O Papa, a Europa e a Turquia
Nos últimos tempos, tudo parece correr mal nas relações entre a União Europeia e a Turquia. Na passada quarta-feira, a Comissão recomendou a suspensão das negociações de adesão em oito dos trinta e cinco capítulos nos quais toda a legislação comunitária foi dividida para fins de análise de progresso dos países candidatos. A razão mais próxima é a recusa da Turquia em abrir os portos e aeroportos do país aos navios e aviões cipriotas. Contudo, este não é o único problema. Segundo o último relatório de progresso, a Turquia não terá feito esforços suficientes nas questões dos direitos culturais e das mulheres, na liberdade de expressão e de actividade sindical e nas relações entre o poder civil e militar. A percepção geral é a de uma desaceleração do ritmo das reformas no último ano.
Uma reacção possível a estes desenvolvimentos consiste simplesmente em defender o óbvio: o governo turco terá de cumprir as regras, reconhecendo Chipre e promovendo avanços decisivos nas reformas democráticas pedidas pela Comissão. Mas há muita gente para quem o óbvio não é suficiente. Há quem fale da dimensão populacional da Turquia e do peso político que isso lhe trará, apesar da adesão da Polónia não ter produzido, aparentemente, semelhantes preocupações. Outros mencionam o baixo nível de desenvolvimento económico da Turquia, apesar da Roménia e da Bulgária, com indicadores semelhantes, irem aderir à UE em breve. Há também quem teorize sobre a “capacidade de absorção” de novos membros por parte da actual União Europeia, conceito concebido durante a presidência austríaca, destinado a impedir que a entrada de novos países dependa unicamente do seu cumprimento dos critérios de Copenhaga e usado agora por Angela Merkel para aquilo que sabe que a Turquia nunca poderá aceitar, uma “parceria privilegiada” aquém da adesão.
E há, claro, o mais intratável de todos os problemas, o dilema existencial da “identidade” cultural e geográfica da Europa. Nicolas Sarkozy, já em plena campanha eleitoral, defendeu que a decisão da Comissão só peca por defeito, aproveitando para dar uma breve lição de história e geografia: “a Europa foi feita para os estados europeus e a Turquia é na Ásia Menor”. Que Nicósia fique mais perto de Damasco que Ancara é, afinal, um mero detalhe. Que os turcos, em vários estudos recentes, defendam a separação entre o governo e a religião com mais intensidade que vários países europeus ou mesmo os Estados Unidos, ou que exibam atitudes políticas favoráveis à democracia e à liberdade de expressão em números semelhantes aos verificados na Europa Ocidental, são coisas que, pelos vistos, devemos ver como indicando um inultrapassável “abismo cultural”. E talvez, enquanto vamos ruminando este ponderoso assunto, nos esqueçamos das verdadeiras razões que fazem com que Alemanha e França não desejem, na verdade, a adesão da Turquia. É na Alemanha que vai ser recebida a maior parte da imigração turca que, independentemente dos benefícios que trará ao crescimento económico europeu, levará certamente, a curto-prazo, à diminuição dos salários dos trabalhadores alemães menos qualificados. E apesar do impacto da adesão turca nas transferências orçamentais não ser superior ao que vai resultando da adesão dos últimos dez estados-membros, ele será, de facto, insustentável no domínio dos subsídios agrícolas sem uma reforma da Política Agrícola Comum, reforma essa que os franceses, previsivelmente, desejam impedir por todos os meios ao seu alcance.
A hipocrisia política costuma levar à irracionalidade da opinião pública, e este caso não é excepção. Em 1996, a Turquia encontrava-se mergulhada numa profunda crise política e era classificada pela Freedom House como assegurando um grau de protecção dos direitos cívicos e políticos inferior ao de países como a Rússia, a Jordânia ou o Líbano. Nessa altura, 44 por cento dos europeus opunham-se à sua entrada na UE. Dez anos depois, abolida a pena de morte e a jurisdição dos tribunais militares sobre civis, fortalecido o controlo do poder político sobre os militares e reconhecida a supremacia jurídica das convenções internacionais sobre direitos humanos, há já 55 por cento de europeus que se opõem à adesão da Turquia. Pelo caminho, um inquérito de Julho de 2006 mostra que a percentagem de turcos que consideram a adesão do país à União como algo “positivo” ou “vantajoso” é cada vez menor. Os turcos vão deixando de acreditar que a entrada na União seja algo que ainda dependa da sua vontade ou capacidade. As implicações negativas para a capacidade reformista deste e de qualquer futuro governo na Turquia são evidentes.
É por tudo isto que as recentes declarações de Bento XVI de que veria com bons olhos a entrada do país na UE — relatadas por terceiros, mas até hoje não desmentidas — são tão importantes. Acompanhadas pela declaração conjunta com o Patriarca Bartolomeu I no passado dia 30, elas retomam o fundamental e o óbvio: a Turquia pode entrar na UE, mas deve para tal respeitar a democracia e o estado de direito, as liberdade cívicas e, especialmente, os direitos das minorias religiosas. Esta posição vem da autoridade máxima da confissão religiosa que mais contribuiu para a unificação da Europa, seja através de católicos devotos como Schuman, Adenauer e de Gasperi, ou através do papel desempenhado pelos partidos e eleitores democratas-cristãos nos últimos cinquenta anos. E talvez ainda mais importante, ela esvazia a retórica que algumas figuras menos felizes da actual democracia-cristã europeia adoptam sobre o tema, impedindo que se escudem em argumentos que não reflectem nem a sua real posição nem aquilo que a fundamenta. O caminho que a Turquia tem de percorrer ainda é longo. E os problemas que a sua adesão causará na Europa são reais e merecem ser ponderados. Mas são problemas políticos, e não da ordem do “intangível” ou do “primordial”. A autoridade religiosa também pode servir para restabelecer alguma racionalidade no mundo.
Uma reacção possível a estes desenvolvimentos consiste simplesmente em defender o óbvio: o governo turco terá de cumprir as regras, reconhecendo Chipre e promovendo avanços decisivos nas reformas democráticas pedidas pela Comissão. Mas há muita gente para quem o óbvio não é suficiente. Há quem fale da dimensão populacional da Turquia e do peso político que isso lhe trará, apesar da adesão da Polónia não ter produzido, aparentemente, semelhantes preocupações. Outros mencionam o baixo nível de desenvolvimento económico da Turquia, apesar da Roménia e da Bulgária, com indicadores semelhantes, irem aderir à UE em breve. Há também quem teorize sobre a “capacidade de absorção” de novos membros por parte da actual União Europeia, conceito concebido durante a presidência austríaca, destinado a impedir que a entrada de novos países dependa unicamente do seu cumprimento dos critérios de Copenhaga e usado agora por Angela Merkel para aquilo que sabe que a Turquia nunca poderá aceitar, uma “parceria privilegiada” aquém da adesão.
E há, claro, o mais intratável de todos os problemas, o dilema existencial da “identidade” cultural e geográfica da Europa. Nicolas Sarkozy, já em plena campanha eleitoral, defendeu que a decisão da Comissão só peca por defeito, aproveitando para dar uma breve lição de história e geografia: “a Europa foi feita para os estados europeus e a Turquia é na Ásia Menor”. Que Nicósia fique mais perto de Damasco que Ancara é, afinal, um mero detalhe. Que os turcos, em vários estudos recentes, defendam a separação entre o governo e a religião com mais intensidade que vários países europeus ou mesmo os Estados Unidos, ou que exibam atitudes políticas favoráveis à democracia e à liberdade de expressão em números semelhantes aos verificados na Europa Ocidental, são coisas que, pelos vistos, devemos ver como indicando um inultrapassável “abismo cultural”. E talvez, enquanto vamos ruminando este ponderoso assunto, nos esqueçamos das verdadeiras razões que fazem com que Alemanha e França não desejem, na verdade, a adesão da Turquia. É na Alemanha que vai ser recebida a maior parte da imigração turca que, independentemente dos benefícios que trará ao crescimento económico europeu, levará certamente, a curto-prazo, à diminuição dos salários dos trabalhadores alemães menos qualificados. E apesar do impacto da adesão turca nas transferências orçamentais não ser superior ao que vai resultando da adesão dos últimos dez estados-membros, ele será, de facto, insustentável no domínio dos subsídios agrícolas sem uma reforma da Política Agrícola Comum, reforma essa que os franceses, previsivelmente, desejam impedir por todos os meios ao seu alcance.
A hipocrisia política costuma levar à irracionalidade da opinião pública, e este caso não é excepção. Em 1996, a Turquia encontrava-se mergulhada numa profunda crise política e era classificada pela Freedom House como assegurando um grau de protecção dos direitos cívicos e políticos inferior ao de países como a Rússia, a Jordânia ou o Líbano. Nessa altura, 44 por cento dos europeus opunham-se à sua entrada na UE. Dez anos depois, abolida a pena de morte e a jurisdição dos tribunais militares sobre civis, fortalecido o controlo do poder político sobre os militares e reconhecida a supremacia jurídica das convenções internacionais sobre direitos humanos, há já 55 por cento de europeus que se opõem à adesão da Turquia. Pelo caminho, um inquérito de Julho de 2006 mostra que a percentagem de turcos que consideram a adesão do país à União como algo “positivo” ou “vantajoso” é cada vez menor. Os turcos vão deixando de acreditar que a entrada na União seja algo que ainda dependa da sua vontade ou capacidade. As implicações negativas para a capacidade reformista deste e de qualquer futuro governo na Turquia são evidentes.
É por tudo isto que as recentes declarações de Bento XVI de que veria com bons olhos a entrada do país na UE — relatadas por terceiros, mas até hoje não desmentidas — são tão importantes. Acompanhadas pela declaração conjunta com o Patriarca Bartolomeu I no passado dia 30, elas retomam o fundamental e o óbvio: a Turquia pode entrar na UE, mas deve para tal respeitar a democracia e o estado de direito, as liberdade cívicas e, especialmente, os direitos das minorias religiosas. Esta posição vem da autoridade máxima da confissão religiosa que mais contribuiu para a unificação da Europa, seja através de católicos devotos como Schuman, Adenauer e de Gasperi, ou através do papel desempenhado pelos partidos e eleitores democratas-cristãos nos últimos cinquenta anos. E talvez ainda mais importante, ela esvazia a retórica que algumas figuras menos felizes da actual democracia-cristã europeia adoptam sobre o tema, impedindo que se escudem em argumentos que não reflectem nem a sua real posição nem aquilo que a fundamenta. O caminho que a Turquia tem de percorrer ainda é longo. E os problemas que a sua adesão causará na Europa são reais e merecem ser ponderados. Mas são problemas políticos, e não da ordem do “intangível” ou do “primordial”. A autoridade religiosa também pode servir para restabelecer alguma racionalidade no mundo.
<< Home