Religião, valores e política
Uma das ideias expressas nas últimas semanas acerca dos resultados do referendo do dia 11 é a de que eles foram consequência de uma mudança social, cultural e política de grande alcance que teria ocorrido em Portugal. Mudança no sentido do enfraquecimento da autoridade moral e influência social da Igreja Católica, da “modernização” da sociedade portuguesa, ou até, nas palavras da nota pastoral da Conferência Episcopal sobre o tema, do “individualismo no uso da liberdade e na busca da verdade”. Em suma, um Portugal mais “moderno” e até mais “europeu”, independente de acharmos ou não que isso é uma coisa boa.
À primeira vista, é difícil discordar. Apesar de 90 por cento dos portugueses se declararem “católicos”, a percentagem de praticantes regulares (que assistem a serviços religiosos pelo menos uma vez por semana) terá descido, desde finais dos anos 70 até hoje, de mais de metade para cerca de um quarto da população. A palavra “declínio” talvez nem capte bem o sucedido. Trata-se sim de um verdadeiro corte intergeracional, com aqueles que nasceram a partir dos anos 70 a darem hoje uma contribuição ínfima para o contingente dos praticantes regulares. Vários estudos na área da sociologia da família vêm revelando que quer as práticas quer as atitudes em relação à sexualidade e a vida familiar - divórcio, contracepção, sexo antes do casamento, coabitação - mudaram de forma dramática nas últimas três décadas, invariavelmente em direcções opostas àquelas que a igreja vê como sendo moralmente aceitáveis. O enquadramento legal da prática do aborto é, no domínio das políticas públicas, um dos mais fortes correlatos do grau de secularização de uma sociedade. E não vejo, excluindo artifícios de linguagem ou algum incómodo com o uso “normativo” do conceito, como se possa evitar a designação desta mudança social como uma “modernização”. Vem nos manuais: níveis crescentes de desenvolvimento económico, ao permitirem que os indivíduos sejam socializados em condições de maior segurança e prosperidade e adquiram maiores recursos educacionais, produzem mudanças nos valores, gerando desconfiança em relação às fontes de autoridade tradicionais, cepticismo em relação ao uso repressivo do poder do estado e uma ênfase na autonomia e escolha individual. Nada que a Conferência Episcopal não tenha detectado com mais presciência e realismo que alguns observadores.
Sucede, contudo, que esta versão dos acontecimentos pode fazer com que se percam de vista dois factos igualmente importantes, que nos ajudarão a perceber por que razão o alcance da “mudança” ocorrida no dia 11 talvez seja menor do que parece. O primeiro, banal mas nem por isso suficientemente lembrado, é o facto de as nossas “secularização” e “modernização” empalidecerem em comparação com se passa nos países da nossa área geo-cultural. Portugal permanece um dos países com maiores níveis de religiosidade da Europa, a par da Polónia, a Itália ou a Irlanda, e bem mais altos, de resto, do que os da nossa vizinha Espanha. Mais importante, Portugal não deixou de ser, como revelam vários estudos baseados no World Values Survey, um país singular na Europa Ocidental no que respeita às atitudes em relação às instituições tradicionais de autoridade, ao valor da autonomia individual ou à tolerância em relação à diversidade de estilos de vida. Tão singular que, em bom rigor, estamos a este nível mais próximos da América Latina do que da Europa, mesmo da Europa Católica. Poucos indicadores são tão reveladores disso mesmo como a rejeição dos portugueses em relação à concessão de direitos aos homossexuais, onde um olhar pelo mapa revelado pelo último inquérito do Eurobarómetro nos mostra isolados quer a Sul quer a Ocidente. E ao contrário do que já se vai dizendo, a diferença em relação a Espanha não é um produto recente “pós-Zapatero”. Quer em 1990 quer em 1999, nos resultados do European Values Study, a percentagem de portugueses que consideravam a homossexualidade com algo “sempre injustificável” estava mais de 20 pontos percentuais acima da detectada em Espanha. “Modernos”? Depende.
Mas mesmo que as atitudes dos portugueses em relação a este e a outros temas fossem diferentes, haveria um segundo aspecto a considerar. O Portugal de 1998 era assim tão diferente do Portugal de 2007? Não me parece. A diferença nos resultados dos dois referendos tem causas mais próximas, ligadas ao comportamento dos agentes políticos: antes de mais, a posição de Sócrates; e depois, como destacava André Freire no Público há uma semana, a maior capacidade de mobilização desta vez revelada pelo campo do Sim. Assim, se é verdade que a “modernização social” pode criar novas clivagens e aumentar os segmentos do eleitorado “mobilizáveis” para a mudança política, essa mudança depende também da actuação dos “mobilizadores”. Por outras palavras, num país com associações e organizações intermédias débeis, ela depende quase exclusivamente da disponibilidade dos partidos, que controlam a agenda política, para transformarem clivagens sociais em clivagens políticas. E Portugal, também deste ponto de vista, não é Espanha. PSD e PS têm eleitorados muito mais semelhantes entre si em termos culturais e religiosos do que PP e PSOE, estando, ao mesmo tempo, muito mais divididos internamente a esse nível. À direita do PSD e à esquerda do PS existem partidos que têm tudo a ganhar com uma “guerra cultural”, ao passo que em Espanha essa competição é inexistente. Para Aznar, primeiro, e Zapatero, depois, reactivar na política espanhola uma clivagem religiosa que permanecia dormente desde a transição foi uma estratégia eleitoral como qualquer outra: falível, mas plausível. Em Portugal, é certamente vista pelas lideranças do PS e do PSD como suicida. Assim, o aumento da saliência deste tipo de temas na agenda política terá de vir da sociedade, ou não virá de todo. E sabendo o que sabemos sobre essa sociedade, a coisa não poderá ser para muito breve.
À primeira vista, é difícil discordar. Apesar de 90 por cento dos portugueses se declararem “católicos”, a percentagem de praticantes regulares (que assistem a serviços religiosos pelo menos uma vez por semana) terá descido, desde finais dos anos 70 até hoje, de mais de metade para cerca de um quarto da população. A palavra “declínio” talvez nem capte bem o sucedido. Trata-se sim de um verdadeiro corte intergeracional, com aqueles que nasceram a partir dos anos 70 a darem hoje uma contribuição ínfima para o contingente dos praticantes regulares. Vários estudos na área da sociologia da família vêm revelando que quer as práticas quer as atitudes em relação à sexualidade e a vida familiar - divórcio, contracepção, sexo antes do casamento, coabitação - mudaram de forma dramática nas últimas três décadas, invariavelmente em direcções opostas àquelas que a igreja vê como sendo moralmente aceitáveis. O enquadramento legal da prática do aborto é, no domínio das políticas públicas, um dos mais fortes correlatos do grau de secularização de uma sociedade. E não vejo, excluindo artifícios de linguagem ou algum incómodo com o uso “normativo” do conceito, como se possa evitar a designação desta mudança social como uma “modernização”. Vem nos manuais: níveis crescentes de desenvolvimento económico, ao permitirem que os indivíduos sejam socializados em condições de maior segurança e prosperidade e adquiram maiores recursos educacionais, produzem mudanças nos valores, gerando desconfiança em relação às fontes de autoridade tradicionais, cepticismo em relação ao uso repressivo do poder do estado e uma ênfase na autonomia e escolha individual. Nada que a Conferência Episcopal não tenha detectado com mais presciência e realismo que alguns observadores.
Sucede, contudo, que esta versão dos acontecimentos pode fazer com que se percam de vista dois factos igualmente importantes, que nos ajudarão a perceber por que razão o alcance da “mudança” ocorrida no dia 11 talvez seja menor do que parece. O primeiro, banal mas nem por isso suficientemente lembrado, é o facto de as nossas “secularização” e “modernização” empalidecerem em comparação com se passa nos países da nossa área geo-cultural. Portugal permanece um dos países com maiores níveis de religiosidade da Europa, a par da Polónia, a Itália ou a Irlanda, e bem mais altos, de resto, do que os da nossa vizinha Espanha. Mais importante, Portugal não deixou de ser, como revelam vários estudos baseados no World Values Survey, um país singular na Europa Ocidental no que respeita às atitudes em relação às instituições tradicionais de autoridade, ao valor da autonomia individual ou à tolerância em relação à diversidade de estilos de vida. Tão singular que, em bom rigor, estamos a este nível mais próximos da América Latina do que da Europa, mesmo da Europa Católica. Poucos indicadores são tão reveladores disso mesmo como a rejeição dos portugueses em relação à concessão de direitos aos homossexuais, onde um olhar pelo mapa revelado pelo último inquérito do Eurobarómetro nos mostra isolados quer a Sul quer a Ocidente. E ao contrário do que já se vai dizendo, a diferença em relação a Espanha não é um produto recente “pós-Zapatero”. Quer em 1990 quer em 1999, nos resultados do European Values Study, a percentagem de portugueses que consideravam a homossexualidade com algo “sempre injustificável” estava mais de 20 pontos percentuais acima da detectada em Espanha. “Modernos”? Depende.
Mas mesmo que as atitudes dos portugueses em relação a este e a outros temas fossem diferentes, haveria um segundo aspecto a considerar. O Portugal de 1998 era assim tão diferente do Portugal de 2007? Não me parece. A diferença nos resultados dos dois referendos tem causas mais próximas, ligadas ao comportamento dos agentes políticos: antes de mais, a posição de Sócrates; e depois, como destacava André Freire no Público há uma semana, a maior capacidade de mobilização desta vez revelada pelo campo do Sim. Assim, se é verdade que a “modernização social” pode criar novas clivagens e aumentar os segmentos do eleitorado “mobilizáveis” para a mudança política, essa mudança depende também da actuação dos “mobilizadores”. Por outras palavras, num país com associações e organizações intermédias débeis, ela depende quase exclusivamente da disponibilidade dos partidos, que controlam a agenda política, para transformarem clivagens sociais em clivagens políticas. E Portugal, também deste ponto de vista, não é Espanha. PSD e PS têm eleitorados muito mais semelhantes entre si em termos culturais e religiosos do que PP e PSOE, estando, ao mesmo tempo, muito mais divididos internamente a esse nível. À direita do PSD e à esquerda do PS existem partidos que têm tudo a ganhar com uma “guerra cultural”, ao passo que em Espanha essa competição é inexistente. Para Aznar, primeiro, e Zapatero, depois, reactivar na política espanhola uma clivagem religiosa que permanecia dormente desde a transição foi uma estratégia eleitoral como qualquer outra: falível, mas plausível. Em Portugal, é certamente vista pelas lideranças do PS e do PSD como suicida. Assim, o aumento da saliência deste tipo de temas na agenda política terá de vir da sociedade, ou não virá de todo. E sabendo o que sabemos sobre essa sociedade, a coisa não poderá ser para muito breve.
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