terça-feira, julho 18, 2006

Europas

Há poucos dias, a imprensa deu especial destaque ao resultado do último Eurobarómetro (65.2) que surge mais carregado de simbolismo: menos de metade dos portugueses consideram que o facto de Portugal pertencer à União Europeia é “uma coisa boa”, o mais baixo valor dos últimos anos e já inferior à média europeia.

Talvez seja excessivo dizer-se, como ouvi numa rádio, que passámos “de entusiastas do projecto europeu para europessimistas”: continua a haver mais portugueses que fazem uma avaliação positiva dos efeitos da integração (47 por cento) do que aqueles que fazem dela uma avaliação negativa (uns meros 14 por cento). Contudo, isso não torna os resultados menos impressionantes. Primeiro, porque se quisermos encontrar um saldo positivo de aprovação da UE em Portugal mais baixo do que este — 33 por cento — teremos de recuar a um Eurobarómetro realizado em…1985, ou seja, quando ainda só se podia especular sobre as consequências da adesão. Segundo, porque apesar de se saber que estas opiniões são sempre condicionadas por factores económicos e políticos de curto-prazo, este declínio não é conjuntural: o seu início remonta a 1992, ano a partir do qual o saldo de opiniões positivas sobre os efeitos da integração em Portugal vem diminuindo a uma média de mais de dois pontos percentuais ao ano.

Quais as implicações deste fenómeno? Primeiro, ele revela importantes brechas num consenso que, em grande medida, sempre foi falso, e que se baseava no pressuposto de que os efeitos distributivos da integração se davam apenas entre países, dos mais ricos — “eles” — para os mais pobres — “nós”. Contudo, isso nunca foi rigorosamente verdade, e é-o ainda menos desde a União Monetária. A abertura dos mercados trazida pela integração é, antes de mais, benéfica para os indivíduos, grupos sociais e sociedades que detêm níveis de capital humano — instrução, qualificações e competências — suficientes para poderem competir com sucesso numa economia aberta. A liberalização dos movimentos de capitais beneficia primeiramente quem os detém, e não quem depende de salários. E como se vem tornando cada vez mais evidente, quem começa por pagar, pelo menos a médio prazo, o preço da moeda única e, especialmente, das suas consequências a nível orçamental, são os indivíduos que mais dependem das transferências do estado, ou seja, os estratos sociais com menores níveis de rendimentos e instrução. Tendo tudo isto em conta, que a esmagadora maioria dos portugueses encontrasse apenas benefícios na integração europeia era, essa sim, a verdadeira anomalia.

Segundo, isto significa que os governos portugueses deverão ter perdido parte da margem de manobra de que dispunham para transferir responsabilidades para a União Europeia pelas repercussões negativas de politicas por eles decididas e implementadas. Obviamente, os incentivos para se evitar a responsabilização eleitoral nunca desaparecem. Contudo, o cenário anterior era um em que a integração europeia não passava de um tema de “política externa” e onde a União tinha as costas muito largas. Hoje, este “blame-shifting” tornou-se mais arriscado. Imputar à integração europeia efeitos ainda mais negativos do que aqueles que uma parte significativa dos eleitores já lhes começa a atribuir significa criar condições ainda melhores para a emergência de líderes e partidos que mobilizem o crescente descontentamento, inclusivamente no interior dos eleitorados dos partidos de governo. Em Portugal, num período em que a opinião dos cidadãos sobre a integração ainda era, apesar de tudo, mais benévola, o PCP e o CDS-PP já deram sinais de poder cumprir essa função: o primeiro mobilizando os eleitores que sentem ter pago os custos da integração; o segundo articulando esse descontentamento sob um formato nacionalista e soberanista. Hoje, com os níveis de apoio europeu a diminuir, a perturbação que os temas europeus podem introduzir nos partidos do centro político tornou-se potencialmente maior.

Tudo isto sugere que os partidos centristas portugueses têm, pelo menos, duas alternativas de acção. A primeira é oferecer mais do mesmo. Conscientes de como os temas europeus os podem dividir internamente, mas persuadidos da existência de um capital genérico de boa vontade e relativa indiferença em relação à Europa, PS e PSD poderão continuar a adoptar um pró-europeísmo genérico e vazio, na esperança de que a competição eleitoral se continue a fazer nos termos tradicionais e que o descontentamento se fique pelas franjas do eleitorado. A estratégia é atraente e não os tem servido mal até agora, mas resta saber até quando a combinação de pressupostos em que assenta — boa vontade e indiferença públicas, ausência de “empreendedores políticos” capazes de mobilizar o descontentamento — se continuará a verificar.

A segunda alternativa seria adoptar uma estratégia diferente, que pudesse de alguma forma prevenir a emergência de um eurocepticismo estritamente populista e nacionalista. Ela implicaria adoptar no discurso partidário doméstico e na acção política algumas posições claras sobre qual das “Europas” queremos ter, que pudessem ser facilmente reconduzíveis a uma linguagem política com que partidos e eleitores estejam familiarizados: uma Europa social-democrata, que regula os mercados e promove protecção social; ou uma Europa liberal, que espera que o aumento geral do bem-estar resulte da eliminação das barreiras à competição? Poder-se-ia dizer que esta estratégia é igualmente insensata, porque deixa sem representação aqueles que, em rigor, não querem Europa de espécie alguma. Mas já agora, quem são esses? Alguns dos resultados mais interessantes e menos mencionados do Eurobarómetro 65.2 são os de que, apesar de tudo, quase dois em cada três portugueses querem que a União Europa tenha maior influência na sua vida quotidiana e confiam, bem acima da média europeia, nas instituições europeias. Mas influência e confiança para fazer, exactamente, o quê? Era isso que os partidos de governo em Portugal— talvez mesmo para sua conveniência — nos podiam ir ajudando a discutir.