Disfunções do referendo em Portugal
Independentemente daqueles que venham a ser os resultados do referendo sobre a despenalização do aborto, há aspectos da regulação do referendo no nosso ordenamento constitucional que merecem discussão séria. Infelizmente, a partir das oito da noite do dia 11 de Fevereiro, já será tarde: tudo o que haja para dizer será interpretado à luz dos próprios resultados ou contaminado por eles. Logo, é melhor abordar o assunto enquanto tudo é ainda incerto. Neste e no próximo artigos, concentro-me exclusivamente nas duas principais disfunções do actual regime do referendo: a exigência de uma participação eleitoral de mais de metade dos eleitores para que um referendo tenha efeito vinculativo; e a necessidade de aprovação parlamentar da iniciativa popular do referendo.
A exigência de um quórum mínimo para que o resultado de um referendo seja vinculativo, prevista no artigo 115.º da Constituição, não é um exclusivo português, sendo partilhado por países como Itália ou Malta, parte das novas democracias da Europa de Leste, ou até a Dinamarca. Nos debates parlamentares em torno da revisão constitucional de 1997, quer o PS quer o PSD, responsáveis pela imposição desta regra, recorreram frequentemente à ideia de que só com uma participação acima de um determinado patamar se garantiria a "legitimidade" dos resultados. O argumento merece ser examinado à luz quer da experiência histórica, quer da lógica e teoria políticas.
O primeiro obstáculo à existência de uma regra desta natureza é colocado pela abstenção técnica. Nos debates da revisão de 1997, o assunto foi abordado frequentemente, mas sempre afastado como irrelevante para o debate ou como algo susceptível de ser resolvido a curto ou médio prazo. A experiência revela que não foi esse o caso. Apesar de estarmos hoje longe da situação escandalosa que existia na altura, o facto é que, como assinala Maria de Fátima Abrantes Mendes na versão comentada da Lei Orgânica do Referendo (.pdf), um sistema de recenseamento obrigatório como o nosso terá sempre mais eleitores inscritos que eleitores reais, estimando-se em cerca de cinco por cento o valor "normal" da abstenção técnica. Assim, quando se exige uma participação superior a 50 por cento, o que se está de facto a exigir é uma participação real significativamente superior.
Admitamos, contudo, que não se pode fazer com a que lei tome em conta um valor de abstenção técnica que permanecerá, em rigor, sempre desconhecido. Nem por isso a imposição de um quórum mínimo é menos arbitrária e o argumento da "legitimação" menos vazio. Imaginemos, por absurdo, que ela existia para as eleições autárquicas ou presidenciais. Nesse caso, não seriam eleitos órgãos autárquicos em muitas freguesias e concelhos, e não teríamos conseguido, de resto, eleger um presidente da República em 2001. Sob a mesma regra, nas eleições europeias de 2004, dezoito países - entre os quais Portugal - não teriam colocado representantes em Estrasburgo, e os Estados Unidos teriam passado uma parte importante da sua história sem um congresso. Mas se tudo isto nos parece absurdo, e se nada disto, pelos vistos, belisca a "legitimidade" destes órgãos, por que razão levanta problemas no caso de um referendo? Como é óbvio, a resposta não pode ter a ver com a necessidade de que uma percentagem mínima de eleitores (qual?) participe num acto eleitoral para que o órgão eleito ou a decisão tomada disponham de "legitimidade". Ela tem sim a ver com o facto de, em 1997, os partidos portugueses com maior representação parlamentar terem procurado garantir que, no compromisso entre democracia representativa e democracia directa, a primeira saísse completamente privilegiada. Ou mais precisamente: terem garantido que seria sempre ínfima a probabilidade que um referendo tivesse efeitos vinculativos contra a vontade de PS e PSD. A "teoria da democracia" e a "filosofia política" tiveram, como sempre, muito pouco a ver com este assunto.
No entanto, sucede que este pequeno arranjo teve uma consequência particularmente perversa. Para a entendermos, imaginemos um jogo de futebol - por exemplo, uma segunda mão das competições europeias - em que a uma das equipas (a equipa A) apenas serve a vitória, ao passo que para a outra (a equipa B) o empate é suficiente para passar a eliminatória. E imaginemos ainda que, às regras vigentes no futebol, se adiciona uma nova para este encontro: para que uma das equipas possa ser declarada vencedora, os 22 jogadores têm de percorrer, no total, um número estipulado de quilómetros durante os 90 minutos. Qual a melhor estratégia para a equipa B? Fácil: permanecer imóvel durante todo o jogo, especialmente se achar que a equipa A é favorita mas não conseguirá, sozinha, percorrer a distância prevista. No final, a equipa A poderá até ganhar por 90-0. Mas o resultado final, segundo as regras, é um empate. A equipa B passa à eliminatória seguinte.
Num paper muito recente - "Quorum and Turnout in Referenda" (.pdf) -, os economistas Helios Herrera e Andrea Mattozzi sugerem que a existência de um requisito de quórum mínimo afecta drasticamente os incentivos dos actores envolvidos num referendo. Quando esse quórum mínimo não existe, todos os partidos e grupos de interesses que defendem a manutenção do statu quo ou o desejam modificar têm incentivos máximos para mobilizar os eleitores, dado que a satisfação das suas primeiras preferências depende exclusivamente, naquilo que está ao seu alcance, dessa mobilização. Contudo, quando a mudança do statu quo passa a depender também da satisfação de um quórum de participação, os que se opõem a essa mudança ficam a dispor de uma estratégia adicional: abdicar de mobilizar os seus eleitores ou mesmo apelar à sua abstenção. As consequências são simples. Primeiro, a imposição de um quórum mínimo gera incentivos dos quais resulta sempre um aumento, e nunca uma diminuição, da abstenção. Segundo, na maioria das situações reais, ela constitui um enviesamento estrutural a favor da manutenção do statu quo. E terceiro, quanto mais exigente é o quórum, mais aqueles que preferem a mudança se aperceberão da futilidade dos seus objectivos, incentivando-os a moderar os seus esforços e poupar recursos para melhores ocasiões. Em resumo, uma regra que, supostamente, serviria para garantir a "legitimação" dos referendos contribui, afinal, para que o resultado de cada referendo em concreto não reflicta a real distribuição de preferências sociais e para que o próprio referendo como instituição saia deslegitimado.
É difícil imaginar pior. Mas veremos como o pior é possível quando examinarmos, no próximo artigo, as barreiras que o sistema impõe à iniciativa popular dos referendos.
P.S. - O comentário de Vasco M. Barreto levanta problemas interessantes à minha linha de argumentação. Contudo, ao confrontar essa argumentação com o que sucedeu em 1998, está a pedir mais dela do que aquilo que ela pode dar. A ideia de que as regras institucionais alteram o comportamento dos actores políticos pressupõe que eles podem antecipar as consequências dessas regras e agir em conformidade. Isso implica, muitas vezes, aprendizagem política, mas 1998 foi, afinal, o primeiro referendo. Não creio que quem aprovou a regra pudesse antecipar facilmente a assimetria que ela criava (apesar de ter antecipado, correctamente, que ela iria impedir que de um referendo saíssem resultados vinculativos que contrariassem interesses partilhados pelo Bloco Central). Hoje, contudo, essa assimetria já foi detectada. Apelos à abstenção de um segmento do eleitorado como este não se fazem por acaso, mas tiveram de ser aprendidos com a experiência passada, nacional ou internacional.
A exigência de um quórum mínimo para que o resultado de um referendo seja vinculativo, prevista no artigo 115.º da Constituição, não é um exclusivo português, sendo partilhado por países como Itália ou Malta, parte das novas democracias da Europa de Leste, ou até a Dinamarca. Nos debates parlamentares em torno da revisão constitucional de 1997, quer o PS quer o PSD, responsáveis pela imposição desta regra, recorreram frequentemente à ideia de que só com uma participação acima de um determinado patamar se garantiria a "legitimidade" dos resultados. O argumento merece ser examinado à luz quer da experiência histórica, quer da lógica e teoria políticas.
O primeiro obstáculo à existência de uma regra desta natureza é colocado pela abstenção técnica. Nos debates da revisão de 1997, o assunto foi abordado frequentemente, mas sempre afastado como irrelevante para o debate ou como algo susceptível de ser resolvido a curto ou médio prazo. A experiência revela que não foi esse o caso. Apesar de estarmos hoje longe da situação escandalosa que existia na altura, o facto é que, como assinala Maria de Fátima Abrantes Mendes na versão comentada da Lei Orgânica do Referendo (.pdf), um sistema de recenseamento obrigatório como o nosso terá sempre mais eleitores inscritos que eleitores reais, estimando-se em cerca de cinco por cento o valor "normal" da abstenção técnica. Assim, quando se exige uma participação superior a 50 por cento, o que se está de facto a exigir é uma participação real significativamente superior.
Admitamos, contudo, que não se pode fazer com a que lei tome em conta um valor de abstenção técnica que permanecerá, em rigor, sempre desconhecido. Nem por isso a imposição de um quórum mínimo é menos arbitrária e o argumento da "legitimação" menos vazio. Imaginemos, por absurdo, que ela existia para as eleições autárquicas ou presidenciais. Nesse caso, não seriam eleitos órgãos autárquicos em muitas freguesias e concelhos, e não teríamos conseguido, de resto, eleger um presidente da República em 2001. Sob a mesma regra, nas eleições europeias de 2004, dezoito países - entre os quais Portugal - não teriam colocado representantes em Estrasburgo, e os Estados Unidos teriam passado uma parte importante da sua história sem um congresso. Mas se tudo isto nos parece absurdo, e se nada disto, pelos vistos, belisca a "legitimidade" destes órgãos, por que razão levanta problemas no caso de um referendo? Como é óbvio, a resposta não pode ter a ver com a necessidade de que uma percentagem mínima de eleitores (qual?) participe num acto eleitoral para que o órgão eleito ou a decisão tomada disponham de "legitimidade". Ela tem sim a ver com o facto de, em 1997, os partidos portugueses com maior representação parlamentar terem procurado garantir que, no compromisso entre democracia representativa e democracia directa, a primeira saísse completamente privilegiada. Ou mais precisamente: terem garantido que seria sempre ínfima a probabilidade que um referendo tivesse efeitos vinculativos contra a vontade de PS e PSD. A "teoria da democracia" e a "filosofia política" tiveram, como sempre, muito pouco a ver com este assunto.
No entanto, sucede que este pequeno arranjo teve uma consequência particularmente perversa. Para a entendermos, imaginemos um jogo de futebol - por exemplo, uma segunda mão das competições europeias - em que a uma das equipas (a equipa A) apenas serve a vitória, ao passo que para a outra (a equipa B) o empate é suficiente para passar a eliminatória. E imaginemos ainda que, às regras vigentes no futebol, se adiciona uma nova para este encontro: para que uma das equipas possa ser declarada vencedora, os 22 jogadores têm de percorrer, no total, um número estipulado de quilómetros durante os 90 minutos. Qual a melhor estratégia para a equipa B? Fácil: permanecer imóvel durante todo o jogo, especialmente se achar que a equipa A é favorita mas não conseguirá, sozinha, percorrer a distância prevista. No final, a equipa A poderá até ganhar por 90-0. Mas o resultado final, segundo as regras, é um empate. A equipa B passa à eliminatória seguinte.
Num paper muito recente - "Quorum and Turnout in Referenda" (.pdf) -, os economistas Helios Herrera e Andrea Mattozzi sugerem que a existência de um requisito de quórum mínimo afecta drasticamente os incentivos dos actores envolvidos num referendo. Quando esse quórum mínimo não existe, todos os partidos e grupos de interesses que defendem a manutenção do statu quo ou o desejam modificar têm incentivos máximos para mobilizar os eleitores, dado que a satisfação das suas primeiras preferências depende exclusivamente, naquilo que está ao seu alcance, dessa mobilização. Contudo, quando a mudança do statu quo passa a depender também da satisfação de um quórum de participação, os que se opõem a essa mudança ficam a dispor de uma estratégia adicional: abdicar de mobilizar os seus eleitores ou mesmo apelar à sua abstenção. As consequências são simples. Primeiro, a imposição de um quórum mínimo gera incentivos dos quais resulta sempre um aumento, e nunca uma diminuição, da abstenção. Segundo, na maioria das situações reais, ela constitui um enviesamento estrutural a favor da manutenção do statu quo. E terceiro, quanto mais exigente é o quórum, mais aqueles que preferem a mudança se aperceberão da futilidade dos seus objectivos, incentivando-os a moderar os seus esforços e poupar recursos para melhores ocasiões. Em resumo, uma regra que, supostamente, serviria para garantir a "legitimação" dos referendos contribui, afinal, para que o resultado de cada referendo em concreto não reflicta a real distribuição de preferências sociais e para que o próprio referendo como instituição saia deslegitimado.
É difícil imaginar pior. Mas veremos como o pior é possível quando examinarmos, no próximo artigo, as barreiras que o sistema impõe à iniciativa popular dos referendos.
P.S. - O comentário de Vasco M. Barreto levanta problemas interessantes à minha linha de argumentação. Contudo, ao confrontar essa argumentação com o que sucedeu em 1998, está a pedir mais dela do que aquilo que ela pode dar. A ideia de que as regras institucionais alteram o comportamento dos actores políticos pressupõe que eles podem antecipar as consequências dessas regras e agir em conformidade. Isso implica, muitas vezes, aprendizagem política, mas 1998 foi, afinal, o primeiro referendo. Não creio que quem aprovou a regra pudesse antecipar facilmente a assimetria que ela criava (apesar de ter antecipado, correctamente, que ela iria impedir que de um referendo saíssem resultados vinculativos que contrariassem interesses partilhados pelo Bloco Central). Hoje, contudo, essa assimetria já foi detectada. Apelos à abstenção de um segmento do eleitorado como este não se fazem por acaso, mas tiveram de ser aprendidos com a experiência passada, nacional ou internacional.
P.P.S- Ah, good point, claro, com ou sem Hayek. O meu fica algo enfraquecido, de facto. Talvez me tenha deixado influenciar excessivamente pelo caso italiano. Mas a vinculatividade não interessa? Talvez um exagero. Esperemos, por exemplo, por um "sim" não vinculativo à Constituição Europeia, que depois voltamos a falar... Ou será que toda a gente pensou que eu estava a falar do referendo do dia 11?
P.P.P.S- Sobre este assunto, ver vários posts do Luís Aguiar-Conraria, especialmente este e este.
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