terça-feira, junho 26, 2007

O aeroporto

Em Junho de 2005, uma sondagem publicada no Diário de Notícias mostrava que, apesar de estarem divididos sobre o local onde deveria ser construído um novo aeroporto, os portugueses eram, ainda assim, marginalmente favoráveis à hipótese Ota. Dois anos depois, e antes ainda de se ter levantado a hipótese de Alcochete, todas as sondagens já mostravam que a oposição popular à Ota se tinha tornado esmagadora, e até que a própria construção de um novo aeroporto era vista como desnecessária, mesmo pela população residente na região de Lisboa.

Uma das reacções possíveis a este desenvolvimento consiste em lamentar a forma como tudo se passou. Poder-se-ia assim criticar as hesitações do Governo ou a inexistência de um "estudo definitivo" que tivesse demonstrado a superioridade de uma das opções. Lamentar o aproveitamento da situação por parte das oposições, incapazes de abdicar da "chicana política" em nome do "interesse nacional". E o mesmo poderia ser dito em relação à incapacidade dos "especialistas" para chegarem a acordo, ao alarido generalizado e irresponsável na comunicação social e na blogosfera, aos desígnios inconfessáveis das associações empresariais e daqueles que financiam os seus "estudos", aos ambientalistas que nunca estão satisfeitos com opção alguma e ao papel que Belém desempenhou em coisas que, supostamente, não lhe dizem respeito. A discussão sobre um investimento público de enorme importância acabou for ficar - um desastre - "politizada". E há ainda quem tenha assinalado a aparente incongruência de se fazerem sondagens sobre um assunto com esta "complexidade técnica". O que podem saber os cidadãos comuns sobre o local onde se deve construir um aeroporto?

É verdade que uma das conclusões mais robustas dos estudos sobre a opinião pública é que a esmagadora maioria das pessoas sabe muito pouco sobre a esmagadora maioria dos assuntos que ocupam as páginas de informação política dos jornais e os noticiários televisivos. Mas se vamos por aqui, importa não esquecer outros detalhes. Os jornalistas, comentadores e analistas que escrevem nesses jornais e falam nessas televisões saberão, por obrigação profissional, algo mais do que o cidadão comum, mas também eles têm constrangimentos em termos de tempo e de recursos, assim como interesses e preferências que não raras vezes condicionam aquilo que escrevem e dizem. Os deputados? Eleitos por razões que nada têm que ver com competência técnica, desprovidos de staff apropriado e tomando decisões sobre centenas dos mais variados assuntos, só são verdadeiramente especialistas no funcionamento das próprias instituições políticas, ou seja, naquilo que se relaciona com a sua actividade profissional, a ocupação de cargos electivos. É certo que os governos comandam recursos materiais e técnicos de que os parlamentos não dispõem, e são geralmente mais capazes de prever as consequências de uma determinada decisão política. Contudo, têm de ponderar a "bondade técnica" das decisões com interesses eleitorais. E dependem da informação que lhes chega de burocracias estatais, que também são parte interessada em muitas decisões. Essas burocracias, para obterem informação de apoio à decisão política, recorrem frequentemente às confederações, aos sindicatos, às ordens profissionais e às mais variadas associações. Por outras palavras, recolhem informação junto daqueles que, por serem afectados pelas decisões, têm mais incentivos para a produzir com o objectivo fundamental de, claro, defenderem os seus interesses.

Vistas as coisas assim, talvez valha a pena reconsiderarmos aquilo que podemos definir como uma "boa decisão" e qual o papel que os ignorantes cidadãos podem ter em todo o processo. Os eleitores podem não saber nada sobre as dezenas de variáveis envolvidas na escolha da localização de um aeroporto. Mas, quando se anunciam "estudos técnicos" sobre essa localização financiados por associações empresariais, ficam a saber algo que não sabiam. O que ficam a saber nada tem a ver com as conclusões técnicas do estudo - inverificáveis para a maioria e, de resto, determinadas à partida por quem pagou a conta - mas sim outro tipo de informação: a de que as consequências da decisão são suficientemente importantes para que alguém se disponha a abrir a carteira. Quando o Governo hesita ou quando os seus membros assumem posições contraditórias, há algo previamente insuspeitado que subitamente se revela: a inexistência de uma "solução técnica" ideal para o problema, mas apenas de uma solução política, que beneficiará alguns e prejudicará outros. Quando a comunicação social e a blogosfera dedicam obsessiva atenção a todo o processo, os eleitores podem ficar a confiar um pouco mais na possibilidade de que, mas tarde ou mais cedo, aqueles que mentem venham a ser detectados e que, logo, hesitem antes de o fazer. E quando um determinado tema é transformado em arma de luta política entre partidos ou mesmo entre instituições, é certo e seguro que alguém, mais tarde ou mais cedo, vai ter de assumir as responsabilidades pelas suas posições.

Nada disto é perfeito, claro. Mas quem olha com desilusão ou até repugnância para a forma como um assunto supostamente "técnico" como a localização de um aeroporto se politizou desta forma talvez devesse ponderar as alternativas. Já tivemos um investimento público estratégico aparentemente decidido na calma e na ponderação dos gabinetes, por pessoas repletas de "competência técnica" e insensíveis às pressões da opinião pública ou às "politiquices". Chamou-se porto de Sines. E também já tivemos outros - CCB, Casa da Música, Alqueva ou estádios do Euro 2004 - que foram transformados em inquestionáveis "desígnios nacionais" pela passividade da opinião pública e pela colusão entre partidos e interesses. O descontrolo dos gastos nuns casos e as expectativas frustradas noutros estão aí para mostrar aquilo em que dá o "consenso". Que venha então o barulho sobre o aeroporto, o TGV e tudo o resto. Chama-se democracia. Habituem-se.

Etiquetas: