Anatomia de uma campanha
Em vários estudos realizados sobre o referendo de 1998, os politólogos André Freire e Michael Baum destacavam duas explicações quer para a elevada abstenção (68%) quer para a derrota do "sim": as divisões internas no Partido Socialista e, especialmente, a posição de António Guterres, lançando sinais contraditórios para o seu eleitorado; e a "vitória anunciada" do "sim" veiculada por várias sondagens, galvanizando os apoiantes do "não" e fornecendo um falso sentimento de tranquilidade aos defensores da despenalização.
Se nos guiássemos desde o início por estas pistas, a comparação entre 2007 e 1998 sugeria desde logo uma vantagem clara para o "sim" no referendo de ontem. É verdade que dificilmente se consegue pôr uma máquina partidária a funcionar a todo o vapor quando não estão cargos políticos em jogo. Mas também é verdade que as posições do PS e do seu líder dificilmente poderiam ter sido mais claras. Ao contrário do que muitas vezes se supõe, os partidos contam muito neste tipo de eleição, ao fornecerem aos eleitores as pistas de que necessitam para que tomem decisões em contextos de incerteza e complexidade. Quando a ambiguidade veio do "sim", como em 1998, o "sim" perdeu. Quando veio do "não", o "não" perdeu. Simples.
Depois, também não houve, desta vez, uma "vitória anunciada" do "sim" pelas sondagens. É certo que, em 1998, só uma análise muito superficial dos estudos então divulgados autorizaria a noção de que essa vitória estava garantida. E é também verdade que, em Outubro de 2006, eles indicavam ainda uma margem de vitória muito generosa para o "sim". Contudo, a partir de Outubro, esse sentimento foi-se desvanecendo, à medida que o "não" encetava uma recuperação evidente a partir de Janeiro. A maioria dos eleitores, claro, não acompanha directamente os resultados das sondagens. Mas a comunicação social, que é quem veicula, filtra e amplifica este tipo de informação, entendeu desta vez enquadrar os resultados não pelo ângulo da vantagem considerável que, apesar de tudo, o "sim" ia mantendo nas intenções de voto, mas sim pelo ângulo da crescente incerteza em relação aos resultados finais, mensagem essa que os líderes dos partidos favoráveis ao "sim" resolveram, inteligentemente, amplificar o mais possível. Se há queixa que o "não" possa ter em relação à comunicação social é esta: a de ela ter tido excesso de memória, dramatizando o resultado.
Há, contudo, um terceiro aspecto do que está em jogo num referendo como este que não terá sido suficientemente analisado em 1998. Em vários estudos de opinião, muitos dos eleitores que partilhavam uma predisposição genérica para a despenalização - a maioria - acabavam também, quando questionados sobre se o aborto devia ser legal "quando a mulher não deseja ter o filho" ou sobre o momento de início de uma "vida humana", por recusar a primeira hipótese e apontar a "concepção" como resposta à segunda pergunta. Houve quem interpretasse estas respostas como sintoma de ignorância dos portugueses em relação ao tema ou mesmo da sua generalizada falta de sofisticação política. Mas as campanhas do "sim" e do "não", com sensatez, interpretaram essas respostas como aquilo que realmente são: expressão normal de sentimentos de "ambivalência" em relação à despenalização do aborto. "Ambivalência" não significa indiferença ou falta de opinião, nem sequer necessariamente "moderação", mas apenas a coexistência de atitudes contraditórias em relação a um mesmo objecto ou a diferentes características desse objecto, independentemente da intensidade que essas atitudes possam ter. Em 1998, estes "ambivalentes" tinham sido ignorados por ambas as campanhas, mais interessadas em mobilizar os núcleos duros de opinião do "sim" e do "não", no que acabou por se tornar numa competição centrífuga que alienou uma parte considerável do eleitorado, incapaz de se rever em qualquer uma das posições.
Cientes deste problema, ambas as campanhas procuraram lidar com ele. Do lado do "sim", a preocupação fundamental foi a de tornar esta campanha o mais monotemática possível, enfatizando apenas aquelas dimensões nas quais se sabia de ciência certa que a maioria dos eleitores, incluindo os ambivalentes, tinham sentimentos negativos em relação ao statu quo: o aborto clandestino e a penalização das mulheres. Já o "não" dificilmente poderia ter feito melhor. Apesar de não ter descurado uma campanha de proximidade às populações onde se adoptava um discurso mais radical, procurou, junto da população urbana e através dos meios de comunicação social, adicionar dimensões ao tema, aumentar a incerteza sobre alegadas consequências de uma vitória do "sim" e construir uma interpretação dessas consequências que aparecesse como "extremista" ("o aborto livre"), ao passo que a vitória do "não" seria "moderada" ou "compromissória". O "centrismo" do "não" foi ao ponto de propor que a sua vitória seria também a vitória de uma espécie de despenalização. Mas esta foi, também, uma táctica de desespero, proposta por quem, pelo percurso passado e pela falta de poder presente, não tinha autoridade suficiente para garantir que seria para valer.
Realizado o referendo, há certamente vencedores e vencidos. Mas não creio que do lado do "não" haja apenas vencidos. Por um lado, o debate público ocorrido, o resultado final do referendo - apesar de tudo, menos desequilibrado do que se pensaria em Outubro passado - e a revelação da fundamental ambivalência de muitos eleitores em relação ao tema não deixarão de condicionar as opções da maioria parlamentar quando se tratar de regulamentar a prática legal do aborto até às 10 semanas. Por outro lado, por muito que se possa duvidar da sensatez da utilização do instituto do referendo para tomar decisões em matérias como esta, e por muito que a participação relativamente baixa continue a suscitar preocupações, a campanha parece ter suscitado um envolvimento político muito considerável dos cidadãos. É difícil defender a ideia de que não estamos hoje mais informados sobre a questão do que estávamos há uns meses. E isso é bom para todos.
Se nos guiássemos desde o início por estas pistas, a comparação entre 2007 e 1998 sugeria desde logo uma vantagem clara para o "sim" no referendo de ontem. É verdade que dificilmente se consegue pôr uma máquina partidária a funcionar a todo o vapor quando não estão cargos políticos em jogo. Mas também é verdade que as posições do PS e do seu líder dificilmente poderiam ter sido mais claras. Ao contrário do que muitas vezes se supõe, os partidos contam muito neste tipo de eleição, ao fornecerem aos eleitores as pistas de que necessitam para que tomem decisões em contextos de incerteza e complexidade. Quando a ambiguidade veio do "sim", como em 1998, o "sim" perdeu. Quando veio do "não", o "não" perdeu. Simples.
Depois, também não houve, desta vez, uma "vitória anunciada" do "sim" pelas sondagens. É certo que, em 1998, só uma análise muito superficial dos estudos então divulgados autorizaria a noção de que essa vitória estava garantida. E é também verdade que, em Outubro de 2006, eles indicavam ainda uma margem de vitória muito generosa para o "sim". Contudo, a partir de Outubro, esse sentimento foi-se desvanecendo, à medida que o "não" encetava uma recuperação evidente a partir de Janeiro. A maioria dos eleitores, claro, não acompanha directamente os resultados das sondagens. Mas a comunicação social, que é quem veicula, filtra e amplifica este tipo de informação, entendeu desta vez enquadrar os resultados não pelo ângulo da vantagem considerável que, apesar de tudo, o "sim" ia mantendo nas intenções de voto, mas sim pelo ângulo da crescente incerteza em relação aos resultados finais, mensagem essa que os líderes dos partidos favoráveis ao "sim" resolveram, inteligentemente, amplificar o mais possível. Se há queixa que o "não" possa ter em relação à comunicação social é esta: a de ela ter tido excesso de memória, dramatizando o resultado.
Há, contudo, um terceiro aspecto do que está em jogo num referendo como este que não terá sido suficientemente analisado em 1998. Em vários estudos de opinião, muitos dos eleitores que partilhavam uma predisposição genérica para a despenalização - a maioria - acabavam também, quando questionados sobre se o aborto devia ser legal "quando a mulher não deseja ter o filho" ou sobre o momento de início de uma "vida humana", por recusar a primeira hipótese e apontar a "concepção" como resposta à segunda pergunta. Houve quem interpretasse estas respostas como sintoma de ignorância dos portugueses em relação ao tema ou mesmo da sua generalizada falta de sofisticação política. Mas as campanhas do "sim" e do "não", com sensatez, interpretaram essas respostas como aquilo que realmente são: expressão normal de sentimentos de "ambivalência" em relação à despenalização do aborto. "Ambivalência" não significa indiferença ou falta de opinião, nem sequer necessariamente "moderação", mas apenas a coexistência de atitudes contraditórias em relação a um mesmo objecto ou a diferentes características desse objecto, independentemente da intensidade que essas atitudes possam ter. Em 1998, estes "ambivalentes" tinham sido ignorados por ambas as campanhas, mais interessadas em mobilizar os núcleos duros de opinião do "sim" e do "não", no que acabou por se tornar numa competição centrífuga que alienou uma parte considerável do eleitorado, incapaz de se rever em qualquer uma das posições.
Cientes deste problema, ambas as campanhas procuraram lidar com ele. Do lado do "sim", a preocupação fundamental foi a de tornar esta campanha o mais monotemática possível, enfatizando apenas aquelas dimensões nas quais se sabia de ciência certa que a maioria dos eleitores, incluindo os ambivalentes, tinham sentimentos negativos em relação ao statu quo: o aborto clandestino e a penalização das mulheres. Já o "não" dificilmente poderia ter feito melhor. Apesar de não ter descurado uma campanha de proximidade às populações onde se adoptava um discurso mais radical, procurou, junto da população urbana e através dos meios de comunicação social, adicionar dimensões ao tema, aumentar a incerteza sobre alegadas consequências de uma vitória do "sim" e construir uma interpretação dessas consequências que aparecesse como "extremista" ("o aborto livre"), ao passo que a vitória do "não" seria "moderada" ou "compromissória". O "centrismo" do "não" foi ao ponto de propor que a sua vitória seria também a vitória de uma espécie de despenalização. Mas esta foi, também, uma táctica de desespero, proposta por quem, pelo percurso passado e pela falta de poder presente, não tinha autoridade suficiente para garantir que seria para valer.
Realizado o referendo, há certamente vencedores e vencidos. Mas não creio que do lado do "não" haja apenas vencidos. Por um lado, o debate público ocorrido, o resultado final do referendo - apesar de tudo, menos desequilibrado do que se pensaria em Outubro passado - e a revelação da fundamental ambivalência de muitos eleitores em relação ao tema não deixarão de condicionar as opções da maioria parlamentar quando se tratar de regulamentar a prática legal do aborto até às 10 semanas. Por outro lado, por muito que se possa duvidar da sensatez da utilização do instituto do referendo para tomar decisões em matérias como esta, e por muito que a participação relativamente baixa continue a suscitar preocupações, a campanha parece ter suscitado um envolvimento político muito considerável dos cidadãos. É difícil defender a ideia de que não estamos hoje mais informados sobre a questão do que estávamos há uns meses. E isso é bom para todos.
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