O círculo vicioso
Não é fácil inovar quando se trata de apresentar argumentos a favor e contra a realização de referendos. Está quase tudo dito e nada parece restar para além de aplicar os velhos argumentos a cada nova circunstância. Quem queira argumentar pela desejabilidade dos referendos pode começar por assinalar as reduzidas oportunidades que os eleitores têm para dar a conhecer as suas preferências entre eleições nas democracias representativas. Antecipando desde logo possíveis objecções, pode até defender que a falta de interesse e o desconhecimento de muitos eleitores em relação aos temas políticos é compensada pelos próprios referendos, que funcionariam como estímulos ao debate e à circulação de informação. E do lado dos oponentes, a panóplia de argumentos é igualmente conhecida. Os referendos colocam assuntos complexos nas mãos de cidadãos cuja competência para decidir sobre eles é duvidosa, sobretudo quando se trata de tratar através de decisões "sim/não" assuntos que, pela sua natureza, dificilmente se podem esgotar nesta escolha simplista. A consequência disto seria que, muitas vezes, as opções dos eleitores acabam por ser motivadas por factores que nada têm a ver com o que está em jogo. E por detrás destes argumentos abstractos a favor ou contra o referendo podemos encontrar, não raras vezes, outros bem mais instrumentais. O referendo fornece uma derradeira oportunidade para impedir a aprovação de uma decisão previamente tomada. Logo, os defensores dessa decisão serão sempre os principais opositores do referendo e vice-versa, excepto quando o apoio popular previsível à decisão é tão grande que os seus mais sofisticados oponentes preferem privá-la dessa legitimação adicional. Vimos de tudo isto um pouco durante a última semana, e tudo isto regressará sempre que o tema reaparecer na agenda.Este tipo de discussão é potencialmente interessante.
Mas talvez mais interessante seja verificar que, para a população em geral, ela parece já ter sido decidida. Num Eurobarómetro de 1997 que questionava os europeus acerca da conveniência de um recurso mais frequente a referendos, a maior parte dos países apoiava a ideia com maiorias muito expressivas. E Portugal não é excepção, como se confirma uma vez mais através dos resultados de uma sondagem divulgada na passada quinta-feira, onde dois em cada três dos inquiridos com opinião sobre o tema, mesmo com toda a carga favorável associado ao tratado europeu acordado em Lisboa, defendiam a sua submissão a referendo.
É talvez por isto que, pressentindo o generalizado apoio popular à democracia directa, fruto de uma combinação entre a crescente autoconfiança dos cidadãos nas suas próprias competências e a sua crescente desconfiança em relação à política "convencional", os agentes políticos vão declarando episodicamente o seu amor eterno pelos referendos, particularmente quando estão em campanha eleitoral. Contudo, quando saímos dos momentos onde só conta a propaganda, não é invulgar ver-se uma marcha-atrás. "A ratificação pelo Parlamento é tão válida quanto a ratificação por referendo", explicava anteontem o primeiro-ministro do mesmo Governo que, no seu programa, defendia que a "modernização do sistema político" e a "qualificação da democracia" se deveria fazer "através do alargamento do âmbito do referendo nacional", e que o referendo ao Tratado Constitucional era necessário para reforçar a "base" e "legitimação" democráticas do "processo de construção europeia". O padrão, aliás, é particularmente comum no caso português: em face de sintomas de desconfiança dos cidadãos em relação ao sistema, os actores políticos respondem com promessas de reforma institucional e democrática que, mais tarde, arranjam forma de nunca cumprir, alimentando um círculo vicioso de mais desconfiança e renovadas promessas. A crescente competência, informação e sofisticação política dos cidadãos até pode não ser suficiente para tomar decisões sobre matérias tão complexas como um tratado europeu. Mas é suficiente para perceber quando estão a ser enganados, e como a discussão sobre os méritos e deméritos de um referendo europeu é ociosa em face do óbvio ululante: o referendo foi, sem margem para dúvidas, uma promessa eleitoral do actual Governo.
Era bom que se encontrasse alguma forma de quebrar este círculo vicioso. As nossas elites políticas têm provavelmente razões para estarem preocupadas com a desconfiança que hoje inspiram nos cidadãos, assim como com a demagogia, o populismo ou a deslegitimação da democracia representativa que os referendos podem trazer. Mas, se é esse o caso, fariam sempre melhor se evitassem adoptar nas campanhas eleitorais tudo aquilo que agora vêm dizer temer. De resto, nada nos garante que os referendos tenham sempre essas características, ou mesmo que a sua realização não ajude a quebrar este círculo vicioso. Uma das coisas mais curiosas do já mencionado estudo de 1997 é que, entre os cinco países onde o apoio à democracia directa era mais forte - Bélgica, Portugal, Alemanha, Irlanda e Grécia -, quatro deles eram países que nunca tinham tido, à época, referendos nacionais, enquanto a Dinamarca era, compreensivelmente, o país onde o cepticismo em relação à democracia directa era maior. Os eleitores aprendem várias coisas observando o funcionamento do seu sistema político, inclusivamente que os referendos não são a solução mágica para tudo. Mas este círculo vicioso só ensina desconfiança, cepticismo e receio.
Mas talvez mais interessante seja verificar que, para a população em geral, ela parece já ter sido decidida. Num Eurobarómetro de 1997 que questionava os europeus acerca da conveniência de um recurso mais frequente a referendos, a maior parte dos países apoiava a ideia com maiorias muito expressivas. E Portugal não é excepção, como se confirma uma vez mais através dos resultados de uma sondagem divulgada na passada quinta-feira, onde dois em cada três dos inquiridos com opinião sobre o tema, mesmo com toda a carga favorável associado ao tratado europeu acordado em Lisboa, defendiam a sua submissão a referendo.
É talvez por isto que, pressentindo o generalizado apoio popular à democracia directa, fruto de uma combinação entre a crescente autoconfiança dos cidadãos nas suas próprias competências e a sua crescente desconfiança em relação à política "convencional", os agentes políticos vão declarando episodicamente o seu amor eterno pelos referendos, particularmente quando estão em campanha eleitoral. Contudo, quando saímos dos momentos onde só conta a propaganda, não é invulgar ver-se uma marcha-atrás. "A ratificação pelo Parlamento é tão válida quanto a ratificação por referendo", explicava anteontem o primeiro-ministro do mesmo Governo que, no seu programa, defendia que a "modernização do sistema político" e a "qualificação da democracia" se deveria fazer "através do alargamento do âmbito do referendo nacional", e que o referendo ao Tratado Constitucional era necessário para reforçar a "base" e "legitimação" democráticas do "processo de construção europeia". O padrão, aliás, é particularmente comum no caso português: em face de sintomas de desconfiança dos cidadãos em relação ao sistema, os actores políticos respondem com promessas de reforma institucional e democrática que, mais tarde, arranjam forma de nunca cumprir, alimentando um círculo vicioso de mais desconfiança e renovadas promessas. A crescente competência, informação e sofisticação política dos cidadãos até pode não ser suficiente para tomar decisões sobre matérias tão complexas como um tratado europeu. Mas é suficiente para perceber quando estão a ser enganados, e como a discussão sobre os méritos e deméritos de um referendo europeu é ociosa em face do óbvio ululante: o referendo foi, sem margem para dúvidas, uma promessa eleitoral do actual Governo.
Era bom que se encontrasse alguma forma de quebrar este círculo vicioso. As nossas elites políticas têm provavelmente razões para estarem preocupadas com a desconfiança que hoje inspiram nos cidadãos, assim como com a demagogia, o populismo ou a deslegitimação da democracia representativa que os referendos podem trazer. Mas, se é esse o caso, fariam sempre melhor se evitassem adoptar nas campanhas eleitorais tudo aquilo que agora vêm dizer temer. De resto, nada nos garante que os referendos tenham sempre essas características, ou mesmo que a sua realização não ajude a quebrar este círculo vicioso. Uma das coisas mais curiosas do já mencionado estudo de 1997 é que, entre os cinco países onde o apoio à democracia directa era mais forte - Bélgica, Portugal, Alemanha, Irlanda e Grécia -, quatro deles eram países que nunca tinham tido, à época, referendos nacionais, enquanto a Dinamarca era, compreensivelmente, o país onde o cepticismo em relação à democracia directa era maior. Os eleitores aprendem várias coisas observando o funcionamento do seu sistema político, inclusivamente que os referendos não são a solução mágica para tudo. Mas este círculo vicioso só ensina desconfiança, cepticismo e receio.
Etiquetas: opinião pública, referendos
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