Televisão, opinião e "ciência"
Nas últimas semanas, vimos assistindo em Portugal a uma controvérsia sobre o conteúdo da informação na televisão pública e sobre o seu alegado enviesamento pró-governamental. Não é a primeira e não será a última. Contudo, há uma aparente novidade. À habitual retórica política que sempre se empregou nestes debates junta-se, desta vez, uma preocupação de "cientificidade" na análise da "independência" do serviço público, se com isso entendermos um esforço de generalização e sustentação empírica dos diagnósticos feitos acerca dos conteúdos noticiosos. Desde logo, a deliberação da Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC) a propósito do famoso artigo de Eduardo Cintra Torres (ECT) veio acompanhada por um extenso relatório (.pdf) sobre a cobertura noticiosa dos incêndios, onde se analisa, para o período entre Maio de Setembro de 2006, o número de peças dedicadas ao tema por cada canal e sua duração, o seu peso relativo à totalidade do conteúdo noticioso, o lugar dessas peças nos alinhamentos, as fontes de informação utilizadas e os actores intervenientes. Através deste relatório, a ERC procurou chegar a conclusões "rigorosas" sobre as diferenças entre a RTP e os restantes canais. E de resto, este tipo de dados já vinha sendo utilizado por ECT e outros analistas dos media em artigos de opinião, aludindo, por exemplo, ao peso relativo dos ministros como protagonistas do espaço noticioso e associando-o a um maior grau de "governamentalização".
Se a ideia é mesmo ir por este caminho, impõem-se algumas cautelas. Como já assinalou José Pacheco Pereira no seu blogue Abrupto, "as análises quantitativas da comunicação social (...) podem, se isoladas do contexto (...) dar resultados exactamente ao contrário do que parecem dizer". Eu até colocaria o problema de modo diferente: a primeira questão não é tanto a de saber se as análises são "quantitativas" ou não, mas sim a de saber que quantidades e de quê elas medem e comparam. O tempo dedicado à cobertura de um tema ou de uma pessoa pouco nos diz sobre o conteúdo da mensagem transmitida, em particular sobre as considerações positivas ou negativas transmitidos sobre esse tema ou pessoa ou o "tom" predominante em cada peça. Sabemos, por exemplo, que Pedro Santana Lopes foi, durante a campanha eleitoral para as eleições de 2005, o líder partidário que mais vezes e durante mais tempo apareceu nos noticiários televisivos, mas só um grande esforço de imaginação poderia fazer supor que toda essa cobertura lhe terá sido favorável.
É certo que o mero acesso aos media dá a um protagonista político a oportunidade de apresentar a sua versão da realidade, o que à partida lhe poderá ser vantajoso. Contudo, basta que a mesma peça televisiva apresente, por exemplo, uma "vista" de poucos e desanimados participantes num comício para que, com uma simples pista visual, se converta em potencial perda aquilo que à partida parecia um ganho. E quando os factos relatados são inequivocamente negativos - incêndios, por exemplo - será sempre vantajoso para um membro do governo "aparecer", relembrando os espectadores sobre promessas incumpridas e a quem atribuir responsabilidades? Nenhuma destas ou de muitas outras subtis características da "mensagem televisiva" são impossíveis de "quantificar". Mas como ECT e alguns membros da ERC saberão melhor do que eu, uma análise de conteúdo que dê informação suficiente para permitir inferências sobre a "independência" da informação televisiva - presumindo que tal coisa é possível - implica procedimentos metodológicos de tal modo exigentes e recursos de tal modo grandes que impedem que a medição e a subsequente análise dos dados resultantes possa servir, como parece supor-se ser possível, para fazer, com seriedade, "barómetros", "monitorizações" ou outros diagnósticos de curto-prazo sobre a governamentalização da informação.
Para além disso, importa recordar que a análise deste tipo de fenómenos raramente se pode ficar pelo mero conteúdo dos media. Na verdade, ele serve muitas vezes apenas para ilustrar processos que só se conseguem estudar com análises documentais, observação participante, entrevistas a antigos intervenientes e, em geral, distância histórica. A dependência dos jornalistas em relação a fontes governamentais para obterem informação e a manifesta assimetria de conhecimentos e experiência da maioria da classe jornalística em comparação com as elites políticas e burocráticas são apenas dois dos muitos mecanismos através dos quais, dispensando a ingerência directa, os governos e os aparelhos de estado conseguem condicionar quotidianamente o conteúdo dos media. E já agora, importa dizer que, como assinala Michael Schudson (The Sociology of News, W. W. Norton, 2003), são também estes mecanismos que fazem com que a diferença entre a cobertura dos temas políticos por parte de operadores públicos e privados seja, na Europa, muito menor do que por vezes se supõe, ou que, dependendo de formas de recrutamento de pessoal ou recursos materiais e organizacionais disponíveis, existam enormes variações entre diferentes países no que respeita ao grau de "governamentalização" da informação das televisões públicas. Tudo isto permanece invisível quando se olha apenas, a jusante, para o conteúdo dos media, e tudo isto só pode permanecer inconclusivo quando é abordado na base de meros indícios ou suposições em colunas de opinião.
É por tudo isto que, não se duvidando das excelentes intenções da ERC, se começa a detectar na sua actuação uma confusão de papéis. Meros artigos de opinião são tratados como matéria de facto a exigir investigação, investigação essa que, inevitavelmente, fica aquém dos objectivos irrazoáveis que se lhe atribuiu. Outros merecem respostas que são, elas próprias, emocionais e opinativas. A imprensa atribui, e bem, cada vez mais espaço à opinião sobre os media. A investigação académica na área da comunicação vive um momento florescente, com o aparecimento de novas revistas académicas e um grande número de livros publicados. Assim, talvez a ERC fizesse melhor em deixar a opinião para os colunistas e a ciência para os cientistas.
Se a ideia é mesmo ir por este caminho, impõem-se algumas cautelas. Como já assinalou José Pacheco Pereira no seu blogue Abrupto, "as análises quantitativas da comunicação social (...) podem, se isoladas do contexto (...) dar resultados exactamente ao contrário do que parecem dizer". Eu até colocaria o problema de modo diferente: a primeira questão não é tanto a de saber se as análises são "quantitativas" ou não, mas sim a de saber que quantidades e de quê elas medem e comparam. O tempo dedicado à cobertura de um tema ou de uma pessoa pouco nos diz sobre o conteúdo da mensagem transmitida, em particular sobre as considerações positivas ou negativas transmitidos sobre esse tema ou pessoa ou o "tom" predominante em cada peça. Sabemos, por exemplo, que Pedro Santana Lopes foi, durante a campanha eleitoral para as eleições de 2005, o líder partidário que mais vezes e durante mais tempo apareceu nos noticiários televisivos, mas só um grande esforço de imaginação poderia fazer supor que toda essa cobertura lhe terá sido favorável.
É certo que o mero acesso aos media dá a um protagonista político a oportunidade de apresentar a sua versão da realidade, o que à partida lhe poderá ser vantajoso. Contudo, basta que a mesma peça televisiva apresente, por exemplo, uma "vista" de poucos e desanimados participantes num comício para que, com uma simples pista visual, se converta em potencial perda aquilo que à partida parecia um ganho. E quando os factos relatados são inequivocamente negativos - incêndios, por exemplo - será sempre vantajoso para um membro do governo "aparecer", relembrando os espectadores sobre promessas incumpridas e a quem atribuir responsabilidades? Nenhuma destas ou de muitas outras subtis características da "mensagem televisiva" são impossíveis de "quantificar". Mas como ECT e alguns membros da ERC saberão melhor do que eu, uma análise de conteúdo que dê informação suficiente para permitir inferências sobre a "independência" da informação televisiva - presumindo que tal coisa é possível - implica procedimentos metodológicos de tal modo exigentes e recursos de tal modo grandes que impedem que a medição e a subsequente análise dos dados resultantes possa servir, como parece supor-se ser possível, para fazer, com seriedade, "barómetros", "monitorizações" ou outros diagnósticos de curto-prazo sobre a governamentalização da informação.
Para além disso, importa recordar que a análise deste tipo de fenómenos raramente se pode ficar pelo mero conteúdo dos media. Na verdade, ele serve muitas vezes apenas para ilustrar processos que só se conseguem estudar com análises documentais, observação participante, entrevistas a antigos intervenientes e, em geral, distância histórica. A dependência dos jornalistas em relação a fontes governamentais para obterem informação e a manifesta assimetria de conhecimentos e experiência da maioria da classe jornalística em comparação com as elites políticas e burocráticas são apenas dois dos muitos mecanismos através dos quais, dispensando a ingerência directa, os governos e os aparelhos de estado conseguem condicionar quotidianamente o conteúdo dos media. E já agora, importa dizer que, como assinala Michael Schudson (The Sociology of News, W. W. Norton, 2003), são também estes mecanismos que fazem com que a diferença entre a cobertura dos temas políticos por parte de operadores públicos e privados seja, na Europa, muito menor do que por vezes se supõe, ou que, dependendo de formas de recrutamento de pessoal ou recursos materiais e organizacionais disponíveis, existam enormes variações entre diferentes países no que respeita ao grau de "governamentalização" da informação das televisões públicas. Tudo isto permanece invisível quando se olha apenas, a jusante, para o conteúdo dos media, e tudo isto só pode permanecer inconclusivo quando é abordado na base de meros indícios ou suposições em colunas de opinião.
É por tudo isto que, não se duvidando das excelentes intenções da ERC, se começa a detectar na sua actuação uma confusão de papéis. Meros artigos de opinião são tratados como matéria de facto a exigir investigação, investigação essa que, inevitavelmente, fica aquém dos objectivos irrazoáveis que se lhe atribuiu. Outros merecem respostas que são, elas próprias, emocionais e opinativas. A imprensa atribui, e bem, cada vez mais espaço à opinião sobre os media. A investigação académica na área da comunicação vive um momento florescente, com o aparecimento de novas revistas académicas e um grande número de livros publicados. Assim, talvez a ERC fizesse melhor em deixar a opinião para os colunistas e a ciência para os cientistas.
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