terça-feira, abril 03, 2007

Pequenos portugueses

Na semana passada falou-se muito sobre os resultados do concurso “Grandes Portugueses”, promovido pela RTP à imagem de iniciativas semelhantes noutros países. O que mais intriga, contudo, não são os resultados das votações, de resto inúteis para qualquer fim analítico. O interessante é o que se disse sobre eles, e é sobre esse discurso que vale a pena meditar.

Sei que o que se segue vai parecer sobranceiro, mas a primeira coisa que impressiona no que se disse e escreveu é a quase completa impermeabilidade do “senso comum” veiculado por muita da intelectualidade nacional aos mais elementares rudimentos da cultura científica. Vários artigos escritos sobre o tema ainda começavam com um breve intróito sobre a “falta de representatividade da amostra” que produziu os resultados do concurso. Mas logo de seguida, em imediata auto-negação, passavam ao diagnóstico daquilo que os resultados queriam “realmente” dizer, desde a preferência autóctone por líderes “fortes” e “autoritários” ao desconhecimento generalizado da História de Portugal, passando pela persistência do “mito” salazarista ou pelo “voto de protesto” contra o “estado das coisas”. Um pouco como começar por dizer que não se deve acreditar na astrologia para de seguida se abordar, com toda a seriedade, algumas das consequências relevantes do ascendente em Escorpião. O facto de não se dispor de qualquer elemento que permita aferir se o “call in”, tal como foi feito, nos diz “realmente” alguma coisa sobre seja o que for, é algo que parece ter passado ao lado de muitos observadores.

A culpa, contudo, não será toda deles. Quando, no Reino Unido, o Great Britons é encarado como uma brincadeira nacional, ao passo que em Portugal é visto por gente séria como dizendo algo de fundamental sobre o país, é porque haverá qualquer coisa errada na maneira como os cientistas sociais portugueses se têm inserido no espaço público. O padrão, de resto, faz lembrar o que sucede em França, onde todos os anos se multiplicam os sucessos editoriais de luminárias - e já tivemos um ou dois desses em Portugal - que descrevem o “pulsar da alma nacional” recorrendo para tal, exclusivamente, ao “pulsar” das suas próprias almas. Uma cultura de análise política ideológica e anti-empírica, onde se supõe que a qualidade e erudição da escrita dispensam o aborrecimento de prestar uma vaga atenção à realidade. Onde a reticência daqueles que estão na academia em saírem uma vez por outra dos seus gabinetes permite que os discursos sobre a sociedade e a política sejam dominados pela especulação pura e simples. E onde a hierarquização e o paroquialismo na própria academia produzem atitudes de acomodação e “respeitinho” em relação a coisas que, em rigor, não as merecem.

Contudo, o mais interessante de tudo é a visão da sociedade portuguesa que transparece dos comentários feitos na última semana. É uma visão céptica e inquieta sobre a consolidação da democracia portuguesa, em particular sobre as “qualificações democráticas” dos cidadãos. De nada serve que quase vinte anos de investigação sobre as atitudes políticas dos portugueses revele que, pelo menos desde finais dos anos 80, não existe em Portugal qualquer clivagem cultural em torno do regime. Que a opção dos portugueses pela democracia, mais do que “vazia” ou de “conveniência”, decorra de preferências e rejeições de formas concretas como a nossa sociedade política deve ser organizada. Preferências pela existência de eleições livres e regulares, pela liberdade para criticar o poder e pela possibilidade de participar politicamente. E rejeições do recurso a “líderes fortes” que nos “livrem de parlamentos e eleições” ou a “ditaduras de emergência”. Estas atitudes são tanto mais prevalecentes quanto mais jovens são os eleitores, sendo que a geração nascida após o 25 de Abril é também a que tem hoje uma imagem mais negativa do Estado Novo, apesar dessa imagem negativa se predominante, de resto, entre os cidadãos com menos de 70 anos. Contudo, um concurso onde Salazar e Cunhal aparecem à frente dumas votações por telefone são suficientes para que nada disto tenha qualquer importância.

E por que será? Em parte, já respondi, mas talvez haja mais qualquer coisa. Não deixa de ser curioso que uma parcela substancial das nossas elites intelectuais esteja disposta a tomar como bom ponto de partida para a reflexão tudo aquilo que confirme a ideia de que os portugueses são desinformados, medrosos, intolerantes, incultos, infantis ou autoritários. Insatisfeitos com a democracia, dispostos a voltar ao passado ou, pelo menos, vulneráveis aos populismos. Deve ser também por isso que um cartaz vagamente cómico colocado no Marquês de Pombal dá direito a notícias de abertura em espaços noticiosos e gera declarações de ministros, parlamentares e procuradores. Semelhante paternalismo, mesmo que iliberal no que toca ao direito de exprimir opiniões (por imbecis ou abjectas que sejam), até pode ser bem intencionado. Mas já agora, se me permitem a pergunta: quando as elites intelectuais de um país acham que o povo desse país é, no fundo, um bocado estúpido, até que ponto podem elas próprias ser, digamos, sinceramente democráticas?