Uma crise da democracia
No último século, a maneira de se pensar na democracia enquanto regime político sofreu várias transformações. A primeira foi descrita pelo filósofo C. B. Macpherson há já 40 anos: aquilo que antes era uma "palavra feia", uma forma de "governo pelas massas populares" contrária à "liberdade individual e aos encantos da vida civilizada", tornou-se, ao longo do século XX, numa "coisa boa". A segunda transformação é mais recente, e decorre da multiplicação de regimes democráticos em países e contextos - a Europa do Sul, a América Latina, a Europa de Leste e até partes da África e da Ásia -, onde a instalação de regimes democráticos pareceu, durante muito tempo, e por diversas razões, altamente improvável. Ela consistiu em pensar-se que um regime democrático, para além de ser "uma coisa boa", é também uma aspiração (e uma possibilidade) universal. A democracia seria a penúltima estação de um percurso desejado e possível em todas as sociedades, à qual se seguiria não uma mudança de espécie, mas, espera-se, apenas de grau: mais e melhor democracia.
Esta transformação no mundo das ideias, concomitante com uma transformação no mundo real - a difusão da democracia enquanto forma de governo no século XX - cria, contudo, alguns problemas de análise. Desde logo, é cada vez mais difícil saber onde estão realmente as democracias. Segundo a Freedom House, existem hoje no mundo 123 "democracias eleitorais", ou seja, regimes onde a identidade dos governantes é determinada por eleições regulares onde se pratica o sufrágio universal, onde não existem fraudes eleitorais generalizadas e onde é permitido aos eleitores que façam escolhas entre partidos ou candidatos alternativos que apresentam as suas propostas em campanha. Mas é arriscado presumir que estas características são necessariamente acompanhadas por um conjunto de outras condições que também associamos, mesmo que implicitamente, ao conceito de democracia, tais como o estado de direito, a separação de poderes, o respeito pelas liberdades cívicas e políticas ou o pluralismo social e económico. Não por acaso, os famosos "critérios de Copenhaga", que definem a elegibilidade dos países para a sua pertença à União Europeia, vão bastante para além da "democracia eleitoral".
O problema, contudo, é que a existência ou não dessas restantes regras, instituições e características nos mergulha na análise de uma multiplicidade de critérios e indicadores onde é difícil evitar avaliações subjectivas, ideológicas e politizadas. Há quem procure clarificar este mapa conceptual falando em democracias "delegativas" ou "iliberais". Mas onde colocar o limiar a partir do qual elas se transformariam em genuínas democracias "representativas" ou "liberais"? Há também quem detecte nestas últimas, também elas com os seus "défices democráticos" e "crises de representação", deficiências funcionalmente equivalentes às das novas democracias. Mas a partir de que momento esse défices se tornam tão graves que deixamos de poder realmente falar em "democracia"?
Independentemente da forma como queiramos lidar com este estado de coisas, importa reconhecer que ele é particularmente benéfico para líderes políticos que pretendem garantir a instalação ou a sobrevivência de regimes autoritários sob outros nomes. Para combinarem a manutenção no poder com alguma legitimação interna e externa, basta-lhes preservar eleições "livres e justas", ao mesmo tempo que vão activamente minando tudo aquilo que permite que, mesmo com muitas imperfeições, essas eleições possam garantir algum grau de representação e responsabilização políticas: a autonomia da sociedade civil; a independência do poder judicial; ou o pluralismo na informação. Dizer que, afinal, tudo é uma questão de grau, e que isso se encontra também imperfeitamente garantido nas democracias consolidadas, será porventura verdadeiro. Mas é uma verdade que oculta outra ainda mais fundamental. Essas alegadas "imperfeições", em muitas novas democracias eleitorais, são o resultado de uma estratégia deliberada para a perpetuação no poder e de eliminação daquilo que, em última análise, também faz parte da essência do que é um regime democrático: a existência de alguma incerteza sobre quem, no futuro, vai ocupar o poder.
Há também quem julgue poder resolver o problema "subjectivando" completamente a definição de democracia: se a população de um dado país deseja e sente viver num regime democrático, então viverá numa democracia. Contudo, os defensores dessa ideia terão de conseguir explicar por que razão, em países como a Venezuela ou Singapura, a maioria dos eleitores se diz apoiante de regimes democráticos e, ao mesmo tempo, geralmente satisfeita com o funcionamento das suas "democracias". Ou como é possível que, na Rússia, a maioria dos eleitores declare genericamente o seu apoio à democracia como regime, mas acabe por admitir que uma liderança forte e sem obstáculos é a melhor maneira de lidar com os problemas do país, depositando a sua confiança em Putin. Ou até como é possível que a administração americana reclame ainda hoje que, apesar de todos os problemas e imperfeições, se conseguiu, apesar de tudo, levar a "liberdade" e a "democracia" ao Afeganistão ou ao Iraque. O mundo não está fácil para quem quer saber onde está e onde não está a democracia. Mas quem está disposto a desistir de fazer distinções claras, tornando a democracia numa questão "de grau" ou subjectivando o conceito, deveria ter mais cuidado com as companhias.
Esta transformação no mundo das ideias, concomitante com uma transformação no mundo real - a difusão da democracia enquanto forma de governo no século XX - cria, contudo, alguns problemas de análise. Desde logo, é cada vez mais difícil saber onde estão realmente as democracias. Segundo a Freedom House, existem hoje no mundo 123 "democracias eleitorais", ou seja, regimes onde a identidade dos governantes é determinada por eleições regulares onde se pratica o sufrágio universal, onde não existem fraudes eleitorais generalizadas e onde é permitido aos eleitores que façam escolhas entre partidos ou candidatos alternativos que apresentam as suas propostas em campanha. Mas é arriscado presumir que estas características são necessariamente acompanhadas por um conjunto de outras condições que também associamos, mesmo que implicitamente, ao conceito de democracia, tais como o estado de direito, a separação de poderes, o respeito pelas liberdades cívicas e políticas ou o pluralismo social e económico. Não por acaso, os famosos "critérios de Copenhaga", que definem a elegibilidade dos países para a sua pertença à União Europeia, vão bastante para além da "democracia eleitoral".
O problema, contudo, é que a existência ou não dessas restantes regras, instituições e características nos mergulha na análise de uma multiplicidade de critérios e indicadores onde é difícil evitar avaliações subjectivas, ideológicas e politizadas. Há quem procure clarificar este mapa conceptual falando em democracias "delegativas" ou "iliberais". Mas onde colocar o limiar a partir do qual elas se transformariam em genuínas democracias "representativas" ou "liberais"? Há também quem detecte nestas últimas, também elas com os seus "défices democráticos" e "crises de representação", deficiências funcionalmente equivalentes às das novas democracias. Mas a partir de que momento esse défices se tornam tão graves que deixamos de poder realmente falar em "democracia"?
Independentemente da forma como queiramos lidar com este estado de coisas, importa reconhecer que ele é particularmente benéfico para líderes políticos que pretendem garantir a instalação ou a sobrevivência de regimes autoritários sob outros nomes. Para combinarem a manutenção no poder com alguma legitimação interna e externa, basta-lhes preservar eleições "livres e justas", ao mesmo tempo que vão activamente minando tudo aquilo que permite que, mesmo com muitas imperfeições, essas eleições possam garantir algum grau de representação e responsabilização políticas: a autonomia da sociedade civil; a independência do poder judicial; ou o pluralismo na informação. Dizer que, afinal, tudo é uma questão de grau, e que isso se encontra também imperfeitamente garantido nas democracias consolidadas, será porventura verdadeiro. Mas é uma verdade que oculta outra ainda mais fundamental. Essas alegadas "imperfeições", em muitas novas democracias eleitorais, são o resultado de uma estratégia deliberada para a perpetuação no poder e de eliminação daquilo que, em última análise, também faz parte da essência do que é um regime democrático: a existência de alguma incerteza sobre quem, no futuro, vai ocupar o poder.
Há também quem julgue poder resolver o problema "subjectivando" completamente a definição de democracia: se a população de um dado país deseja e sente viver num regime democrático, então viverá numa democracia. Contudo, os defensores dessa ideia terão de conseguir explicar por que razão, em países como a Venezuela ou Singapura, a maioria dos eleitores se diz apoiante de regimes democráticos e, ao mesmo tempo, geralmente satisfeita com o funcionamento das suas "democracias". Ou como é possível que, na Rússia, a maioria dos eleitores declare genericamente o seu apoio à democracia como regime, mas acabe por admitir que uma liderança forte e sem obstáculos é a melhor maneira de lidar com os problemas do país, depositando a sua confiança em Putin. Ou até como é possível que a administração americana reclame ainda hoje que, apesar de todos os problemas e imperfeições, se conseguiu, apesar de tudo, levar a "liberdade" e a "democracia" ao Afeganistão ou ao Iraque. O mundo não está fácil para quem quer saber onde está e onde não está a democracia. Mas quem está disposto a desistir de fazer distinções claras, tornando a democracia numa questão "de grau" ou subjectivando o conceito, deveria ter mais cuidado com as companhias.
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