Números
Por estes dias, com a discussão do Orçamento de Estado, a negociação dos aumentos salariais ou o confronto entre as previsões governamentais do défice e do crescimento económico e as da Comissão Europeia, é difícil não notar como o debate público se encontra povoado de “números” sobre a sociedade e a economia. O fenómeno é historicamente recente. Apesar da recolha de “estatísticas” se ter iniciado nalguns estados no século XVII, a construção de aparelhos estatais equipados para a recolha desta informação e apoiados pelos conhecimentos mais avançados das técnicas matemáticas para a sua análise e tratamento remonta apenas aos anos 30 do século passado, em particular à administração Roosevelt nos Estados Unidos. Não por acaso, é também por esta altura que a noção de que seria possível medir rigorosamente as preferências dos eleitores através de sondagens ganha credibilidade pública e científica. Assim, realidades como o desemprego, a riqueza ou a opinião pública passaram a ser descritas através de indicadores como a “taxa de desemprego”, o “produto interno bruto” ou os “índices de popularidade”. Estas representações numéricas da realidade ganharam um poder enorme: na economia, primeiro, mas cada vez mais na política e noutros domínios da vida social, elas são uma das maneiras principais como nos apercebemos do mundo que nos rodeia, e trazem consigo uma carga de irrefutabilidade que é quase impossível desmontar.*
Haveria muito para dizer sobre esta transformação na maneira de olharmos, descrevermos e explicarmos a sociedade. Poderíamos começar pelos incentivos que os produtores desta informação - estados, empresas, organizações de interesses e por vezes os próprios agentes políticos - têm para a distorcerem em seu benefício, como já explicava em 1950 o economista Oskar Morgenstern, no clássico On the Accuracy of Economic Observations. E mesmo que contemos com a existência de regras e instituições que minimizem as distorções grosseiras, o debate não se esgota aí. As opções sobre como representar quantitativamente a sociedade até podem ser tomadas em absoluta neutralidade técnica e o erro que lhes está sempre associado tomado em conta. Mas as consequências sociais e políticas dessas opções nunca são “neutras”. Basta ver como a ideia de que há uma “opinião pública” captável através de sondagens transformou a concepção do eleitorado e das campanhas: o primeiro é cada vez mais visto como um agregado de preferências individuais de membros de um “mercado” eleitoral; as segundas são cada vez mais cobertas como uma “corrida” entre candidatos que vão “à frente” ou “atrás” nas sondagens, e todas as suas acções e propostas enquadradas como fazendo parte dessa corrida.
Tudo isto vale a pena debater. Contudo, em Portugal, estamos de alguma forma numa fase anterior e primitiva a todos estes possíveis debates. Dois exemplos – os rankings das escolas secundárias e as sondagens político-eleitorais – servem para ilustrar a ideia. Como explicava André Freire nas páginas deste jornal há exactamente uma semana, chega a ser implausível a incipiência técnica e científica com que, sete anos volvidos após o início da divulgação de dados absolutamente preciosos, se continuam a fazer inferências a partir deles na comunicação social e no discurso político. Os mais variados pronunciamentos sobre a “superioridade” do ensino privado (ou falta dela) ou sobre os efeitos supostamente esmagadores das origens sociais dos estudantes continuam a sobreviver incólumes a quaisquer noções sobre controlo estatístico, os obstáculos à inferência sobre efeitos individuais e contextuais na base de dados agregados ou a heterogeneidade interna das categorias “privado” e “público”. E o problema não consiste apenas, como sugeria André Freire, na necessidade imperiosa de recolher dados a nível individual. Esta não é a minha área de investigação académica e não quereria cometer injustiças: mas é verdadeiramente espantoso como, em poucos dias após as divulgação dos “rankings”, um blogue de um economista não-académico (Miguel Madeira, no Vento Sueste) tenha feito mais pela análise dos resultados que centenas de técnicos do Ministério da Educação e dezenas de professores universitários supostamente especialistas em políticas educativas nos últimos sete anos.
As sondagens são outro exemplo da forma como ainda nos falta debater o essencial. Amanhã, por exemplo, inicia-se uma conferência organizada pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) sobre a regulação das sondagens em Portugal. Neste género de conferências (e já assisti a muitas) as discussões tendem sempre a desembocar na questão da “manipulação da opinião pública”, nos juízos casuísticos sobre a “precisão” das sondagens ou nos seus supostamente estrondosos efeitos no comportamento eleitoral. Tudo bem. Mas seria bom que o batalhão de políticos, jornalistas e juristas que domina - com raras excepções - os painéis desta conferência encontrasse algum tempo para debater alguns pontos prévios. Por exemplo, como é possível que, sete anos após uma legislação que supostamente o deveria garantir, a divulgação das sondagens pela comunicação social continue a não ser acompanhada, de forma consistente e sistemática, da informação mais elementar sobre os aspectos metodológicos da sua realização? Como é possível que, com o crescente predomínio das sondagens na cobertura e análise da vida política, não existam jornalistas especializados no tratamento desta informação, nem sequer uma comunidade académica identificável capaz de os formar? E já agora, “mea culpa”: como é possível que, quase 40 anos após a fundação do National Council on Public Polls, uma associação de auto-regulação dos principais institutos de sondagens americanos, os responsáveis dos institutos portugueses ainda permitam que seja um batalhão de políticos, jornalistas e juristas - na ERC ou fora dela - a discutir e a regular a sua actividade?
Os números merecem ser tratados com cuidado. Especialmente num país onde, aparentemente - e aqui vai outro “número” - apenas 5 por cento dos alunos do 6º ano conseguem responder correctamente nas provas de aferição às perguntas sobre cálculo e…números.
*Para conhecer uma análise magistral desta transformação, leia-se um livro de 1993, La politique des grands nombres: Histoire de la raison statistique, de Alain Desroisières.
Haveria muito para dizer sobre esta transformação na maneira de olharmos, descrevermos e explicarmos a sociedade. Poderíamos começar pelos incentivos que os produtores desta informação - estados, empresas, organizações de interesses e por vezes os próprios agentes políticos - têm para a distorcerem em seu benefício, como já explicava em 1950 o economista Oskar Morgenstern, no clássico On the Accuracy of Economic Observations. E mesmo que contemos com a existência de regras e instituições que minimizem as distorções grosseiras, o debate não se esgota aí. As opções sobre como representar quantitativamente a sociedade até podem ser tomadas em absoluta neutralidade técnica e o erro que lhes está sempre associado tomado em conta. Mas as consequências sociais e políticas dessas opções nunca são “neutras”. Basta ver como a ideia de que há uma “opinião pública” captável através de sondagens transformou a concepção do eleitorado e das campanhas: o primeiro é cada vez mais visto como um agregado de preferências individuais de membros de um “mercado” eleitoral; as segundas são cada vez mais cobertas como uma “corrida” entre candidatos que vão “à frente” ou “atrás” nas sondagens, e todas as suas acções e propostas enquadradas como fazendo parte dessa corrida.
Tudo isto vale a pena debater. Contudo, em Portugal, estamos de alguma forma numa fase anterior e primitiva a todos estes possíveis debates. Dois exemplos – os rankings das escolas secundárias e as sondagens político-eleitorais – servem para ilustrar a ideia. Como explicava André Freire nas páginas deste jornal há exactamente uma semana, chega a ser implausível a incipiência técnica e científica com que, sete anos volvidos após o início da divulgação de dados absolutamente preciosos, se continuam a fazer inferências a partir deles na comunicação social e no discurso político. Os mais variados pronunciamentos sobre a “superioridade” do ensino privado (ou falta dela) ou sobre os efeitos supostamente esmagadores das origens sociais dos estudantes continuam a sobreviver incólumes a quaisquer noções sobre controlo estatístico, os obstáculos à inferência sobre efeitos individuais e contextuais na base de dados agregados ou a heterogeneidade interna das categorias “privado” e “público”. E o problema não consiste apenas, como sugeria André Freire, na necessidade imperiosa de recolher dados a nível individual. Esta não é a minha área de investigação académica e não quereria cometer injustiças: mas é verdadeiramente espantoso como, em poucos dias após as divulgação dos “rankings”, um blogue de um economista não-académico (Miguel Madeira, no Vento Sueste) tenha feito mais pela análise dos resultados que centenas de técnicos do Ministério da Educação e dezenas de professores universitários supostamente especialistas em políticas educativas nos últimos sete anos.
As sondagens são outro exemplo da forma como ainda nos falta debater o essencial. Amanhã, por exemplo, inicia-se uma conferência organizada pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) sobre a regulação das sondagens em Portugal. Neste género de conferências (e já assisti a muitas) as discussões tendem sempre a desembocar na questão da “manipulação da opinião pública”, nos juízos casuísticos sobre a “precisão” das sondagens ou nos seus supostamente estrondosos efeitos no comportamento eleitoral. Tudo bem. Mas seria bom que o batalhão de políticos, jornalistas e juristas que domina - com raras excepções - os painéis desta conferência encontrasse algum tempo para debater alguns pontos prévios. Por exemplo, como é possível que, sete anos após uma legislação que supostamente o deveria garantir, a divulgação das sondagens pela comunicação social continue a não ser acompanhada, de forma consistente e sistemática, da informação mais elementar sobre os aspectos metodológicos da sua realização? Como é possível que, com o crescente predomínio das sondagens na cobertura e análise da vida política, não existam jornalistas especializados no tratamento desta informação, nem sequer uma comunidade académica identificável capaz de os formar? E já agora, “mea culpa”: como é possível que, quase 40 anos após a fundação do National Council on Public Polls, uma associação de auto-regulação dos principais institutos de sondagens americanos, os responsáveis dos institutos portugueses ainda permitam que seja um batalhão de políticos, jornalistas e juristas - na ERC ou fora dela - a discutir e a regular a sua actividade?
Os números merecem ser tratados com cuidado. Especialmente num país onde, aparentemente - e aqui vai outro “número” - apenas 5 por cento dos alunos do 6º ano conseguem responder correctamente nas provas de aferição às perguntas sobre cálculo e…números.
*Para conhecer uma análise magistral desta transformação, leia-se um livro de 1993, La politique des grands nombres: Histoire de la raison statistique, de Alain Desroisières.
Etiquetas: "inumeracia", sondagens
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