Uma tragédia reencenada
Os especialistas no caso de Timor-Leste não deixarão de dissecar as particularidades históricas, políticas e sociais que conduziram à instabilidade que hoje nele se vive. Contudo, para os não-especialistas – como eu — o caso é interessante por razões que o transcendem. Aquilo a que assistimos hoje em Timor é a uma tragédia reencenada que, por não ser exclusiva da nova nação, nos obriga a questionar o optimismo e o voluntarismo daqueles que acreditam na viabilidade da instauração de regimes democráticos em contextos que lhe são particularmente desfavoráveis.
Primeiro, importa recordar, dolorosamente, que o terreno menos propício possível para a estabilização de um novo regime democrático é o proporcionado por sociedades caracterizadas por pobreza extrema e padrões pré-modernos de economia de subsistência. Nestes sociedades, o que está em jogo nos conflitos políticos e distributivos tende a assumir uma importância tão vital e dramática — a própria sobrevivência pessoal — que a sua intensidade os torna demasiado intratáveis para que se possam enquadrar e resolver no quadro institucional de eleições livres e regulares. A “moderação” e o “compromisso”, de que a democracia necessita imperiosamente, são luxos a que apenas os ricos se podem entregar facilmente. E se é verdade que há casos de países pobres que foram conseguindo preservar, a custo, a democracia, é também certo que o fizeram compensando a sua desvantagem inicial com o crescimento económico e a elevação do nível de vida dos cidadãos. Contudo, até isto tem estado vedado aos timorenses. Uma breve nota publicada na Economist de Março passado, intitulada “Free but hungry”, explicava como a diminuição da procura interna, causada pela retirada de parte do contingente das Nações Unidas, tinha sido responsável pela contracção da economia a partir de 2002. Mais de 40 por cento da população vive com menos de 40 cêntimos por dia, sendo que a maior parte dos magros recursos do novo estado foram gastos na capital, deixando de fora a paupérrima população rural. A lista de problemas poderia continuar indefinidamente, desde o facto de Timor-Leste ter um dos mais baixos valores de PIB per capita no mundo até ao facto da sua taxa de mortalidade infantil quase triplicar a da vizinha Indonésia. A mensagem contudo, é sempre a mesma: do ponto de vista estrutural, a jovem democracia timorense nunca esteve fora da zona de altíssimo risco.
Ainda menos surpreendente é a agora generalizada constatação de que Timor-Leste constitui um “estado falhado”. É certo que seria difícil imaginar um legado menos favorável a este nível como aquele que Timor recebeu das milícias e das forças armadas indonésias: a completa desintegração do (já de si esquelético) aparelho administrativo; a total destruição das infra-estruturas existentes; e a inexistência de timorenses capazes de substituir os quadros indonésios que administravam o território. Neste quadro desolador, as Nações Unidas assumiram total e exclusiva responsabilidade pela construção de um novo aparelho de estado, numa experiência de “state-building” única na sua história. Contudo, hoje, já não é arriscado dizer-se que essa experiência resultou num fracasso. Um fracasso exemplificado, acima de tudo, pela incapacidade em promover o desenvolvimento institucional necessário para o cumprimento da função mais básica de qualquer estado: a constituição de um aparelho de segurança e de justiça credíveis, imparciais e profissionais. Como relata Ludovic Hood, num deprimente artigo publicado na International Peacekeeping há apenas dois meses, a falta de planeamento e de liderança a este nível por parte das sucessivas missões das Nações Unidas, o seu alheamento em relação ao treino e liderança das FALINTIL e sua incapacidade em enquadrar o envolvimento dos próprios timorenses na institucionalização das forças policiais e do sistema de justiça tiveram consequências graves. Em particular, elas levaram a uma ausência de controlo e monitorização civil do aparelho de segurança no território, que por sua vez favoreceu uma politização e faccionalização cujas consequências foram bem visíveis nas últimas semanas. Assim, neste como em muitos outros domínios, não temos ainda resposta para a questão de saber como se constrói a partir do zero um estado que foi desmantelado ou nunca terá existido, em locais tão distintos como o Iraque, o Afeganistão, a Somália ou Timor-Leste. Sem essa resposta, contudo, não há regime de qualquer espécie, e muito menos um regime democrático, do qual se possa esperar estabilidade.
Neste contexto, o problema das instituições políticas concretas que acabam por ser adoptadas — sistema de governo, sistema eleitoral ou outras — é provavelmente secundário. É certo que se vai dizendo que a importação acrítica do semi-presidencialismo à portuguesa — ao favorecer ambiguidades e conflitos institucionais sobre quem governa — é uma das principais explicações do que se passa em Timor-Leste. Mas a este respeito aproximo-me muito mais do que vem sugerindo Paulo Gorjão no seu informativo Bloguítica. O objectivo por detrás da adopção do semi-presidencialismo em Timor-Leste foi menos o de “imitar” o antigo colonizador do que neutralizar Xanana Gusmão, tarefa a que a FRETILIN se lançou e na qual, do ponto de vista institucional, acabou por ser bem sucedida, mercê da posição privilegiada que as eleições de 2002 lhe concederam na assembleia constituinte. Logo, esta não é exactamente uma história sobre o semipresidencialismo. É sim uma história — que de resto nos devia ser bem familiar — sobre o que sucede quando as instituições políticas são desenhadas numa situação de clara assimetria de poder entre os actores envolvidos e quando as consequências das opções tomadas são claramente previsíveis. Nesses contextos, quem tem mais poder é capazes de impor regras que vão servir apenas os seus interesses, mas é precisamente por isso que essas regras se tornam eminentemente contestáveis e logo, elas próprias, fonte de instabilidade.
Primeiro, importa recordar, dolorosamente, que o terreno menos propício possível para a estabilização de um novo regime democrático é o proporcionado por sociedades caracterizadas por pobreza extrema e padrões pré-modernos de economia de subsistência. Nestes sociedades, o que está em jogo nos conflitos políticos e distributivos tende a assumir uma importância tão vital e dramática — a própria sobrevivência pessoal — que a sua intensidade os torna demasiado intratáveis para que se possam enquadrar e resolver no quadro institucional de eleições livres e regulares. A “moderação” e o “compromisso”, de que a democracia necessita imperiosamente, são luxos a que apenas os ricos se podem entregar facilmente. E se é verdade que há casos de países pobres que foram conseguindo preservar, a custo, a democracia, é também certo que o fizeram compensando a sua desvantagem inicial com o crescimento económico e a elevação do nível de vida dos cidadãos. Contudo, até isto tem estado vedado aos timorenses. Uma breve nota publicada na Economist de Março passado, intitulada “Free but hungry”, explicava como a diminuição da procura interna, causada pela retirada de parte do contingente das Nações Unidas, tinha sido responsável pela contracção da economia a partir de 2002. Mais de 40 por cento da população vive com menos de 40 cêntimos por dia, sendo que a maior parte dos magros recursos do novo estado foram gastos na capital, deixando de fora a paupérrima população rural. A lista de problemas poderia continuar indefinidamente, desde o facto de Timor-Leste ter um dos mais baixos valores de PIB per capita no mundo até ao facto da sua taxa de mortalidade infantil quase triplicar a da vizinha Indonésia. A mensagem contudo, é sempre a mesma: do ponto de vista estrutural, a jovem democracia timorense nunca esteve fora da zona de altíssimo risco.
Ainda menos surpreendente é a agora generalizada constatação de que Timor-Leste constitui um “estado falhado”. É certo que seria difícil imaginar um legado menos favorável a este nível como aquele que Timor recebeu das milícias e das forças armadas indonésias: a completa desintegração do (já de si esquelético) aparelho administrativo; a total destruição das infra-estruturas existentes; e a inexistência de timorenses capazes de substituir os quadros indonésios que administravam o território. Neste quadro desolador, as Nações Unidas assumiram total e exclusiva responsabilidade pela construção de um novo aparelho de estado, numa experiência de “state-building” única na sua história. Contudo, hoje, já não é arriscado dizer-se que essa experiência resultou num fracasso. Um fracasso exemplificado, acima de tudo, pela incapacidade em promover o desenvolvimento institucional necessário para o cumprimento da função mais básica de qualquer estado: a constituição de um aparelho de segurança e de justiça credíveis, imparciais e profissionais. Como relata Ludovic Hood, num deprimente artigo publicado na International Peacekeeping há apenas dois meses, a falta de planeamento e de liderança a este nível por parte das sucessivas missões das Nações Unidas, o seu alheamento em relação ao treino e liderança das FALINTIL e sua incapacidade em enquadrar o envolvimento dos próprios timorenses na institucionalização das forças policiais e do sistema de justiça tiveram consequências graves. Em particular, elas levaram a uma ausência de controlo e monitorização civil do aparelho de segurança no território, que por sua vez favoreceu uma politização e faccionalização cujas consequências foram bem visíveis nas últimas semanas. Assim, neste como em muitos outros domínios, não temos ainda resposta para a questão de saber como se constrói a partir do zero um estado que foi desmantelado ou nunca terá existido, em locais tão distintos como o Iraque, o Afeganistão, a Somália ou Timor-Leste. Sem essa resposta, contudo, não há regime de qualquer espécie, e muito menos um regime democrático, do qual se possa esperar estabilidade.
Neste contexto, o problema das instituições políticas concretas que acabam por ser adoptadas — sistema de governo, sistema eleitoral ou outras — é provavelmente secundário. É certo que se vai dizendo que a importação acrítica do semi-presidencialismo à portuguesa — ao favorecer ambiguidades e conflitos institucionais sobre quem governa — é uma das principais explicações do que se passa em Timor-Leste. Mas a este respeito aproximo-me muito mais do que vem sugerindo Paulo Gorjão no seu informativo Bloguítica. O objectivo por detrás da adopção do semi-presidencialismo em Timor-Leste foi menos o de “imitar” o antigo colonizador do que neutralizar Xanana Gusmão, tarefa a que a FRETILIN se lançou e na qual, do ponto de vista institucional, acabou por ser bem sucedida, mercê da posição privilegiada que as eleições de 2002 lhe concederam na assembleia constituinte. Logo, esta não é exactamente uma história sobre o semipresidencialismo. É sim uma história — que de resto nos devia ser bem familiar — sobre o que sucede quando as instituições políticas são desenhadas numa situação de clara assimetria de poder entre os actores envolvidos e quando as consequências das opções tomadas são claramente previsíveis. Nesses contextos, quem tem mais poder é capazes de impor regras que vão servir apenas os seus interesses, mas é precisamente por isso que essas regras se tornam eminentemente contestáveis e logo, elas próprias, fonte de instabilidade.
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