Maiorias e presidentes
Em Janeiro de 1992, Portugal assumia a presidência da União Europeia. Um ano antes, Mário Soares tinha conquistado um segundo mandato presidencial, com mais de 70 por cento dos votos. E em Outubro de 1991, o PSD tinha ganho as eleições legislativas, obtendo uma segunda maioria absoluta. Por essa altura, a popularidade de Mário Soares e Cavaco Silva, medidas através do painel Expresso/Euroexpansão, atingiam o seu pico.
Menos de um mês antes do fim da presidência portuguesa, Mário Soares enviava uma mensagem ao Parlamento onde alertava para os perigos de uma excessiva "governamentalização" dos meios de comunicação social do Estado. Era o início da "guerrilha institucional". Parte da mensagem que Soares fez passar nessa guerrilha foi a de que o Governo tinha desperdiçado as condições excepcionais de estabilidade política e institucional que a maioria absoluta e, em parte, o próprio Presidente - contrariando aqueles que esperavam (ou desejavam) que a coabitação tivesse sido mais conflitual - lhe tinham concedido nos anos anteriores. Sinais desse "desperdício", tais como o aumento do desemprego e a desaceleração (seguida de travagem) do crescimento económico, começavam a aparecer em 1992. Sinais esses que, na presidência, terão certamente sido antecipados e que, de seguida, foram amplificados com "presidências abertas" que deram a Belém o controlo da agenda dos meios de comunicação social.
Mas a outra parte da mensagem, porventura a mais importante, era a de que uma dessas condições de estabilidade, a maioria absoluta, tinha também gerado efeitos perversos: o "abuso" do poder por parte do Governo e em particular a tentativa de enfraquecimento dos mecanismos de controlo externos ao seu exercício, tais como o poder judicial, o Ministério Público e a comunicação social. O Governo do PSD, talvez pensando - ingenuamente - que o conflito distrairia atenções dos problemas económicos, aceitou alegremente o desafio. Acusou o Presidente de se ter passado para a oposição e juntou-o a uma vasta galeria de forças de bloqueio da "modernização e desenvolvimento do país". Abriu flancos adicionais em dolorosas escaramuças sobre a lei de imprensa, o estatuto do procurador-geral da República ou a composição do Conselho Superior da Magistratura, para já não falar de conflitos com as associações de polícias e militares. Sucediam-se as romarias a Belém de grupos de interesses "agravados" pelo Governo. E foi a partir de Belém que o descontentamento foi agregado, formando-se uma vasta coligação de forças e interesses que se opunham ao Governo. O fim desta história é conhecido. Em 1995, o PS ganhava as eleições, e o estigma da "ditadura da maioria" era de tal modo grande que, quatro anos depois, António Guterres ainda fez de conta que não queria tal coisa. Cavaco Silva perdeu as presidenciais em 1996 e precisou de uma década de trabalho árduo (e de falhanços alheios) para reabilitar a sua imagem perante a opinião pública.
Julgo não ser o único que se vai recordando de tudo isto à medida que se observam os factos políticos recentes. Esses factos não são apenas a aproximação da presidência portuguesa da UE, a timidez da recuperação económica e da criação de emprego prometidas pelo Governo, o episódio da carta do primeiro-ministro ao Tribunal Constitucional, os conflitos com os juízes, o descontentamento dos militares ou a centralização dos serviços de segurança e de informações. São também as movimentações que, na oposição à direita, se vão sucedendo para preparar a substituição de lideranças, abertamente no CDS-PP e, de forma mais velada e incerta, no PSD, e que não se teriam acelerado desta forma se não houvesse alguma expectativa de que algo pode acontecer que exija preparação prévia.
É certo que a mesma exacta conjunção de circunstâncias políticas e económicas nunca se repete. Quando terminar a presidência portuguesa da União, no fim de 2007, estaremos a pouco mais de um ano de eleições legislativas. Cavaco Silva estará ainda a menos de metade do seu primeiro mandato, não gozando, por isso, daquilo a que Joaquim Aguiar - assessor de Eanes e Soares e apoiante de Cavaco - chamava, num ensaio publicado na Análise Social em 1996, "o poder sem compromissos", aquele que só vem com o segundo mandato, onde já não é preciso pensar em votos. Para além disso, os actores políticos têm personalidades próprias e aprendem com o passado. O que Soares fez a Cavaco não se esquece e, de resto, é improvável que Cavaco lhe tivesse querido (ou sabido) fazer o mesmo se os papéis estivessem trocados. As pessoas são como são.
Contudo, o passado nunca ensina só uma lição. Ele também mostra, por exemplo, como o sentimento da opinião pública em relação às maiorias absolutas e à centralização do poder pode passar rapidamente da confiança à repugnância. Como Belém é um ponto de atracção do descontentamento de interesses e grupos sociais particularmente importantes e influentes, criando pressões para o intervencionismo presidencial que não são fáceis de conter. Como os compromissos de um presidente com uma determinada linha de relacionamento com um governo são mínimos, moldáveis e facilmente reinterpretáveis. E que, como mostra a alucinante ascensão de Cavaco Silva nas sondagens de popularidade poucos meses após uma eleição extremamente dividida, há qualquer coisa de indefinível que se conquista em Belém a que partidos e governos não podem aspirar. Um vasto capital político, que se adquire rapidamente, mas que pode definhar caso com ele não se faça algum investimento relevante. O ano de 2011 é daqui a muito tempo e a "cooperação estratégica" pode não ser a única maneira de ganhar um lugar na História. O PS e o Governo andam a jogar um jogo muito perigoso, mas eles lá saberão. Ou não.
Menos de um mês antes do fim da presidência portuguesa, Mário Soares enviava uma mensagem ao Parlamento onde alertava para os perigos de uma excessiva "governamentalização" dos meios de comunicação social do Estado. Era o início da "guerrilha institucional". Parte da mensagem que Soares fez passar nessa guerrilha foi a de que o Governo tinha desperdiçado as condições excepcionais de estabilidade política e institucional que a maioria absoluta e, em parte, o próprio Presidente - contrariando aqueles que esperavam (ou desejavam) que a coabitação tivesse sido mais conflitual - lhe tinham concedido nos anos anteriores. Sinais desse "desperdício", tais como o aumento do desemprego e a desaceleração (seguida de travagem) do crescimento económico, começavam a aparecer em 1992. Sinais esses que, na presidência, terão certamente sido antecipados e que, de seguida, foram amplificados com "presidências abertas" que deram a Belém o controlo da agenda dos meios de comunicação social.
Mas a outra parte da mensagem, porventura a mais importante, era a de que uma dessas condições de estabilidade, a maioria absoluta, tinha também gerado efeitos perversos: o "abuso" do poder por parte do Governo e em particular a tentativa de enfraquecimento dos mecanismos de controlo externos ao seu exercício, tais como o poder judicial, o Ministério Público e a comunicação social. O Governo do PSD, talvez pensando - ingenuamente - que o conflito distrairia atenções dos problemas económicos, aceitou alegremente o desafio. Acusou o Presidente de se ter passado para a oposição e juntou-o a uma vasta galeria de forças de bloqueio da "modernização e desenvolvimento do país". Abriu flancos adicionais em dolorosas escaramuças sobre a lei de imprensa, o estatuto do procurador-geral da República ou a composição do Conselho Superior da Magistratura, para já não falar de conflitos com as associações de polícias e militares. Sucediam-se as romarias a Belém de grupos de interesses "agravados" pelo Governo. E foi a partir de Belém que o descontentamento foi agregado, formando-se uma vasta coligação de forças e interesses que se opunham ao Governo. O fim desta história é conhecido. Em 1995, o PS ganhava as eleições, e o estigma da "ditadura da maioria" era de tal modo grande que, quatro anos depois, António Guterres ainda fez de conta que não queria tal coisa. Cavaco Silva perdeu as presidenciais em 1996 e precisou de uma década de trabalho árduo (e de falhanços alheios) para reabilitar a sua imagem perante a opinião pública.
Julgo não ser o único que se vai recordando de tudo isto à medida que se observam os factos políticos recentes. Esses factos não são apenas a aproximação da presidência portuguesa da UE, a timidez da recuperação económica e da criação de emprego prometidas pelo Governo, o episódio da carta do primeiro-ministro ao Tribunal Constitucional, os conflitos com os juízes, o descontentamento dos militares ou a centralização dos serviços de segurança e de informações. São também as movimentações que, na oposição à direita, se vão sucedendo para preparar a substituição de lideranças, abertamente no CDS-PP e, de forma mais velada e incerta, no PSD, e que não se teriam acelerado desta forma se não houvesse alguma expectativa de que algo pode acontecer que exija preparação prévia.
É certo que a mesma exacta conjunção de circunstâncias políticas e económicas nunca se repete. Quando terminar a presidência portuguesa da União, no fim de 2007, estaremos a pouco mais de um ano de eleições legislativas. Cavaco Silva estará ainda a menos de metade do seu primeiro mandato, não gozando, por isso, daquilo a que Joaquim Aguiar - assessor de Eanes e Soares e apoiante de Cavaco - chamava, num ensaio publicado na Análise Social em 1996, "o poder sem compromissos", aquele que só vem com o segundo mandato, onde já não é preciso pensar em votos. Para além disso, os actores políticos têm personalidades próprias e aprendem com o passado. O que Soares fez a Cavaco não se esquece e, de resto, é improvável que Cavaco lhe tivesse querido (ou sabido) fazer o mesmo se os papéis estivessem trocados. As pessoas são como são.
Contudo, o passado nunca ensina só uma lição. Ele também mostra, por exemplo, como o sentimento da opinião pública em relação às maiorias absolutas e à centralização do poder pode passar rapidamente da confiança à repugnância. Como Belém é um ponto de atracção do descontentamento de interesses e grupos sociais particularmente importantes e influentes, criando pressões para o intervencionismo presidencial que não são fáceis de conter. Como os compromissos de um presidente com uma determinada linha de relacionamento com um governo são mínimos, moldáveis e facilmente reinterpretáveis. E que, como mostra a alucinante ascensão de Cavaco Silva nas sondagens de popularidade poucos meses após uma eleição extremamente dividida, há qualquer coisa de indefinível que se conquista em Belém a que partidos e governos não podem aspirar. Um vasto capital político, que se adquire rapidamente, mas que pode definhar caso com ele não se faça algum investimento relevante. O ano de 2011 é daqui a muito tempo e a "cooperação estratégica" pode não ser a única maneira de ganhar um lugar na História. O PS e o Governo andam a jogar um jogo muito perigoso, mas eles lá saberão. Ou não.
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