Ignorâncias
Um inquérito recente sobre jovens e política, que coordenei, sugere que cerca de um terço dos portugueses com 15 anos ou mais afirma "não saber" ou responde incorrectamente à pergunta sobre se o Partido Socialista tem uma maioria absoluta na Assembleia da República. Novidade? Nem por isso. Num estudo pós-eleitoral conduzido pelo Instituto de Ciências Sociais, em Março de 2005, um quarto dos portugueses com 18 ou mais anos já não se lembravam do nome do primeiro-ministro antes de Durão Barroso. E a lista de exemplos da nossa ignorância colectiva podia continuar indefinidamente, à medida que inventariássemos mais indicadores de "conhecimentos políticos" em inquéritos semelhantes.
Uma tragédia? Depende. Há pelo menos duas maneiras de olhar para resultados como estes. A primeira consiste em transformar a constatação de que tantos dos nossos concidadãos ignoram factos correntes da nossa vida política num juízo sobre a sua competência democrática. Como podem fazer escolhas racionais em eleições, compreender o que está em jogo nas decisões políticas ou responsabilizar os governos, se tantos desconhecem alguns dos factos mais elementares da vida política? A partir daqui, vai um pequeno passo para se fazer outro tipo de asserções. Por exemplo, sobre a necessidade de programas de "educação cívica" capazes de transmitir, na infância e adolescência, todos os conhecimentos formais e valores cívicos necessários à formação de "bons cidadãos". Sobre a necessidade de os agentes políticos fazerem um esforço "pedagógico", ajudando a transmitir os conhecimentos e valores de que tantos cidadãos, aparentemente, se encontram privados. Ou até, de forma menos explícita mas que se insinua constantemente no discurso político, sobre o cuidado que se deve ter em dar um peso excessivo às opiniões destes ignorantes, quando se trata de tomar decisões importantes tais como, digamos, a realização de uma obra pública, a mudança de uma lei ou a assinatura de um tratado. Por outras palavras, a constatação objectiva da ignorância sobre factos políticos que prevalece entre os cidadãos rapidamente desliza para uma concepção subjectiva e ideologicamente marcada sobre como deve funcionar a democracia: uma concepção supostamente realista, mas, na verdade, algo paternalista e elitista.
A maneira diametralmente oposta de olhar para estes dados é aquela que vem prevalecendo na ciência política nos últimos 50 anos. Num livro famoso, intitulado Uma Teoria Económica da Democracia, publicado em 1957, Anthony Downs explicava que a ignorância política dos cidadãos, independentemente de produzir ou não escolhas politicamente irracionais, era ela própria racional. Adquirir informação sobre seja o que for exige tempo, esforço, dinheiro e a perda de oportunidades para fazer outras coisas. Tendo em conta a probabilidade ínfima de um único voto poder mudar um resultado eleitoral, que cidadão racional tem incentivos para procurar informação sobre a qual pode agir, mas uma acção que terá, inevitavelmente, consequências quase irrelevantes? Talvez por isso, este tipo de inquéritos tende a produzir os mesmos resultados não apenas no caso português ou de outras democracias recentes, alegadamente de "baixa qualidade", mas sim em todas as democracias avançadas do mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, menos de metade dos cidadãos consegue nomear o deputado eleito no seu círculo eleitoral. Na Suécia, 40 por cento dos eleitores não sabem quantos deputados tem o seu parlamento, e menos de metade dos australianos sabe se elege os seus por um sistema proporcional ou não.
Mais importante ainda, esta ignorância não é necessariamente fatal para a representação e responsabilização democráticas. Há centenas de estudos que mostram como os eleitores formam opiniões e tomam decisões na base de "pistas" muito simples, mas que são, aparentemente, suficientes para que as suas decisões sejam congruentes com os seus interesses: as opiniões daqueles com quem convivemos e partilhamos interesses básicos, tais como um colega de trabalho, um membro de uma associação, um vizinho ou um familiar mais informado; ou a experiência quotidiana de usar os transportes públicos, observar a evolução dos preços, dos salários ou das taxas de juro, ou esperar por ser atendido num hospital. Todas estas pistas são "informação política", eventualmente mais importante do que saber quantos deputados tem o parlamento, se o governo tem maioria absoluta ou quem foi o último primeiro-ministro. E segundo os mesmos estudos, estas pistas tendem a ter consequências bem maiores sobre os comportamentos dos indivíduos do que o conteúdo da "manipulável" comunicação social ou aquilo que os políticos dizem ou deixam de dizer.
Significa isto que está tudo bem? Nem tanto. Os dados mais perturbantes que estes inquéritos fornecem sobre as atitudes e comportamentos políticos dos portugueses não são os que têm a ver com a sua "ignorância" - semelhante, como vimos, à dos cidadãos da maioria das democracias -, mas sim com a sua baixa filiação em associações e a sua baixíssima predisposição para a participação política. Não é porque a "sociedade civil" ou a "participação" só tenham miríficas virtudes. É porque esses resultados mostram que aquilo que falta aos portugueses não são tanto os conhecimentos das enciclopédias ou da secção de política dos jornais, mas sim as competências cívicas necessárias para, quando necessitam, fazerem-se ouvir e defenderem os seus interesses. Dirigir uma reunião ou fazer um discurso em público são daquelas "microcompetências" que, no dia-a-dia, vão acabar por fazer a diferença entre os que são capazes de defender os seus interesses e aqueles que não são (ou sentem não o ser). Uma grande parte disto vem com a educação formal, e aí começa o nosso problema: não só essa educação falta a uma grande parte da população, mas, ainda por cima, até aqueles que percorrem todo o sistema são raramente forçados a exercitar competências como estas, uma coisa que alguém que alguma vez tenha dado aulas no ensino superior facilmente constata. O outro sítio onde elas são adquiridas é, claro, na vida associativa, mas a debilidade da participação social em Portugal impede, precisamente, a disseminação dessas competências. Anda por aí muita reflexão sobre o que deve ser a "educação cívica" no ensino secundário em Portugal. Mas era bom que, para além de ensinarem o que é o semipresidencialismo, o método de Hondt ou Declaração Universal dos Direitos Humanos, ensinassem também, digamos, a escrever uma carta, organizar uma reunião ou fazer uma queixa num livro de reclamações. É capaz de ser aí que se faz a diferença.
Uma tragédia? Depende. Há pelo menos duas maneiras de olhar para resultados como estes. A primeira consiste em transformar a constatação de que tantos dos nossos concidadãos ignoram factos correntes da nossa vida política num juízo sobre a sua competência democrática. Como podem fazer escolhas racionais em eleições, compreender o que está em jogo nas decisões políticas ou responsabilizar os governos, se tantos desconhecem alguns dos factos mais elementares da vida política? A partir daqui, vai um pequeno passo para se fazer outro tipo de asserções. Por exemplo, sobre a necessidade de programas de "educação cívica" capazes de transmitir, na infância e adolescência, todos os conhecimentos formais e valores cívicos necessários à formação de "bons cidadãos". Sobre a necessidade de os agentes políticos fazerem um esforço "pedagógico", ajudando a transmitir os conhecimentos e valores de que tantos cidadãos, aparentemente, se encontram privados. Ou até, de forma menos explícita mas que se insinua constantemente no discurso político, sobre o cuidado que se deve ter em dar um peso excessivo às opiniões destes ignorantes, quando se trata de tomar decisões importantes tais como, digamos, a realização de uma obra pública, a mudança de uma lei ou a assinatura de um tratado. Por outras palavras, a constatação objectiva da ignorância sobre factos políticos que prevalece entre os cidadãos rapidamente desliza para uma concepção subjectiva e ideologicamente marcada sobre como deve funcionar a democracia: uma concepção supostamente realista, mas, na verdade, algo paternalista e elitista.
A maneira diametralmente oposta de olhar para estes dados é aquela que vem prevalecendo na ciência política nos últimos 50 anos. Num livro famoso, intitulado Uma Teoria Económica da Democracia, publicado em 1957, Anthony Downs explicava que a ignorância política dos cidadãos, independentemente de produzir ou não escolhas politicamente irracionais, era ela própria racional. Adquirir informação sobre seja o que for exige tempo, esforço, dinheiro e a perda de oportunidades para fazer outras coisas. Tendo em conta a probabilidade ínfima de um único voto poder mudar um resultado eleitoral, que cidadão racional tem incentivos para procurar informação sobre a qual pode agir, mas uma acção que terá, inevitavelmente, consequências quase irrelevantes? Talvez por isso, este tipo de inquéritos tende a produzir os mesmos resultados não apenas no caso português ou de outras democracias recentes, alegadamente de "baixa qualidade", mas sim em todas as democracias avançadas do mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, menos de metade dos cidadãos consegue nomear o deputado eleito no seu círculo eleitoral. Na Suécia, 40 por cento dos eleitores não sabem quantos deputados tem o seu parlamento, e menos de metade dos australianos sabe se elege os seus por um sistema proporcional ou não.
Mais importante ainda, esta ignorância não é necessariamente fatal para a representação e responsabilização democráticas. Há centenas de estudos que mostram como os eleitores formam opiniões e tomam decisões na base de "pistas" muito simples, mas que são, aparentemente, suficientes para que as suas decisões sejam congruentes com os seus interesses: as opiniões daqueles com quem convivemos e partilhamos interesses básicos, tais como um colega de trabalho, um membro de uma associação, um vizinho ou um familiar mais informado; ou a experiência quotidiana de usar os transportes públicos, observar a evolução dos preços, dos salários ou das taxas de juro, ou esperar por ser atendido num hospital. Todas estas pistas são "informação política", eventualmente mais importante do que saber quantos deputados tem o parlamento, se o governo tem maioria absoluta ou quem foi o último primeiro-ministro. E segundo os mesmos estudos, estas pistas tendem a ter consequências bem maiores sobre os comportamentos dos indivíduos do que o conteúdo da "manipulável" comunicação social ou aquilo que os políticos dizem ou deixam de dizer.
Significa isto que está tudo bem? Nem tanto. Os dados mais perturbantes que estes inquéritos fornecem sobre as atitudes e comportamentos políticos dos portugueses não são os que têm a ver com a sua "ignorância" - semelhante, como vimos, à dos cidadãos da maioria das democracias -, mas sim com a sua baixa filiação em associações e a sua baixíssima predisposição para a participação política. Não é porque a "sociedade civil" ou a "participação" só tenham miríficas virtudes. É porque esses resultados mostram que aquilo que falta aos portugueses não são tanto os conhecimentos das enciclopédias ou da secção de política dos jornais, mas sim as competências cívicas necessárias para, quando necessitam, fazerem-se ouvir e defenderem os seus interesses. Dirigir uma reunião ou fazer um discurso em público são daquelas "microcompetências" que, no dia-a-dia, vão acabar por fazer a diferença entre os que são capazes de defender os seus interesses e aqueles que não são (ou sentem não o ser). Uma grande parte disto vem com a educação formal, e aí começa o nosso problema: não só essa educação falta a uma grande parte da população, mas, ainda por cima, até aqueles que percorrem todo o sistema são raramente forçados a exercitar competências como estas, uma coisa que alguém que alguma vez tenha dado aulas no ensino superior facilmente constata. O outro sítio onde elas são adquiridas é, claro, na vida associativa, mas a debilidade da participação social em Portugal impede, precisamente, a disseminação dessas competências. Anda por aí muita reflexão sobre o que deve ser a "educação cívica" no ensino secundário em Portugal. Mas era bom que, para além de ensinarem o que é o semipresidencialismo, o método de Hondt ou Declaração Universal dos Direitos Humanos, ensinassem também, digamos, a escrever uma carta, organizar uma reunião ou fazer uma queixa num livro de reclamações. É capaz de ser aí que se faz a diferença.
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