terça-feira, junho 17, 2008

Sobre o referendo irlandês

1. Quem não conhecesse qualquer sondagem sobre as intenções de voto no referendo irlandês teria 50 por cento de hipóteses de acertar no resultado final. Quem conhecesse apenas uma ou duas, apostaria certamente na vitória do "sim": das dez sondagens divulgadas ao longo das últimas semanas, nove colocavam essa opção na frente. Mas quem conhecesse todas, verificaria que, sem excepção, as intenções de voto no "não" cresciam de sondagem para sondagem à medida que se aproximava a data do referendo. E uma curiosidade: nas sondagens que colocavam a questão sobre o "Tratado de Lisboa" em vez de "Tratado Reformador", os resultados eram invariavelmente piores para o "sim". Em Dezembro passado, os líderes europeus devem ter achado que "Lisboa" soava especialmente bem: bom tempo, praia, férias, tudo muito pitoresco. Mas para os irlandeses, que em meados dos anos 80 viviam num país em profunda crise económica e financeira, e hoje vivem no país com o quinto maior PIB per capita do mundo, "Lisboa" soa, talvez, a tudo aquilo que felizmente já deixaram para trás.

2. Há quem sugira um novo referendo na Irlanda, rapidamente e em força, a ver se sucede o mesmo que em relação ao Tratado de Nice. De facto, em Junho de 2001, Nice foi rejeitado pelos irlandeses por uma maioria muito semelhante à ocorrida no passado dia 12 de Junho (54 por cento). Pouco mais de um ano depois, um segundo referendo levou à sua aprovação, com 63 por cento dos votantes a favor. Um dos argumentos avançados na altura foi o de que tudo tinha a ver com a abstenção. Em 2001, ela tinha chegado aos 65 por cento; em 2002, uns bem menores 51 por cento. Em suma, bastaria levar mais irlandeses responsáveis às urnas e tudo se resolveria. É sem dúvida verdade que, nos referendos, as campanhas contam muito, pois os factores tradicionais de longo prazo que estabilizam o voto são menos importantes. Mas há, desta vez, um ligeiro detalhe: no passado dia 12 a abstenção foi de 47 por cento, logo inferior à do referendo de 2002. E agora: bastará levar mais irlandeses às urnas? Não será fácil. Nos 18 referendos realizados na história da democracia irlandesa, a abstenção média anda pelos 50 por cento.

3.Há também quem diga que tudo não passa de um enorme azar. Um referendo realizado após a demissão do primeiro-ministro irlandês e num contexto de crise económica internacional e de subida dos preços só poderia dar nisto, fazendo com que o voto "não" exprimisse todo um conjunto de insatisfações avulsas sem qualquer relação com a substância do que estava a ser decidido. Um incidente, portanto, facilmente resolvido se um novo referendo for conduzido num contexto diferente.

Sucede, contudo, que os dados disponíveis não apoiam esta interpretação. Primeiro, o Fianna Fail, o maior partido de governo, encontra-se em crescendo de popularidade nas sondagens, e não em declínio. Segundo, nas mesmas sondagens, a razão mais invocada pelos eleitores do "não" foi, de longe, o facto de "não saberem no que estavam a votar", e não qualquer outra razão estranha ao que estava em jogo no referendo. Finalmente, um estudo aprofundado sobre os dois referendos de Nice, realizado por John Garry, Michael Marsh e Richard Sinnott e publicado na European Union Politics em 2005, mostrava já que, no comportamento eleitoral dos irlandeses, as considerações sobre o governo do dia pesaram sempre menos do que as reais atitudes dos eleitores em relação ao alargamento, à neutralidade militar irlandesa ou ao processo de integração em si mesmo. Por outras palavras, os referendos na Irlanda estão muito mais próximos de serem um real processo de deliberação sobre a Europa e os tratados (mesmo que reagindo ao desconhecimento sobre o que lhes é pedido que decidam) do que um mero plebiscito sobre o governo ou sobre a situação económica. Não há razões para supor que este último tenha sido diferente.

4. A proposta mais em voga sobre como proceder após o referendo irlandês é "isolar" a Irlanda, esperar que os "culpados" encontrem uma solução e continuar o processo de ratificação nos restantes países. Nicolas Sarkozy dá, como de costume, o mote: o resultado do referendo na Irlanda é "um alerta para mudar a forma como a Europa está a ser construída. (...) Muitos europeus não compreendem a forma como estamos a construir a Europa", afirmou ontem. Mas disse também que é indispensável que os restantes países ratifiquem o Tratado, evitando que "o incidente irlandês se transforme numa crise". A incoerência (ou hipocrisia) das declarações não parece incomodá-lo, mas não se trata propriamente de uma estreia.

Chegámos aqui, de resto, graças a uma outra ideia genial de Sarko: a "ideia francesa", como lhe chamou orgulhosamente numa conferência de imprensa em Março passado, era a aprovação de um "tratado simplificado", "realista e pragmático", "nunca uma Constituição". Traduzindo, um tratado que, na substância, fosse indistinguível da chumbada Constituição Europeia, disfarçado de coisa sem grande relevância, mas ainda mais indecifrável pelos cidadãos e, naturalmente, a ser ratificado pelos parlamentos e sem intervenção desses aborrecidos referendos, os mesmos que Sarkozy acha indispensáveis para decidir sobre (ou seja, impedir) a adesão da Turquia à União Europeia.

O resultado está à vista: na primeira e única oportunidade que alguns europeus tiverem para se pronunciar sobre o assunto, chumbaram a genial ideia. Os chefes de governo europeus que negociaram o Tratado de Lisboa e congeminaram o processo que levaria à sua ratificação emergem deste processo como pequenos delinquentes apanhados a roubar caramelos numa mercearia. O autoproclamado líder do grupo - que vem deixando atrás de si um rasto de mediocridade que surpreende mesmo tendo em conta os altos padrões fixados pelo seu antecessor - acha que devemos resolver o assunto fugindo para a frente. Os antecedentes sugerem que, por razões meramente prudenciais, devemos provavelmente achar tudo o contrário daquilo que ele ache.

P.S. - Miguel Morgado pergunta - como quem vai respondendo, e como quem me censura por não ter perguntado e respondido - se se aplica a Sócrates o mesmo que aqui digo sobre Sarkozy. Mas só seria interessante responder à pergunta do Miguel se, para além de ter assegurado o catering no Pavilhão Atlântico no segundo semestre do ano passado, o governo português tivesse ou pudesse ter alguma espécie de papel decisivo no que sucedeu ou no que vai suceder daqui em diante na Europa. Não é o caso. Com a França, contudo, já é. Isso não impede um juízo político sobre o PM português, claro. Mas tento não me repetir.

terça-feira, junho 03, 2008

A economia e o voto

Não há teoria sobre o comportamento eleitoral que tenha tanto crédito entre o público em geral como aquela que o explica em função da economia. É simples: os governos são castigados eleitoralmente pelo mau desempenho económico e recompensados pelo bom desempenho. De resto, a ideia de que os governos manipulam a economia por razões de oportunismo eleitoral, adoptando políticas mais ou menos expansionistas consoante a proximidade ou distância das próximas eleições, é hoje uma das principais lentes através da qual se observa e analisa a política. Tudo isto se pode ver e rever na maneira como políticos e comentadores têm reagido à crise financeira internacional, ao aumento dos preços, à desaceleração da economia espanhola e seus efeitos na economia portuguesa e à revisão em baixa das previsões do crescimento económico português. Enquanto Vital Moreira assinalava, há dias, que "a crise económica e o choque petrolífero (...) conjugaram-se para tramar as hipóteses eleitorais de Sócrates nas eleições de 2009, arruinando todos os planos para o último ano de mandato", um dos candidatos à liderança do PSD criticava aqueles que tinham condicionado a sua mobilização interna no partido à súbita possibilidade de derrota do PS trazida pelos recentes sinais de crise.

É verdade que este tipo de abordagem faz bastante sentido em Portugal. Uma das coisas que se sabe sobre o "voto económico" é que ele é tanto mais prevalecente quanto maior for a concentração de poder nos governos. Um sistema parlamentar, num estado unitário, sem um senado, com um governo maioritário monopartidário e apoiado por um grupo parlamentar disciplinado fornecem o cenário ideal para que a atribuição de responsabilidades pela economia seja feita, para o bem e para o mal, exclusivamente ao partido do governo e ao Primeiro Ministro. Se a isto acrescentarmos o reduzido enraizamento social dos partidos em Portugal, a indiferenciação ideológica entre PS e PSD e o grande número de eleitores que não se identificam fortemente com qualquer partido, rapidamente concluímos que tudo se conjuga para que o comportamento de voto em Portugal seja muito afectado por factores de curto-prazo, nomeadamente, pelas oscilações na economia. E é talvez por isto que um estudo recente sobre o tema - The Economy and the Vote, editado pela Cambridge University Press em 2007 - conclui que Portugal é um dos países da UE onde as flutuações na economia têm maior impacto no desempenho eleitoral dos governos.

Contudo, dito isto, talvez fosse conveniente moderar um pouco as certezas que se vão instalando sobre os efeitos da crise anunciada sobre as perspectivas eleitorais quer do governo quer da oposição em 2009. Há três razões principais para alguma cautela. A primeira tem a ver com aquilo que significa "a economia" quando falamos dos seus efeitos eleitorais. Na verdade, uma das conclusões mais interessantes do estudo mencionado anteriormente é que, em Portugal, o aspecto da evolução da economia que mais consistentemente influencia as hipóteses eleitorais dos governos é, de longe, o desemprego. Enquanto o crescimento económico tem um impacto quase irrelevante, as evoluções desfavoráveis na inflação tendem a afectar mais o desempenho dos governos de direita que o dos governos de esquerda. Os mesmos resultados, de resto, já tinham sido encontrados num conjunto de estudos de Linda Veiga e Francisco Veiga, da Universidade do Minho, para o período entre 1986 e 2001. Nada garante, claro, que as actuais previsões de estabilidade ou mesmo de descida da taxa de desemprego para 2009 não acabem por ser também elas revistas. Mas tudo o que sabemos neste momento sobre a relação entre os indicadores da economia e o desempenho eleitoral sugere que, ao contrário do que sucedeu com o mandato do anterior governo PSD/CDS - que presidiu a um aumento da taxa de desemprego de quase três pontos percentuais entre 2002 e 2005 -o actual governo PS terá para apresentar em 2009, no que respeita a esse crucial indicador, uma relativa estabilidade. Se for verdade - como a maior parte dos estudos sugerem - que os eleitores são especialmente sensíveis às tendências de curto-prazo, as "hipóteses eleitorais de Sócrates" podem não estar a ser tão "tramadas" como, dos dois lados da barricada política, se parece supor.

Em segundo lugar, um dos desenvolvimentos mais interessantes deste tipo de estudos tem a ver com a aparente capacidade dos eleitores para fazerem uma distinção, quando usam o desempenho da economia para tomar decisões eleitorais, entre aquilo que é responsabilidade dos governos e aquilo que tende a escapar ao seu controlo. Num livro publicado há apenas dois meses - The Economic Vote, também pela CUP - Raymond Duch e Randolph Stevenson mostram, por exemplo, como os eleitores em economias mais abertas tendem a ter uma percepção maior da dependência da sua economia em relação a desenvolvimentos externos e como, nesses contextos, o "voto económico" é menos prevalecente. Por outras palavras, os eleitores parecem conseguir fazer algum tipo de distinção entre aspectos do desempenho económico que dependem da acção dos governos e aqueles que dependem de choques exógenos. Se Duch e Stevenson tiverem razão, há razões para supor que os efeitos da anunciada desaceleração económica sobre os resultados eleitorais de 2009 poderão ser amortecidos pela percepção de que essa crise tem uma forte componente externa.

Finalmente, a economia está longe de explicar tudo. O Reino Unido - país onde, por excelência, a clareza com que o desempenho daeconomia pode ser atribuída aos governos é especi-almente elevada - dá um exemplo muito interessante a este respeito. Em 1992, a economia britânica dava sinais de estagnação e a taxa de desemprego andava pelos 10 por cento. Em 1997, o desemprego tinha baixado para sete por cento, a inflação permanecia estável em valores baixos e a economia crescia a uns razoáveis 3 por cento. Em 1992, o Partido Conservador liderado por John Major renovou a sua maioria, ganhando as eleições com 42 por cento dos votos. Em 1997, ficou-se pelo 31 por cento, sendo arrasado pelo New Labour de Tony Blair. A lição, simples, é que para que um governo perca eleições, não basta um mau desempenho económico. Mais importante é que a oposição ofereça, ao mesmo tempo, uma alternativa credível. Anteontem ter-se-á eventualmente dado um pequeno passo nesse sentido, pelo menos em relação à situação anterior. Mas daí até o PSD poder ser visto como uma alternativa a este governo vai ainda uma distância considerável. Um ano será suficiente para a percorrer? Haverá previsões para todos os gostos. Mas a verdade é que ninguém sabe.