Popularidade e governo
Circula no comentário político a ideia de que o governo tem vivido num "estado de graça" que agora chegou ao fim. Primeiro veio a "semana negra" entre 12 e 19 de Outubro, marcada pelo anúncio da introdução de taxas moderadoras nos internamentos hospitalares, pelas declarações do Ministro da Economia sobre o "fim da crise", pela imputação da "culpa" dos aumentos do preço da energia eléctrica aos consumidores e pela introdução de portagens nas SCUT do litoral. Depois veio uma sondagem, divulgada pelo Diário de Notícias no passado dia 27, em que o saldo entre opiniões positivas e negativas acerca do Primeiro Ministro caiu de 18 pontos positivos para apenas dois. É certo que uma sondagem é apenas uma sondagem, e as conclusões que façamos hoje na base dela podem vir a parecer absurdas amanhã. Mas partamos do princípio de que estamos perante um real declínio da popularidade de José Sócrates e do seu governo. O que significa ela à luz daquilo que sabemos sobre os indicadores deste governo desde a sua entrada em funções e do apoio público concedido a governos passados?
Em primeiro lugar, importa assinalar que, se quisermos ser rigorosos, este governo já saiu do "estado de graça" há algum tempo. O mais substancial declínio da popularidade do Primeiro Ministro teve início logo a partir de Maio/Junho de 2005. Nessa altura, Sócrates ainda gozava de um saldo de opiniões positivas que oscilava, dependendo dos institutos, entre os 30 e os 40 pontos percentuais. Menos de seis meses depois, por altura das autárquicas, esse capital político tinha-se evaporado. Note-se que, aqui, Sócrates não foi diferente dos seus antecessores: o mesmo fenómeno de declínio rápido de popularidade após um breve período inicial de "lua de mel" também ocorreu, em maior ou menos grau, com os governos de Cavaco Silva e de António Guterres. E se Durão Barroso foi diferente, foi apenas na medida em que o dito período de "lua de mel" nem sequer existiu: na primeira sondagem publicada após as eleições de 2002, o PS já estava à frente nas intenções de voto. Sobre Santana Lopes, nem é preciso falar.
Poder-se-ia ainda argumentar que aquilo que distinguiu Sócrates foi o facto de, após um abrupto declínio inicial, os seus níveis de apoio terem, apesar de tudo, recuperado. Mas isso é apenas parte da verdade. A dita recuperação existiu, mas deixou-o ainda muito longe dos valores iniciais de Março e Abril de 2005. Aliás, essa espécie de Verão de S. Martinho da popularidade governamental, sendo invulgar, não é inédita. Também Cavaco Silva, no seu primeiro governo maioritário, gozou de uma breve recuperação na primeira metade de 1988, para de novo encetar um declínio que só travou em finais de 1989, já depois de ultrapassado o meio do mandato. E devemos perguntar-nos até que ponto o percurso de Sócrates nos últimos meses não terá sido uma mera consequência das particularidades do ciclo político e eleitoral de 2005 e 2006. Como ouvi sugerir há dias numa conferência, as autárquicas e a punição substancial que comportaram para os candidatos do PS podem ter servido como "catarse" para o crescente descontentamento com a actuação do governo, possivelmente da mesma forma que a copiosa derrota do PSD nas Europeias de 1989 serviu para travar o declínio da popularidade de Cavaco Silva.* E como não ver nas eleições presidenciais e nos seus resultados - especialmente na renitência de Cavaco Silva em criticar o governo ou na fácil (e quase suspeita) acomodação de José Sócrates à derrota - algo susceptível de estimular expectativas positivas em relação à actuação governamental, especialmente entre aqueles que já estavam mais dispostos a dela duvidar? Deste ponto de vista, o agora declarado "fim" do "estado de graça" pode não passar de um regresso à simples normalidade das coisas.
Mas de onde vem esta "normalidade"? O que faz com que, em todas as democracias, o destino de um governo nos primeiros anos do seu mandato seja o de perder apoio público? Duas teorias são frequentemente avançadas. Uma delas, proposta pela primeira vez por Anthony Downs no seu famoso An Economic Theory of Democracy, é a de que, como todas as decisões têm ganhadores e perdedores, qualquer governo que as tome - mesmo que cada uma delas tenha o apoio de uma maioria da população - acaba por ir antagonizando as sucessivas e diferentes minorias que são mais afectadas por essas decisões. Assim, governar significa sempre provocar a alienação crescente e irremediável de um conjunto cada vez maior de eleitores, uma "coligação de minorias" que, se agregada por uma oposição eficaz, acaba por produzir a alternância política. Já a segunda teoria é um pouco menos fatalista. Ela sugere que a razão do declínio da popularidade tem simplesmente a ver com uma inflação irrealista e artificial de expectativas positivas e de "boa-vontade" em relação a qualquer novo governo. Assim que a ilusão inicial é desfeita, o nível de apoio público desce e estabiliza num nível mais baixo. O que depois se segue depende de muita coisa. Mas irá sempre reflectir, de forma lenta mas segura, os resultados da governação, em particular a capacidade de promover crescimento e emprego e - ao contrário do que sugere a teoria alternativa - da capacidade de tomar as decisões certas nas alturas certas.
É difícil saber qual destas explicações da evolução da popularidade governamental se ajusta melhor à realidade. Mas já não é tão difícil saber em qual delas António Guterres, no governo, e Durão Barroso, na oposição, parecem ter acreditado. Um procurou lidar com o descontentamento agindo como se pudesse adiar o inevitável, prescindindo de todas as decisões que pudessem fortalecer uma coligação de minorias hostil. Outro procurou agregar essa coligação com promessas cuja espectacular inconsistência se tornou evidente assim que chegou ao governo. Há, por isso, pelo menos uma virtude neste declínio da popularidade de Sócrates e do seu governo. Em que teoria acreditará o Primeiro Ministro? Agora é que vamos ficar a saber.
*Um leitor recorda-me que a travagem do declínio da popularidade de Cavaco ocorreu com as autárquicas de 1989, e não com as Europeias. Claro que sim. Erro meu.
Em primeiro lugar, importa assinalar que, se quisermos ser rigorosos, este governo já saiu do "estado de graça" há algum tempo. O mais substancial declínio da popularidade do Primeiro Ministro teve início logo a partir de Maio/Junho de 2005. Nessa altura, Sócrates ainda gozava de um saldo de opiniões positivas que oscilava, dependendo dos institutos, entre os 30 e os 40 pontos percentuais. Menos de seis meses depois, por altura das autárquicas, esse capital político tinha-se evaporado. Note-se que, aqui, Sócrates não foi diferente dos seus antecessores: o mesmo fenómeno de declínio rápido de popularidade após um breve período inicial de "lua de mel" também ocorreu, em maior ou menos grau, com os governos de Cavaco Silva e de António Guterres. E se Durão Barroso foi diferente, foi apenas na medida em que o dito período de "lua de mel" nem sequer existiu: na primeira sondagem publicada após as eleições de 2002, o PS já estava à frente nas intenções de voto. Sobre Santana Lopes, nem é preciso falar.
Poder-se-ia ainda argumentar que aquilo que distinguiu Sócrates foi o facto de, após um abrupto declínio inicial, os seus níveis de apoio terem, apesar de tudo, recuperado. Mas isso é apenas parte da verdade. A dita recuperação existiu, mas deixou-o ainda muito longe dos valores iniciais de Março e Abril de 2005. Aliás, essa espécie de Verão de S. Martinho da popularidade governamental, sendo invulgar, não é inédita. Também Cavaco Silva, no seu primeiro governo maioritário, gozou de uma breve recuperação na primeira metade de 1988, para de novo encetar um declínio que só travou em finais de 1989, já depois de ultrapassado o meio do mandato. E devemos perguntar-nos até que ponto o percurso de Sócrates nos últimos meses não terá sido uma mera consequência das particularidades do ciclo político e eleitoral de 2005 e 2006. Como ouvi sugerir há dias numa conferência, as autárquicas e a punição substancial que comportaram para os candidatos do PS podem ter servido como "catarse" para o crescente descontentamento com a actuação do governo, possivelmente da mesma forma que a copiosa derrota do PSD nas Europeias de 1989 serviu para travar o declínio da popularidade de Cavaco Silva.* E como não ver nas eleições presidenciais e nos seus resultados - especialmente na renitência de Cavaco Silva em criticar o governo ou na fácil (e quase suspeita) acomodação de José Sócrates à derrota - algo susceptível de estimular expectativas positivas em relação à actuação governamental, especialmente entre aqueles que já estavam mais dispostos a dela duvidar? Deste ponto de vista, o agora declarado "fim" do "estado de graça" pode não passar de um regresso à simples normalidade das coisas.
Mas de onde vem esta "normalidade"? O que faz com que, em todas as democracias, o destino de um governo nos primeiros anos do seu mandato seja o de perder apoio público? Duas teorias são frequentemente avançadas. Uma delas, proposta pela primeira vez por Anthony Downs no seu famoso An Economic Theory of Democracy, é a de que, como todas as decisões têm ganhadores e perdedores, qualquer governo que as tome - mesmo que cada uma delas tenha o apoio de uma maioria da população - acaba por ir antagonizando as sucessivas e diferentes minorias que são mais afectadas por essas decisões. Assim, governar significa sempre provocar a alienação crescente e irremediável de um conjunto cada vez maior de eleitores, uma "coligação de minorias" que, se agregada por uma oposição eficaz, acaba por produzir a alternância política. Já a segunda teoria é um pouco menos fatalista. Ela sugere que a razão do declínio da popularidade tem simplesmente a ver com uma inflação irrealista e artificial de expectativas positivas e de "boa-vontade" em relação a qualquer novo governo. Assim que a ilusão inicial é desfeita, o nível de apoio público desce e estabiliza num nível mais baixo. O que depois se segue depende de muita coisa. Mas irá sempre reflectir, de forma lenta mas segura, os resultados da governação, em particular a capacidade de promover crescimento e emprego e - ao contrário do que sugere a teoria alternativa - da capacidade de tomar as decisões certas nas alturas certas.
É difícil saber qual destas explicações da evolução da popularidade governamental se ajusta melhor à realidade. Mas já não é tão difícil saber em qual delas António Guterres, no governo, e Durão Barroso, na oposição, parecem ter acreditado. Um procurou lidar com o descontentamento agindo como se pudesse adiar o inevitável, prescindindo de todas as decisões que pudessem fortalecer uma coligação de minorias hostil. Outro procurou agregar essa coligação com promessas cuja espectacular inconsistência se tornou evidente assim que chegou ao governo. Há, por isso, pelo menos uma virtude neste declínio da popularidade de Sócrates e do seu governo. Em que teoria acreditará o Primeiro Ministro? Agora é que vamos ficar a saber.
*Um leitor recorda-me que a travagem do declínio da popularidade de Cavaco ocorreu com as autárquicas de 1989, e não com as Europeias. Claro que sim. Erro meu.
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