A tragédia de Blair
Tony Blair iniciou e completou a transformação do Partido Trabalhista num partido social-democrata moderno. Do ponto de vista eleitoral foi, de longe, o mais bem sucedido líder da história do partido. Presidiu a dez anos consecutivos de crescimento económico e de diminuição do desemprego. E no entanto, no dia 27 de Junho, abandonará o poder caído em desgraça perante a opinião pública. É certo que, num estudo conduzido em Março passado pelo British Election Study, apenas um em cada quatro britânicos faz um juízo negativo da evolução económica do país nos últimos dez anos. Contudo, isso parece ser irrelevante para a avaliação global que fazem do legado de Blair. São muito poucos os que acham que o Reino Unido é hoje uma nação de maior sucesso, melhor para se viver e mais feliz do que em 1997. A confiança dos britânicos em todas as instituições, políticas e sociais, declinou desde então. A taxa de aprovação do primeiro-ministro nas sondagens anda pelos 30 por cento, uma das mais baixas registadas desde sempre. E desde o início de 2006 que os trabalhistas seguem num distante segundo lugar atrás dos conservadores nas intenções de voto nas legislativas.
Como conciliar estes factos aparentemente contraditórios? Num estudo escrito há dois anos sobre a "economia política" do apoio aos trabalhistas, o politólogo David Sanders ensaiava uma explicação. Segundo Sanders, o governo de Blair teria sido uma vítima inesperada quer do insucesso alheio, quer do seu próprio sucesso. Com a reputação económica dos conservadores abalada pela crise do Sistema Monetário Europeu em 1992, e à vista dos resultados positivos do projecto macroeconómico da dupla Blair e Brown, a economia teria deixado de ser um assunto saliente na política britânica. Contudo, o facto de uma economia florescente deixar de ser assunto de discussão não é uma boa notícia para quem quer ser visto responsável por ela. O desaparecimento da economia da agenda pública abre espaço para a política. E foi na política que Blair fracassou.
Dezenas de estudos encomendados sobre os efeitos das reformas dos serviços públicos produziram, desde o início deste século, conclusões e indicadores de desempenho contraditórios, ou seja, muito aquém daquilo que a plataforma política do New Labour tinha prometido. De resto, a avaliação que os cidadãos britânicos fazem das políticas públicas nos últimos dez anos é desastrosa, especialmente nos domínios da saúde, da educação, da criminalidade, do combate à pobreza, dos transportes ou da imigração ilegal. As múltiplas reformas institucionais -desde a reforma da Câmara dos Lordes até à devolução de poderes à Escócia - terão gerado tantos ressentimentos como efeitos positivos. Ficaram, também, muito longe das ambições iniciais, quando se chegava a falar da mais do que improvável (ou melhor, impossível) reforma do sistema eleitoral. A relação dos britânicos com o projecto de integração europeia, que Blair prometeu revolucionar, acabou como começou: hostil ou, no mínimo, desconfiada por parte da população; hipócrita ou, na melhor das hipóteses, meramente utilitária por parte das elites políticas e diplomáticas britânicas. E a invasão do Iraque degradou o papel e o prestígio do Reino Unido na cena internacional, liquidando, pelo caminho, qualquer ilusão que Blair possa ter tido de transformar o Reino Unido numa "ponte" entre os Estados Unidos e a Europa. E no cerne da "política" estava, claro, o próprio Tony Blair. A partir de 2000, quando o tema da economia começava a perder importância para os eleitores britânicos, as intenções de voto no Partido Trabalhista começavam a seguir mais de perto, mês a mês, a avaliação que os eleitores faziam da actuação do próprio primeiro-ministro. Chega a invasão do Iraque, e é a derrocada.
No sábado passado, o presidente do Iraque saudava Blair como um "herói". Com toda a razão. Mas o Tony Blair que no dia anterior, em Sedgefield, jurava comovido, "com a mão no coração, ter feito o que pensava estar certo", é, em rigor, um herói trágico. Os mesmos 30 por cento de aprovação que George W. Bush tem hoje nos Estados Unidos, ou as humilhações públicas de Donald Rumsfeld, Paul Wolfowitz ou Alfredo González, não são verdadeiro material trágico. Como explicava Aristóteles na Poética, a inevitável queda dos vilões pode satisfazer o sentido moral dos espectadores, mas não evoca, pelo contrário, pena ou medo. Blair, ele sim, é um herói trágico, precisamente porque não foi um vilão ou uma personagem moralmente inferior. Foi, pelo contrário, um homem "bom" e "virtuoso", com o qual os britânicos se podiam identificar. E que cai por ter cometido um "erro fatal".
Numa sondagem recente da You Gov, a maioria dos ingleses ainda o descreve como "likeable as a person", alguém de quem se pode gostar. Mas também, claro, como um homem sem princípios e indigno de confiança. O julgamento pode parecer severo. Não sabemos, afinal, se a sua contribuição para a catástrofe iraquiana resultou de um mero lapso ou de um mais profundo defeito moral. O problema, contudo, é que os ingleses perceberam que talvez nem o próprio saiba. É especialmente curioso que, na sua despedida em Sedgefield, logo depois de ter jurado ter sempre feito o que julgava correcto, Blair tenha afirmado que "pode ter estado errado, mas isso é algo que vos cabe dizer". Ele, pelos vistos, não o consegue fazer. Não surpreende, por isso, que, no estudo do British Election Study, convidados a optar entre diferentes definições do "carácter" do primeiro-ministro, a maioria dos inquiridos o tenha descrito como alguém "que se consegue convencer a si próprio do que aquilo que decidiu deve ser moralmente correcto". Ou mais precisamente, como escrevia Jasper Gerard no Sunday Times a propósito do romance Saturday, de Ian McEwan - que numa breve passagem autobiográfica fornece o melhor retrato alguma vez escrito sobre Blair - "nobody does sincerity as convincingly as Blair, because his lies deceive even himself". A queda de Blair, como em todas as tragédias, era inevitável e merecida.
P.S. - A descrição do percurso de Blair como "tragédia", no pleno sentido do termo, não é, constato, original. Um amigo mandou-me isto hoje. Para Marquand, a "falha trágica" é o "presentismo". Vale a pena ler.
Como conciliar estes factos aparentemente contraditórios? Num estudo escrito há dois anos sobre a "economia política" do apoio aos trabalhistas, o politólogo David Sanders ensaiava uma explicação. Segundo Sanders, o governo de Blair teria sido uma vítima inesperada quer do insucesso alheio, quer do seu próprio sucesso. Com a reputação económica dos conservadores abalada pela crise do Sistema Monetário Europeu em 1992, e à vista dos resultados positivos do projecto macroeconómico da dupla Blair e Brown, a economia teria deixado de ser um assunto saliente na política britânica. Contudo, o facto de uma economia florescente deixar de ser assunto de discussão não é uma boa notícia para quem quer ser visto responsável por ela. O desaparecimento da economia da agenda pública abre espaço para a política. E foi na política que Blair fracassou.
Dezenas de estudos encomendados sobre os efeitos das reformas dos serviços públicos produziram, desde o início deste século, conclusões e indicadores de desempenho contraditórios, ou seja, muito aquém daquilo que a plataforma política do New Labour tinha prometido. De resto, a avaliação que os cidadãos britânicos fazem das políticas públicas nos últimos dez anos é desastrosa, especialmente nos domínios da saúde, da educação, da criminalidade, do combate à pobreza, dos transportes ou da imigração ilegal. As múltiplas reformas institucionais -desde a reforma da Câmara dos Lordes até à devolução de poderes à Escócia - terão gerado tantos ressentimentos como efeitos positivos. Ficaram, também, muito longe das ambições iniciais, quando se chegava a falar da mais do que improvável (ou melhor, impossível) reforma do sistema eleitoral. A relação dos britânicos com o projecto de integração europeia, que Blair prometeu revolucionar, acabou como começou: hostil ou, no mínimo, desconfiada por parte da população; hipócrita ou, na melhor das hipóteses, meramente utilitária por parte das elites políticas e diplomáticas britânicas. E a invasão do Iraque degradou o papel e o prestígio do Reino Unido na cena internacional, liquidando, pelo caminho, qualquer ilusão que Blair possa ter tido de transformar o Reino Unido numa "ponte" entre os Estados Unidos e a Europa. E no cerne da "política" estava, claro, o próprio Tony Blair. A partir de 2000, quando o tema da economia começava a perder importância para os eleitores britânicos, as intenções de voto no Partido Trabalhista começavam a seguir mais de perto, mês a mês, a avaliação que os eleitores faziam da actuação do próprio primeiro-ministro. Chega a invasão do Iraque, e é a derrocada.
No sábado passado, o presidente do Iraque saudava Blair como um "herói". Com toda a razão. Mas o Tony Blair que no dia anterior, em Sedgefield, jurava comovido, "com a mão no coração, ter feito o que pensava estar certo", é, em rigor, um herói trágico. Os mesmos 30 por cento de aprovação que George W. Bush tem hoje nos Estados Unidos, ou as humilhações públicas de Donald Rumsfeld, Paul Wolfowitz ou Alfredo González, não são verdadeiro material trágico. Como explicava Aristóteles na Poética, a inevitável queda dos vilões pode satisfazer o sentido moral dos espectadores, mas não evoca, pelo contrário, pena ou medo. Blair, ele sim, é um herói trágico, precisamente porque não foi um vilão ou uma personagem moralmente inferior. Foi, pelo contrário, um homem "bom" e "virtuoso", com o qual os britânicos se podiam identificar. E que cai por ter cometido um "erro fatal".
Numa sondagem recente da You Gov, a maioria dos ingleses ainda o descreve como "likeable as a person", alguém de quem se pode gostar. Mas também, claro, como um homem sem princípios e indigno de confiança. O julgamento pode parecer severo. Não sabemos, afinal, se a sua contribuição para a catástrofe iraquiana resultou de um mero lapso ou de um mais profundo defeito moral. O problema, contudo, é que os ingleses perceberam que talvez nem o próprio saiba. É especialmente curioso que, na sua despedida em Sedgefield, logo depois de ter jurado ter sempre feito o que julgava correcto, Blair tenha afirmado que "pode ter estado errado, mas isso é algo que vos cabe dizer". Ele, pelos vistos, não o consegue fazer. Não surpreende, por isso, que, no estudo do British Election Study, convidados a optar entre diferentes definições do "carácter" do primeiro-ministro, a maioria dos inquiridos o tenha descrito como alguém "que se consegue convencer a si próprio do que aquilo que decidiu deve ser moralmente correcto". Ou mais precisamente, como escrevia Jasper Gerard no Sunday Times a propósito do romance Saturday, de Ian McEwan - que numa breve passagem autobiográfica fornece o melhor retrato alguma vez escrito sobre Blair - "nobody does sincerity as convincingly as Blair, because his lies deceive even himself". A queda de Blair, como em todas as tragédias, era inevitável e merecida.
P.S. - A descrição do percurso de Blair como "tragédia", no pleno sentido do termo, não é, constato, original. Um amigo mandou-me isto hoje. Para Marquand, a "falha trágica" é o "presentismo". Vale a pena ler.
Etiquetas: New Labour, Partido Trabalhista, sondagens, Tony Blair
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