter uma relevância nula nas escolhas feitas pelos eleitores, em favor da mera avaliação das qualidades pessoais dos candidatos.

E em Portugal? O estudo pós-eleitoral coordenado pelo Instituto de Ciências Sociais, cujos resultados são apresentados nesta edição do Público, gera tantas perplexidades como aquelas que resolve. Por um lado, a luta partidária e ideológica que prevalece na arena das eleições legislativas parece também penetrar as eleições presidenciais. De entre os eleitores que foram às urnas em Janeiro, mais de 90% dos simpatizantes do PSD votaram em Cavaco Silva, enquanto 80% dos simpatizantes do PS votaram em Mário Soares ou Manuel Alegre. No mesmo sentido, Cavaco fez limitadíssimas incursões entre os eleitores que se posicionam na esquerda do espectro ideológico, ao passo que os candidatos dos partidos de esquerda raramente conquistaram votos à direita. Até aqui, tudo normal.

Contudo, isto não impediu que as lógicas partidária, ideológica e de confronto entre maioria e oposição fossem curto-circuitadas por um substancial número de eleitores. Nada menos que um em cada cinco daqueles que votaram no PS em 2005 optou, desta vez, por votar em Cavaco Silva, ao passo que os eleitores que se situam no centro do espectro ideológico, que em 2005 tinham desproporcionalmente votado no PS, tenderam desta vez a votar no candidato dos partidos de direita.

Da mesma forma, a utilização do voto para responsabilizar agentes políticos pelo seu desempenho foi, na melhor das hipóteses, ténue e indirecta. Mário Soares, o candidato “do governo”, foi previsivelmente punido por aqueles que faziam piores avaliações do estado da economia. Contudo, como destaca André Freire nesta edição do Público, isso não foi suficiente para que as avaliações da situação económica (tal como as da actuação do governo ou do desempenho de Jorge Sampaio) chegassem para explicar as opções de voto de um grande número de eleitores. Afinal, cerca de metade dos votos em Cavaco Silva veio de eleitores que faziam uma avaliação “boa” ou “muito boa” da actuação do governo socialista. Assim, em Portugal, onde a função presidencial vai além da natureza cerimonial dos casos irlandês ou islandês, mas tem ficado aquém da função de real liderança do executivo que, em determinadas fases, assume em França, os padrões de comportamento eleitoral parecem ficar também a “meio caminho” entre uma e outra variedades de semi-presidencialismo.

Há, contudo, um elemento adicional que parece assumir especial importância no nosso caso. Uma das estratégias que acabou por ser frutuosa para alguns candidatos foi a sua capacidade de tornar credível um distanciamento em relação aos partidos. Soares, preso à sua condição de “candidato do PS”, ficou exclusivamente dependente de votos de eleitores socialistas e impossibilitado de fazer incursões entre a crescente massa de eleitores sem simpatias partidárias, coisa em que o “apartidário” Alegre foi muito mais bem sucedido. Francisco Louçã e, em menor grau, Jerónimo de Sousa, envolvidos nestes eleições com o objectivo principal de marcar terreno para os seus partidos, acabaram por sofrer, à última hora, a deserção de parte dos seus simpatizantes em favor do candidato que parecia mais viável à esquerda (Alegre, uma vez mais). E quanto a Cavaco, apesar do seu estudado distanciamento em relação aos partidos ter causado alguma desmobilização no eleitorado daquele que mal conseguiu nomear durante a campanha – o CDS-PP — isso foi mais do que compensado pela atracção de um significativo número de eleitores que não se identificam com qualquer partido.

É por tudo isto que me parece algo incompleta a análise que atribui a chave da vitória de Cavaco Silva à capacidade de se apresentar como um candidato longe da “direita” e perto da “social-democracia” ou do “centro”. Ou a chave do sucesso de Manuel Alegre à sua capacidade para se distanciar do PS e do seu governo. Em 2005, na primeira vaga deste estudo de painel, os inquiridos tinham sido convidados a pronunciar-se sobre duas frases normalmente usadas como indicadores de sentimentos duráveis de anti-partidarismo: “os partidos só servem para dividir as pessoas” e “sem partidos políticos não pode haver democracia”. Chegados a 2006, em quem votaram desproporcionalmente aqueles que mais concordam com a ideia de que os partidos só servem para dividir, ou aqueles que mais facilmente dispensariam os partidos políticos da nossa democracia? A resposta já não surpreenderá o leitor: respectivamente, em Cavaco Silva e Manuel Alegre.

Por outras palavras, os candidatos mais bem sucedidos foram aqueles que conseguiram não só atrair o voto dos “independentes”, mas também aqueles que conseguiram mobilizar e enquadrar os eleitores que sentem maior hostilidade em relação aos partidos e ao seu papel na democracia portuguesa. As implicações do fenómeno são muitas e terão de ficar para outro dia. Mas há uma pergunta óbvia a que já não se consegue escapar: conseguirá um dia um candidato presidencial fazer-se eleger contra os partidos? Ao que parece, já estivemos mais longe.