Somos todos especialistas
Pouco antes do Mundial de Futebol de 2002, pediu-se a meia centena de “especialistas de futebol” (entre os quais jornalistas desportivos, treinadores de futebol e membros de claques), que dessem os seus melhores palpites sobre quais as dezasseis selecções que passariam à segunda fase. De seguida, fizeram-se as mesmas perguntas a estudantes universitários, incluindo norte-americanos, sendo que a estes foram colocadas outras questões para avaliar os seus conhecimentos sobre futebol. Todos os inquiridos acertaram numa proporção de resultados superior àquela que resultaria de escolher as dezasseis equipas completamente ao acaso, apesar de, como seria de prever, os conhecimentos futebolísticos demonstrados pelos estudantes americanos serem tão baixos como aqueles que qualquer estudante português médio demonstraria sobre o hóquei no gelo. Mas a pergunta que importa é outra: quem deu mais palpites certos?
Este estudo, publicado no International Journal of Forecasting (.pdf da versão inicial do paper),é apenas um a somar a centenas de experiências do mesmo género conduzidas nos últimos setenta anos. O resultado é quase sempre o mesmo: corretores de bolsa, economistas ou qualquer outro tipo de “peritos”, quando chamados a fazer previsões sobre o mercado de capitais, tendências económicas ou outros domínios, acabam por ser tão bem ou tão mal sucedidos como qualquer leigo. As eleições não constituem excepção. Uma experiência semelhante foi conduzida poucos dias antes das eleições alemãs de Setembro de 2005. Estudantes das universidades de Mannheim e de Estocolmo, assim como meia centena de politólogos, foram questionados dias antes das eleições acerca das suas previsões sobre a taxa de abstenção e a votação dos principais partidos. No fim, apesar dos palpites mais exactos terem sido feitas por alguns dos politólogos, não houve, em média, diferenças significativas entre os “estudiosos” enquanto grupo e os leigos aos quais tinha sido dada alguma informação mínima sobre o contexto das eleições (.pdf).
Assim, o enorme diferencial de sofisticação entre especialistas e leigos parece não fazer diferença na sua capacidade para prever o mundo. Como explicação deste intrigante fenómeno, os psicólogos tendem a invocar o papel daquilo a que chamam “atalhos cognitivos”. Os estudantes americanos podem ser completamente ignorantes sobre o soccer internacional. Mas se escolherem como prováveis vencedores os países dos quais já ouviram falar — maiores, mais importantes, mais desenvolvidos, aliados dos Estados Unidos — quão erradas acabarão por ser as suas previsões sobre o sucesso desportivo? Da mesma maneira, quase todos nós somos incapazes de avaliar objectivamente até que ponto um governo está, de facto, a fazer um “bom” ou um “mau” trabalho. Mas se fizermos essa avaliação na base da nossa situação financeira pessoal ou da forma como decisões concretas afectaram directamente os nossos interesses ou os de pessoas do nosso círculo social, não será isso suficiente para tomar uma decisão informada?
Há também quem procure explicar o fenómeno de outro ponto de vista. Em 1984, Philip Tetlock contactou quase 300 peritos em temas de política e relações internacionais, pedindo-lhes que fizessem previsões sobre o que poderia suceder nas duas décadas seguintes nos mais variados domínios da política internacional. Deste então, confrontou-os com essas previsões e publicou os resultados em livro (Expert Political Judgment- Princeton University Press). A conclusão é avassaladora: um fracasso generalizado, como se fossem “chimpanzés a atirar dardos à sorte a um alvo”. Tetlock discute algumas explicações para este desempenho desastroso. Primeiro, os peritos tendem a usar e processar apenas a informação que vai de encontro às suas elaboradas pressuposições iniciais. Num certo sentido, eles sabem “demais”. Segundo, quando confrontados com factos que obviamente contrariam as suas previsões, os peritos exibem uma espantosa incapacidade para reavaliar as suas posições iniciais na base da nova informação. Os erros acabam por racionalizados como acasos ou desvios imprevisíveis, e o estatuto de “especialista” é usado para mascarar o fracasso com justificações altamente complexas, fenómeno tanto mais acentuado quanto maior a especialização no tema em questão.
Os resultados de estudos como estes têm muitas implicações sociais, económicas e políticas. Mas uma delas tem a ver com a nossa concepção do que é a democracia e sobre como ela deve funcionar. Não faltam no nosso discurso político e mediático queixas sobre a “falta de qualidade” da classe política e, logo, sobre a conveniência em trazer para a política os “mais conhecedores”. Também abundam as queixas piedosas sobre a falta de informação ou de “cultura política” do eleitorado português. Contudo, há dois problemas neste tipo de argumentação. Por um lado, para além do facto de o grau de conhecimento especializado nada nos dizer sobre as qualidades morais e visões do bem público partilhadas pelos políticos, não é sequer garantido que esse conhecimento permita uma leitura mais exacta da realidade do que aquela que é feita pelo cidadão comum. Por outro lado, a desinformação da grande maioria dos eleitores não os parece impedir de ir tomando decisões acertadas ou, pelo menos, decisões consonantes com os seus interesses e não menos avisadas, desse ponto de vista, que as decisões dos “especialistas”.
Implicações futebolísticas? Vejamos: qual dos grupos inquiridos na experiência sobre o Mundial de 2002 acabou por dar palpites mais acertados sobre as equipas que passariam à segunda fase? Os estudantes americanos, claro. É fácil imaginar o palpite que dariam sobre o Portugal-Inglaterra. Escrevo este artigo antes do jogo e espero que, neste caso, esse palpite não se tenha confirmado.
Este estudo, publicado no International Journal of Forecasting (.pdf da versão inicial do paper),é apenas um a somar a centenas de experiências do mesmo género conduzidas nos últimos setenta anos. O resultado é quase sempre o mesmo: corretores de bolsa, economistas ou qualquer outro tipo de “peritos”, quando chamados a fazer previsões sobre o mercado de capitais, tendências económicas ou outros domínios, acabam por ser tão bem ou tão mal sucedidos como qualquer leigo. As eleições não constituem excepção. Uma experiência semelhante foi conduzida poucos dias antes das eleições alemãs de Setembro de 2005. Estudantes das universidades de Mannheim e de Estocolmo, assim como meia centena de politólogos, foram questionados dias antes das eleições acerca das suas previsões sobre a taxa de abstenção e a votação dos principais partidos. No fim, apesar dos palpites mais exactos terem sido feitas por alguns dos politólogos, não houve, em média, diferenças significativas entre os “estudiosos” enquanto grupo e os leigos aos quais tinha sido dada alguma informação mínima sobre o contexto das eleições (.pdf).
Assim, o enorme diferencial de sofisticação entre especialistas e leigos parece não fazer diferença na sua capacidade para prever o mundo. Como explicação deste intrigante fenómeno, os psicólogos tendem a invocar o papel daquilo a que chamam “atalhos cognitivos”. Os estudantes americanos podem ser completamente ignorantes sobre o soccer internacional. Mas se escolherem como prováveis vencedores os países dos quais já ouviram falar — maiores, mais importantes, mais desenvolvidos, aliados dos Estados Unidos — quão erradas acabarão por ser as suas previsões sobre o sucesso desportivo? Da mesma maneira, quase todos nós somos incapazes de avaliar objectivamente até que ponto um governo está, de facto, a fazer um “bom” ou um “mau” trabalho. Mas se fizermos essa avaliação na base da nossa situação financeira pessoal ou da forma como decisões concretas afectaram directamente os nossos interesses ou os de pessoas do nosso círculo social, não será isso suficiente para tomar uma decisão informada?
Há também quem procure explicar o fenómeno de outro ponto de vista. Em 1984, Philip Tetlock contactou quase 300 peritos em temas de política e relações internacionais, pedindo-lhes que fizessem previsões sobre o que poderia suceder nas duas décadas seguintes nos mais variados domínios da política internacional. Deste então, confrontou-os com essas previsões e publicou os resultados em livro (Expert Political Judgment- Princeton University Press). A conclusão é avassaladora: um fracasso generalizado, como se fossem “chimpanzés a atirar dardos à sorte a um alvo”. Tetlock discute algumas explicações para este desempenho desastroso. Primeiro, os peritos tendem a usar e processar apenas a informação que vai de encontro às suas elaboradas pressuposições iniciais. Num certo sentido, eles sabem “demais”. Segundo, quando confrontados com factos que obviamente contrariam as suas previsões, os peritos exibem uma espantosa incapacidade para reavaliar as suas posições iniciais na base da nova informação. Os erros acabam por racionalizados como acasos ou desvios imprevisíveis, e o estatuto de “especialista” é usado para mascarar o fracasso com justificações altamente complexas, fenómeno tanto mais acentuado quanto maior a especialização no tema em questão.
Os resultados de estudos como estes têm muitas implicações sociais, económicas e políticas. Mas uma delas tem a ver com a nossa concepção do que é a democracia e sobre como ela deve funcionar. Não faltam no nosso discurso político e mediático queixas sobre a “falta de qualidade” da classe política e, logo, sobre a conveniência em trazer para a política os “mais conhecedores”. Também abundam as queixas piedosas sobre a falta de informação ou de “cultura política” do eleitorado português. Contudo, há dois problemas neste tipo de argumentação. Por um lado, para além do facto de o grau de conhecimento especializado nada nos dizer sobre as qualidades morais e visões do bem público partilhadas pelos políticos, não é sequer garantido que esse conhecimento permita uma leitura mais exacta da realidade do que aquela que é feita pelo cidadão comum. Por outro lado, a desinformação da grande maioria dos eleitores não os parece impedir de ir tomando decisões acertadas ou, pelo menos, decisões consonantes com os seus interesses e não menos avisadas, desse ponto de vista, que as decisões dos “especialistas”.
Implicações futebolísticas? Vejamos: qual dos grupos inquiridos na experiência sobre o Mundial de 2002 acabou por dar palpites mais acertados sobre as equipas que passariam à segunda fase? Os estudantes americanos, claro. É fácil imaginar o palpite que dariam sobre o Portugal-Inglaterra. Escrevo este artigo antes do jogo e espero que, neste caso, esse palpite não se tenha confirmado.
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