Sobre o referendo irlandês
1. Quem não conhecesse qualquer sondagem sobre as intenções de voto no referendo irlandês teria 50 por cento de hipóteses de acertar no resultado final. Quem conhecesse apenas uma ou duas, apostaria certamente na vitória do "sim": das dez sondagens divulgadas ao longo das últimas semanas, nove colocavam essa opção na frente. Mas quem conhecesse todas, verificaria que, sem excepção, as intenções de voto no "não" cresciam de sondagem para sondagem à medida que se aproximava a data do referendo. E uma curiosidade: nas sondagens que colocavam a questão sobre o "Tratado de Lisboa" em vez de "Tratado Reformador", os resultados eram invariavelmente piores para o "sim". Em Dezembro passado, os líderes europeus devem ter achado que "Lisboa" soava especialmente bem: bom tempo, praia, férias, tudo muito pitoresco. Mas para os irlandeses, que em meados dos anos 80 viviam num país em profunda crise económica e financeira, e hoje vivem no país com o quinto maior PIB per capita do mundo, "Lisboa" soa, talvez, a tudo aquilo que felizmente já deixaram para trás.
2. Há quem sugira um novo referendo na Irlanda, rapidamente e em força, a ver se sucede o mesmo que em relação ao Tratado de Nice. De facto, em Junho de 2001, Nice foi rejeitado pelos irlandeses por uma maioria muito semelhante à ocorrida no passado dia 12 de Junho (54 por cento). Pouco mais de um ano depois, um segundo referendo levou à sua aprovação, com 63 por cento dos votantes a favor. Um dos argumentos avançados na altura foi o de que tudo tinha a ver com a abstenção. Em 2001, ela tinha chegado aos 65 por cento; em 2002, uns bem menores 51 por cento. Em suma, bastaria levar mais irlandeses responsáveis às urnas e tudo se resolveria. É sem dúvida verdade que, nos referendos, as campanhas contam muito, pois os factores tradicionais de longo prazo que estabilizam o voto são menos importantes. Mas há, desta vez, um ligeiro detalhe: no passado dia 12 a abstenção foi de 47 por cento, logo inferior à do referendo de 2002. E agora: bastará levar mais irlandeses às urnas? Não será fácil. Nos 18 referendos realizados na história da democracia irlandesa, a abstenção média anda pelos 50 por cento.
3.Há também quem diga que tudo não passa de um enorme azar. Um referendo realizado após a demissão do primeiro-ministro irlandês e num contexto de crise económica internacional e de subida dos preços só poderia dar nisto, fazendo com que o voto "não" exprimisse todo um conjunto de insatisfações avulsas sem qualquer relação com a substância do que estava a ser decidido. Um incidente, portanto, facilmente resolvido se um novo referendo for conduzido num contexto diferente.
Sucede, contudo, que os dados disponíveis não apoiam esta interpretação. Primeiro, o Fianna Fail, o maior partido de governo, encontra-se em crescendo de popularidade nas sondagens, e não em declínio. Segundo, nas mesmas sondagens, a razão mais invocada pelos eleitores do "não" foi, de longe, o facto de "não saberem no que estavam a votar", e não qualquer outra razão estranha ao que estava em jogo no referendo. Finalmente, um estudo aprofundado sobre os dois referendos de Nice, realizado por John Garry, Michael Marsh e Richard Sinnott e publicado na European Union Politics em 2005, mostrava já que, no comportamento eleitoral dos irlandeses, as considerações sobre o governo do dia pesaram sempre menos do que as reais atitudes dos eleitores em relação ao alargamento, à neutralidade militar irlandesa ou ao processo de integração em si mesmo. Por outras palavras, os referendos na Irlanda estão muito mais próximos de serem um real processo de deliberação sobre a Europa e os tratados (mesmo que reagindo ao desconhecimento sobre o que lhes é pedido que decidam) do que um mero plebiscito sobre o governo ou sobre a situação económica. Não há razões para supor que este último tenha sido diferente.
4. A proposta mais em voga sobre como proceder após o referendo irlandês é "isolar" a Irlanda, esperar que os "culpados" encontrem uma solução e continuar o processo de ratificação nos restantes países. Nicolas Sarkozy dá, como de costume, o mote: o resultado do referendo na Irlanda é "um alerta para mudar a forma como a Europa está a ser construída. (...) Muitos europeus não compreendem a forma como estamos a construir a Europa", afirmou ontem. Mas disse também que é indispensável que os restantes países ratifiquem o Tratado, evitando que "o incidente irlandês se transforme numa crise". A incoerência (ou hipocrisia) das declarações não parece incomodá-lo, mas não se trata propriamente de uma estreia.
Chegámos aqui, de resto, graças a uma outra ideia genial de Sarko: a "ideia francesa", como lhe chamou orgulhosamente numa conferência de imprensa em Março passado, era a aprovação de um "tratado simplificado", "realista e pragmático", "nunca uma Constituição". Traduzindo, um tratado que, na substância, fosse indistinguível da chumbada Constituição Europeia, disfarçado de coisa sem grande relevância, mas ainda mais indecifrável pelos cidadãos e, naturalmente, a ser ratificado pelos parlamentos e sem intervenção desses aborrecidos referendos, os mesmos que Sarkozy acha indispensáveis para decidir sobre (ou seja, impedir) a adesão da Turquia à União Europeia.
O resultado está à vista: na primeira e única oportunidade que alguns europeus tiverem para se pronunciar sobre o assunto, chumbaram a genial ideia. Os chefes de governo europeus que negociaram o Tratado de Lisboa e congeminaram o processo que levaria à sua ratificação emergem deste processo como pequenos delinquentes apanhados a roubar caramelos numa mercearia. O autoproclamado líder do grupo - que vem deixando atrás de si um rasto de mediocridade que surpreende mesmo tendo em conta os altos padrões fixados pelo seu antecessor - acha que devemos resolver o assunto fugindo para a frente. Os antecedentes sugerem que, por razões meramente prudenciais, devemos provavelmente achar tudo o contrário daquilo que ele ache.
2. Há quem sugira um novo referendo na Irlanda, rapidamente e em força, a ver se sucede o mesmo que em relação ao Tratado de Nice. De facto, em Junho de 2001, Nice foi rejeitado pelos irlandeses por uma maioria muito semelhante à ocorrida no passado dia 12 de Junho (54 por cento). Pouco mais de um ano depois, um segundo referendo levou à sua aprovação, com 63 por cento dos votantes a favor. Um dos argumentos avançados na altura foi o de que tudo tinha a ver com a abstenção. Em 2001, ela tinha chegado aos 65 por cento; em 2002, uns bem menores 51 por cento. Em suma, bastaria levar mais irlandeses responsáveis às urnas e tudo se resolveria. É sem dúvida verdade que, nos referendos, as campanhas contam muito, pois os factores tradicionais de longo prazo que estabilizam o voto são menos importantes. Mas há, desta vez, um ligeiro detalhe: no passado dia 12 a abstenção foi de 47 por cento, logo inferior à do referendo de 2002. E agora: bastará levar mais irlandeses às urnas? Não será fácil. Nos 18 referendos realizados na história da democracia irlandesa, a abstenção média anda pelos 50 por cento.
3.Há também quem diga que tudo não passa de um enorme azar. Um referendo realizado após a demissão do primeiro-ministro irlandês e num contexto de crise económica internacional e de subida dos preços só poderia dar nisto, fazendo com que o voto "não" exprimisse todo um conjunto de insatisfações avulsas sem qualquer relação com a substância do que estava a ser decidido. Um incidente, portanto, facilmente resolvido se um novo referendo for conduzido num contexto diferente.
Sucede, contudo, que os dados disponíveis não apoiam esta interpretação. Primeiro, o Fianna Fail, o maior partido de governo, encontra-se em crescendo de popularidade nas sondagens, e não em declínio. Segundo, nas mesmas sondagens, a razão mais invocada pelos eleitores do "não" foi, de longe, o facto de "não saberem no que estavam a votar", e não qualquer outra razão estranha ao que estava em jogo no referendo. Finalmente, um estudo aprofundado sobre os dois referendos de Nice, realizado por John Garry, Michael Marsh e Richard Sinnott e publicado na European Union Politics em 2005, mostrava já que, no comportamento eleitoral dos irlandeses, as considerações sobre o governo do dia pesaram sempre menos do que as reais atitudes dos eleitores em relação ao alargamento, à neutralidade militar irlandesa ou ao processo de integração em si mesmo. Por outras palavras, os referendos na Irlanda estão muito mais próximos de serem um real processo de deliberação sobre a Europa e os tratados (mesmo que reagindo ao desconhecimento sobre o que lhes é pedido que decidam) do que um mero plebiscito sobre o governo ou sobre a situação económica. Não há razões para supor que este último tenha sido diferente.
4. A proposta mais em voga sobre como proceder após o referendo irlandês é "isolar" a Irlanda, esperar que os "culpados" encontrem uma solução e continuar o processo de ratificação nos restantes países. Nicolas Sarkozy dá, como de costume, o mote: o resultado do referendo na Irlanda é "um alerta para mudar a forma como a Europa está a ser construída. (...) Muitos europeus não compreendem a forma como estamos a construir a Europa", afirmou ontem. Mas disse também que é indispensável que os restantes países ratifiquem o Tratado, evitando que "o incidente irlandês se transforme numa crise". A incoerência (ou hipocrisia) das declarações não parece incomodá-lo, mas não se trata propriamente de uma estreia.
Chegámos aqui, de resto, graças a uma outra ideia genial de Sarko: a "ideia francesa", como lhe chamou orgulhosamente numa conferência de imprensa em Março passado, era a aprovação de um "tratado simplificado", "realista e pragmático", "nunca uma Constituição". Traduzindo, um tratado que, na substância, fosse indistinguível da chumbada Constituição Europeia, disfarçado de coisa sem grande relevância, mas ainda mais indecifrável pelos cidadãos e, naturalmente, a ser ratificado pelos parlamentos e sem intervenção desses aborrecidos referendos, os mesmos que Sarkozy acha indispensáveis para decidir sobre (ou seja, impedir) a adesão da Turquia à União Europeia.
O resultado está à vista: na primeira e única oportunidade que alguns europeus tiverem para se pronunciar sobre o assunto, chumbaram a genial ideia. Os chefes de governo europeus que negociaram o Tratado de Lisboa e congeminaram o processo que levaria à sua ratificação emergem deste processo como pequenos delinquentes apanhados a roubar caramelos numa mercearia. O autoproclamado líder do grupo - que vem deixando atrás de si um rasto de mediocridade que surpreende mesmo tendo em conta os altos padrões fixados pelo seu antecessor - acha que devemos resolver o assunto fugindo para a frente. Os antecedentes sugerem que, por razões meramente prudenciais, devemos provavelmente achar tudo o contrário daquilo que ele ache.
P.S. - Miguel Morgado pergunta - como quem vai respondendo, e como quem me censura por não ter perguntado e respondido - se se aplica a Sócrates o mesmo que aqui digo sobre Sarkozy. Mas só seria interessante responder à pergunta do Miguel se, para além de ter assegurado o catering no Pavilhão Atlântico no segundo semestre do ano passado, o governo português tivesse ou pudesse ter alguma espécie de papel decisivo no que sucedeu ou no que vai suceder daqui em diante na Europa. Não é o caso. Com a França, contudo, já é. Isso não impede um juízo político sobre o PM português, claro. Mas tento não me repetir.
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