O regresso das ideias
Não há evento político seguido com maior atenção no mundo do que a eleição do Presidente dos Estados Unidos. E, no entanto, esta visibilidade por vezes não chega para afastar alguns mitos. O principal é talvez o de que, no fundamental, os principais candidatos dos dois grandes partidos têm posições que, à luz da experiência europeia, seriam quase indistinguíveis. E de que os eleitores americanos, quando se trata de escolher em que candidato votar, dão muito mais importância às personalidades, qualidades pessoais e "imagens" dos candidatos do que às suas propostas ou à maneira como elas afectam os interesses dos grupos sociais. É um mito que não resiste à análise mais superficial da informação disponível.
As supostas convergências entre os principais candidatos são, desde logo, difíceis de detectar quando observamos as suas declarações públicas e programáticas. Pelo lado democrata, quer Clinton quer Obama defendem o aumento dos impostos sobre as famílias de mais altos rendimentos, que deverão, por sua vez, servir para financiar (em conjunto com as grandes empresas) seguros de saúde obrigatórios (para todos, no caso de Clinton, para os menores de idade, no caso de Obama). E ao passo que Clinton defende um plano de investimento e subsídios públicos para lidar com a crise económica, Obama propõe o aumento dos impostos sobre os rendimentos de capitais. Pelo lado republicano, McCain e Romney opõem-se a estes planos, defendendo a diminuição (ou mesmo eliminação) dos impostos imobiliários e, no caso do segundo, a diminuição dos impostos sobre as empresas e a eliminação daqueles que incidem sobre os rendimentos de capitais para a "classe média". No tema da saúde, McCain e Romney enfatizam a diminuição dos custos, mas opõem-se a qualquer obrigatoriedade de contratação e financiamento estatal de seguros. E a lista de diferenças entre os candidatos democratas e republicanos continua, quase interminável, desde o tema do aborto até ao Iraque. A imigração é dos poucos temas em que as posições se confundem, com Romney a ser o único a rejeitar a possibilidade de legalização para imigrantes ilegais. Mas em quase tudo o resto, as diferenças são de uma clareza que, admita-se, já dificilmente se encontra na competição política entre partidos de Governo no contexto europeu.
O outro lado do mito prevalecente é que, para os eleitores americanos, o que mais conta seria a avaliação das qualidades pessoais dos candidatos, em campanhas dominadas pela tecnologia e pela televisão onde a forma - a "imagem" - prevaleceria sobre o conteúdo - as "ideias". É verdade que, especialmente a partir dos anos 60, a coligação forjada pelo New Deal entre sindicalistas, minorias sociais e o eleitorado de mais baixos rendimentos se foi esboroando, como resultado da dessegregação racial no Sul, da expansão das classes médias e da crescente saliência dos temas de natureza moral e cultural. E é também verdade que tudo o que tem a ver com a imagem pública dos candidatos é estudado e preparado ao pormenor. Mas estes factos não nos devem fazer esquecer outros que, de resto, marcam de forma muito mais clara as diferenças entre a política como se faz nos EUA e nas democracias europeias. Primeiro, apesar do seu declínio, há clivagens sociais que continuam a marcar de forma previsível e decisiva o comportamento eleitoral: nas eleições de 2004, 90 por cento dos negros, 70 por cento dos hispânicos e 60 por cento dos sindicalizados votaram em John Kerry, ao passo que Bush dominou entre os eleitores dos subúrbios das grandes cidades, no meio rural e entre as famílias de mais altos rendimentos. Segundo, mesmo que a pertença a grupos sociais tenha enfraquecido, o mesmo não sucede com a pertença a identidades políticas e ideológicas. Em 2004, mais de dois terços dos eleitores americanos detectaram diferenças ideológicas claras entre Kerry e Bush, e a esmagadora maioria desses votou de acordo com a relação entre as suas posições e as dos candidatos.
E a prevalência da "imagem" sobre o "conteúdo", estimulada pelas modernas campanhas eleitorais e apoiada por sondagens e novas tecnologias de informação e de comunicação? Deste ponto de vista, é curioso verificar como um dos aspectos mais importantes da interacção entre as novas tecnologias e as campanhas é a forma como as primeiras vêm potenciado decisões cada vez mais baseadas em "ideias" em vez de "imagens". De há anos para cá, a Internet contém vários sites onde se faz o inventário das declarações públicas dos candidatos sobre os mais variados temas, ajudando os eleitores a aferirem as suas posições e suas mudanças ao longo do tempo. Outros sites facultam análises sistemáticas do comportamento de voto dos eleitos para o Senado, a Câmara dos Representantes e os parlamentos estaduais, ajudando os eleitores a confrontarem a retórica com o comportamento dos que elegem. E há experiências recentes de smartvoting que permitem aos eleitores, através da resposta a questionários, a comparação entre as suas próprias opiniões e as dos candidatos. É certo que estes instrumentos, para além de serem falíveis e exigirem competências de que apenas alguns eleitores dispõem, simplificam muito o que conta na política: vê-se reduzida a um mundo de "ideias" e "promessas", ignorando como se faz também do confronto entre esse mundo e os constrangimentos colocados pela realidade. E não ignoro as diferenças tremendas entre sistemas políticos que favorecem ou inibem este tipo de abordagem da vida política. Contudo, num panorama político como o português - tão frequentemente feito de reviravoltas ideológicas, promessas abandonadas, esquecimentos selectivos e intrigas de vão de escada - esta "simplificação" é bem capaz de ser aquilo de que mais estamos a precisar neste momento.
As supostas convergências entre os principais candidatos são, desde logo, difíceis de detectar quando observamos as suas declarações públicas e programáticas. Pelo lado democrata, quer Clinton quer Obama defendem o aumento dos impostos sobre as famílias de mais altos rendimentos, que deverão, por sua vez, servir para financiar (em conjunto com as grandes empresas) seguros de saúde obrigatórios (para todos, no caso de Clinton, para os menores de idade, no caso de Obama). E ao passo que Clinton defende um plano de investimento e subsídios públicos para lidar com a crise económica, Obama propõe o aumento dos impostos sobre os rendimentos de capitais. Pelo lado republicano, McCain e Romney opõem-se a estes planos, defendendo a diminuição (ou mesmo eliminação) dos impostos imobiliários e, no caso do segundo, a diminuição dos impostos sobre as empresas e a eliminação daqueles que incidem sobre os rendimentos de capitais para a "classe média". No tema da saúde, McCain e Romney enfatizam a diminuição dos custos, mas opõem-se a qualquer obrigatoriedade de contratação e financiamento estatal de seguros. E a lista de diferenças entre os candidatos democratas e republicanos continua, quase interminável, desde o tema do aborto até ao Iraque. A imigração é dos poucos temas em que as posições se confundem, com Romney a ser o único a rejeitar a possibilidade de legalização para imigrantes ilegais. Mas em quase tudo o resto, as diferenças são de uma clareza que, admita-se, já dificilmente se encontra na competição política entre partidos de Governo no contexto europeu.
O outro lado do mito prevalecente é que, para os eleitores americanos, o que mais conta seria a avaliação das qualidades pessoais dos candidatos, em campanhas dominadas pela tecnologia e pela televisão onde a forma - a "imagem" - prevaleceria sobre o conteúdo - as "ideias". É verdade que, especialmente a partir dos anos 60, a coligação forjada pelo New Deal entre sindicalistas, minorias sociais e o eleitorado de mais baixos rendimentos se foi esboroando, como resultado da dessegregação racial no Sul, da expansão das classes médias e da crescente saliência dos temas de natureza moral e cultural. E é também verdade que tudo o que tem a ver com a imagem pública dos candidatos é estudado e preparado ao pormenor. Mas estes factos não nos devem fazer esquecer outros que, de resto, marcam de forma muito mais clara as diferenças entre a política como se faz nos EUA e nas democracias europeias. Primeiro, apesar do seu declínio, há clivagens sociais que continuam a marcar de forma previsível e decisiva o comportamento eleitoral: nas eleições de 2004, 90 por cento dos negros, 70 por cento dos hispânicos e 60 por cento dos sindicalizados votaram em John Kerry, ao passo que Bush dominou entre os eleitores dos subúrbios das grandes cidades, no meio rural e entre as famílias de mais altos rendimentos. Segundo, mesmo que a pertença a grupos sociais tenha enfraquecido, o mesmo não sucede com a pertença a identidades políticas e ideológicas. Em 2004, mais de dois terços dos eleitores americanos detectaram diferenças ideológicas claras entre Kerry e Bush, e a esmagadora maioria desses votou de acordo com a relação entre as suas posições e as dos candidatos.
E a prevalência da "imagem" sobre o "conteúdo", estimulada pelas modernas campanhas eleitorais e apoiada por sondagens e novas tecnologias de informação e de comunicação? Deste ponto de vista, é curioso verificar como um dos aspectos mais importantes da interacção entre as novas tecnologias e as campanhas é a forma como as primeiras vêm potenciado decisões cada vez mais baseadas em "ideias" em vez de "imagens". De há anos para cá, a Internet contém vários sites onde se faz o inventário das declarações públicas dos candidatos sobre os mais variados temas, ajudando os eleitores a aferirem as suas posições e suas mudanças ao longo do tempo. Outros sites facultam análises sistemáticas do comportamento de voto dos eleitos para o Senado, a Câmara dos Representantes e os parlamentos estaduais, ajudando os eleitores a confrontarem a retórica com o comportamento dos que elegem. E há experiências recentes de smartvoting que permitem aos eleitores, através da resposta a questionários, a comparação entre as suas próprias opiniões e as dos candidatos. É certo que estes instrumentos, para além de serem falíveis e exigirem competências de que apenas alguns eleitores dispõem, simplificam muito o que conta na política: vê-se reduzida a um mundo de "ideias" e "promessas", ignorando como se faz também do confronto entre esse mundo e os constrangimentos colocados pela realidade. E não ignoro as diferenças tremendas entre sistemas políticos que favorecem ou inibem este tipo de abordagem da vida política. Contudo, num panorama político como o português - tão frequentemente feito de reviravoltas ideológicas, promessas abandonadas, esquecimentos selectivos e intrigas de vão de escada - esta "simplificação" é bem capaz de ser aquilo de que mais estamos a precisar neste momento.
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