terça-feira, novembro 21, 2006

Nós e a América

Poucas horas depois das eleições para o Congresso norte-americano no passado dia 7, já quase todos os comentadores políticos nas televisões, jornais e blogues portugueses tinham feito as suas ilações sobre as motivações dos eleitores, o significado profundo das eleições e as suas implicações para o futuro. O contraste entre essas análises e as que foram feitas nos Estados Unidos, mesmo as provenientes de quadrantes ideológicos semelhantes, é pura e simplesmente fascinante.

Em Portugal, especialmente nalguns blogues mais identificados com a direita ideológica, abundaram explicações complexas para os resultados, chamando a atenção para as especificidades dos contextos, dos candidatos e dos temas em cada eleição local ou estadual e para a impossibilidade de fazer inferências sobre a relação entre a actuação de Bush ou a avaliação da guerra do Iraque e este resultado. Tudo isto, contudo, surpreenderia todas as pessoas com quem falei nos Estados Unidos por esses dias, alguns deles especialistas em comportamento eleitoral, assim como, suponho, a esmagadora maioria dos americanos. Nas sondagens à boca das urnas, apresentadas e trabalhadas até à exaustão nas emissões da Fox e da CNN - em desfavor dos habituais comentários de figuras partidárias que se costumam privilegiar nas noites eleitorais portuguesas - 58 por cento dos votantes responderam que manifestar apoio ou oposição a George W. Bush foi a principal motivação do seu voto. Não li, vi ou ouvi, nos dias que lá passei, qualquer meio de comunicação ou um único comentador, de esquerda ou de direita, que contestasse a ideia de que estas eleições foram, em grande medida, um referendo à actuação do Presidente. E todas as pessoas com quem falei convergiram na ideia de que a guerra do Iraque tinha sido um ingrediente fundamental da avaliação (negativa) dessa actuação, divergindo apenas naquilo que era o seu principal motivo de satisfação pessoal: para os democratas, o resultado eleitoral, claro, mas também o reconhecimento da sua "razão"; para os republicanos, a possibilidade de agora passarem a "batata quente" para o outro lado.

O segundo aspecto contrastante é a concepção sobre quem são e como pensam os eleitores norte-americanos. Em Portugal, e talvez em toda a Europa, esteve subjacente a muitos dos comentários a visão de que, apesar dos resultados, o eleitorado americano permanece profundamente conservador no plano dos valores e predominantemente liberal no plano económico. Nos Estados Unidos, contudo, poucos não saberão que, na realidade, há mais eleitores que se dizem próximos do Partido Democrata do que do Partido Republicano. E terão sido muitos aqueles que, como eu, ouviram candidatos democratas - especialmente em discursos de vitória na noite de 7 de Novembro - repetir aquilo que vêem dizendo há meses nas suas campanhas: a defesa do aumento do salário mínimo e da necessidade de assegurar cuidados de saúde para todos os cidadãos independentemente do seu rendimento. Uma amostra enviesada? Provavelmente. Mas também se sabe, por exemplo, que a esmagadora maioria dos americanos é moderada em temas como o aborto, os direitos dos homossexuais, a investigação em células estaminais ou o controlo da posse de armas, e a haver alguma inclinação maioritária, é para as posições normalmente associadas com a "esquerda". Como se isto não bastasse, cerca de 80 por cento acham que é responsabilidade do governo "assegurar um nível de vida decente para os idosos", e 60 por cento acham que "colocar uma porção dos impostos para a segurança social em fundos de investimento" é "uma má ideia". Nada disto é recente, pelo que as eleições não foram necessariamente sinal de uma qualquer mudança. Mas nada disto sugere uma opinião pública casada com o liberalismo económico e o tradicionalismo cultural, ao contrário do que aqui se vai decretando.

O terceiro contraste tem a ver com a ideia, já avançada por muitos comentadores portugueses, de que o resultado político destas eleições - o controlo de ambas as câmaras do Congresso pelo Partido Democrata - não fará diferença significativa na condução da política interna e externa dos Estados Unidos. Aqui, é possível que alguns americanos, especialmente os que se situam mais à esquerda, partilhem o mesmo sentimento: como mostra um estudo muito recente feito para o Pew Research Center for the People and the Press, apenas 37 por cento desses eleitores acham que o Partido Democrata tem feito um bom trabalho na defesa dos interesses das minorias e da "classe trabalhadora" ou na ajuda aos mais desfavorecidos. Mas já não passaria pela cabeça de um comentador americano informado supor que o controlo da agenda legislativa e das comissões parlamentares no Congresso pelo Partido Democrata é politicamente indiferente, ou que a necessidade de confirmação dos novos juizes federais por um Senado democrata não afectará as escolhas de Bush.* Todos sabem como os parlamentares democratas tendem, na esmagadora maioria dos casos, a votar contra as propostas de lei defendidas pelas organizações que congregam os lóbis conservadores, e o inverso sucede com os republicanos. E não há dúvidas, na literatura económica, dos efeitos do controlo do Congresso por um ou outro partido na inflação, no desemprego, na política fiscal ou nas despesas sociais. A ideia de que os partidos de esquerda são, afinal, de direita é que talvez seja uma peculiaridade portuguesa.

E até na política externa, onde, de facto, a autoridade do Congresso é limitada, é precipitado supor-se que o efeito destas eleições serão nulos. Escolhido Rumsfeld para o papel de bode expiatório, suspeita-se já da redução acentuada da influência de Cheney. Richard Perle, Bill Kristol e outras figuras neoconservadoras já se voltaram contra a administração. Mas, ao fazerem-no, libertaram George W. Bush. A culpa, afinal, foi das más companhias e ele ainda é, afinal, o Presidente. Com um Congresso Democrata sem solução possível para aquilo que outros tornaram insolúvel, resta uma saída "honrosa", com os iraquianos entregues ao seu miserável destino. Sem as eleições, este desfecho não seria possível. Agora sim.

*No original do Público, esta passagem apareceu numa versão incorrecta, culpa minha...