Cinco anos depois
Uma das transformações políticas mais importantes ocorridas no século passado foi a vaga global de democratização dos regimes. No início do século XX, nenhum país satisfazia as condições básicas de eleições livres, sufrágio universal e competição política aberta que nos habituámos a ver como elementares para a democracia. Hoje, a maior parte dos países e da população mundial vive sob regimes com estas características. E a esta mudança correspondeu também uma outra, no pensamento sobre as causas da emergência e da sustentação da democracia. Até aos anos 70, ela era vista como algo que requeria condições estruturais extremamente exigentes para se poder instalar. O catálogo dessas condições variou bastante: desenvolvimento económico, capital social, homogeneidade linguística, étnica ou religiosa, a herança colonial britânica, o protestantismo, ou a "cultura cívica". Mas aquilo que a realidade nos empurrou pelos olhos dentro foi que esse catálogo era excessivamente fatalista e até, de alguma forma, condescendente em relação ao mundo "não-ocidental". Afinal, a democratização na Europa do Sul, na América Latina, na Europa de Leste e nalguns países na Ásia e em África revelou que, por influentes que fossem esses pré-requisitos, a democracia parecia poder emergir à revelia deles. Alguns até podiam ser vistos como consequências, e não como causas, da democracia. E ao contrário daquilo que muitos líderes autoritários argumentavam, o desejo das populações mundiais pela liberdade era bem mais universal do que poderia parecer.
A política externa americana teve muito a ver com tudo isto. Como assinalava Samuel Huntington num famoso livro sobre a "terceira vaga de democratização", a derrota da realpolitik no Vietname e a adopção dos direitos humanos como tema central na política externa de Jimmy Carter sinalizaram uma mudança estratégica, a partir da qual a promoção explícita da democracia passou a ser vista como algo que não estava necessariamente em contradição com os interesses da maior potência mundial.A queda do muro reforçou esta convicção, e muitos recursos foram canalizados para instituições, organizações não-governamentais e departamentos de Ciência Política e Relações Internacionais encarregados de gerar o soft power por detrás deste novo desígnio. E independentemente da suspeita que ele sempre gerou em grande parte da esquerda europeia e latino-americana, a verdade é que esse desígnio serviu para apoiar a acção de muitos académicos, think tanks e activistas da sociedade, civil quer nos Estados Unidos, quer em novas democracias e em regimes ditatoriais, todos eles genuinamente interessados em promover a democracia e a liberdade.
Foi a este caldo cultural que a administração Bush e aqueles que a aconselharam - muitos deles anteriores defensores de uma realpolitik ainda mais implacável que a dos próprios "realistas" - foram beber para encontrar uma legitimação política e intelectual para a invasão do Iraque que fosse para além das preocupações com a segurança internacional, a luta contra o terrorismo ou as armas de destruição maciça. Quando, no seu famoso discurso de 2002 em West Point, Bush negava a existência de um "choque de civilizações" e afirmava que os povos islâmicos "desejam e merecem as mesmas liberdade e oportunidades que as pessoas em todas as nações", era a essa fonte de legitimação que estava a recorrer. E o poder desse dispositivo retórico estava na forma como baralhava as categorias de "pombas" e "falcões", convocava os partidários da democracia para o lado dos partidários da guerra e remetia o "realismo" para uma posição de conservadorismo ou, até, de etnocentrismo.
O resto já sabemos como foi. Os defensores da democratização do Iraque foram também os defensores da tortura, das extraordinary renditions, de Guantánamo e do Patriot Act. Hoje, a estimativa do governo de Bagdade - que vale muito mais como juízo sobre o presente do que como previsão futura - é que, antes de 2012, será impossível garantir a segurança interna do país, enquanto o controlo das fronteiras só deverá ser obtido em 2018. E um número inteiro do PÚBLICO não chegaria para descrever as consequências políticas, militares, económicas, culturais e outras, directas ou indirectas, da invasão.
Mas há uma, tristemente irónica, que, cinco anos volvidos, merece ser especialmente assinalada. A invasão e a ocupação do Iraque marcam o fim de uma era no que respeita quer à nossa compreensão da viabilidade da democracia, quer à acção daqueles que estavam interessados em promovê-la como regime político no mundo. Nos regimes autoritários, a posição dos sectores políticos e da sociedade civil mais favoráveis à democracia encontra-se agora fatalmente enfraquecida, sendo facilmente associados a uma política externa americana deslegitimada e dificilmente vista como benigna mesmo pelos sectores mais moderados da população. Como inúmeros estudos recentes mostram, uma das estratégias mais bem sucedidas de vários líderes autoritários vem sendo o ataque às organizações não-governamentais pró-democráticas estrangeiras e domésticas, ataques esses que recebem agora a compreensão de sectores da população que antes não os veriam favoravelmente. Nos Estados Unidos, o ambiente intelectual nos estudos sobre a democratização quase parece ter regressado aos anos 60: a ênfase voltou a ser colocada na "ordem" e no "realismo" políticos, nos pré-requisitos estruturais para a democratização e no pessimismo sobre a probabilidade de progressos a este nível. Entre a opinião pública americana, a pressão para um novo isolacionismo, no rescaldo do fracasso iraquiano, é enorme. Isto não significa que as razões intelectuais para algum optimismo moderado sobre a democratização tenham desaparecido, tal como não significa que elas não existissem nos anos 60. Significa apenas que é muito mais difícil descortiná-las, defendê-las e agir sobre elas no momento presente.
Nos seus últimos artigos no PÚBLICO, Pacheco Pereira argumenta, bastante zangado, que a invasão não deve ser discutida na base das "mentiras" que a administração americana ou os defensores da invasão teriam propalado, como se de criminosos se tratasse. Não posso estar mais de acordo. Essas são matérias para comissões parlamentares de inquérito, nuns casos, e juízos pessoais relativamente desinteressantes, noutros, que ainda por cima se basearão sempre em informações incompletas e de veracidade contestável. De facto, aquilo que todos hoje podemos apreciar devidamente é outra coisa: a magnitude da insensatez daqueles que alguma vez acharam que "a ideia mais global da resposta à crise suscitada pelo terrorismo apocalíptico" por detrás da invasão do Iraque fazia alguma espécie de sentido político, estratégico e moral, assim como a sua total incapacidade para anteciparem as consequências nefastas dessa invasão para aqueles que defendem a democracia e a liberdade no mundo. Não é crime, de facto. Mas eu, se fosse ele, também estaria zangado.
A política externa americana teve muito a ver com tudo isto. Como assinalava Samuel Huntington num famoso livro sobre a "terceira vaga de democratização", a derrota da realpolitik no Vietname e a adopção dos direitos humanos como tema central na política externa de Jimmy Carter sinalizaram uma mudança estratégica, a partir da qual a promoção explícita da democracia passou a ser vista como algo que não estava necessariamente em contradição com os interesses da maior potência mundial.A queda do muro reforçou esta convicção, e muitos recursos foram canalizados para instituições, organizações não-governamentais e departamentos de Ciência Política e Relações Internacionais encarregados de gerar o soft power por detrás deste novo desígnio. E independentemente da suspeita que ele sempre gerou em grande parte da esquerda europeia e latino-americana, a verdade é que esse desígnio serviu para apoiar a acção de muitos académicos, think tanks e activistas da sociedade, civil quer nos Estados Unidos, quer em novas democracias e em regimes ditatoriais, todos eles genuinamente interessados em promover a democracia e a liberdade.
Foi a este caldo cultural que a administração Bush e aqueles que a aconselharam - muitos deles anteriores defensores de uma realpolitik ainda mais implacável que a dos próprios "realistas" - foram beber para encontrar uma legitimação política e intelectual para a invasão do Iraque que fosse para além das preocupações com a segurança internacional, a luta contra o terrorismo ou as armas de destruição maciça. Quando, no seu famoso discurso de 2002 em West Point, Bush negava a existência de um "choque de civilizações" e afirmava que os povos islâmicos "desejam e merecem as mesmas liberdade e oportunidades que as pessoas em todas as nações", era a essa fonte de legitimação que estava a recorrer. E o poder desse dispositivo retórico estava na forma como baralhava as categorias de "pombas" e "falcões", convocava os partidários da democracia para o lado dos partidários da guerra e remetia o "realismo" para uma posição de conservadorismo ou, até, de etnocentrismo.
O resto já sabemos como foi. Os defensores da democratização do Iraque foram também os defensores da tortura, das extraordinary renditions, de Guantánamo e do Patriot Act. Hoje, a estimativa do governo de Bagdade - que vale muito mais como juízo sobre o presente do que como previsão futura - é que, antes de 2012, será impossível garantir a segurança interna do país, enquanto o controlo das fronteiras só deverá ser obtido em 2018. E um número inteiro do PÚBLICO não chegaria para descrever as consequências políticas, militares, económicas, culturais e outras, directas ou indirectas, da invasão.
Mas há uma, tristemente irónica, que, cinco anos volvidos, merece ser especialmente assinalada. A invasão e a ocupação do Iraque marcam o fim de uma era no que respeita quer à nossa compreensão da viabilidade da democracia, quer à acção daqueles que estavam interessados em promovê-la como regime político no mundo. Nos regimes autoritários, a posição dos sectores políticos e da sociedade civil mais favoráveis à democracia encontra-se agora fatalmente enfraquecida, sendo facilmente associados a uma política externa americana deslegitimada e dificilmente vista como benigna mesmo pelos sectores mais moderados da população. Como inúmeros estudos recentes mostram, uma das estratégias mais bem sucedidas de vários líderes autoritários vem sendo o ataque às organizações não-governamentais pró-democráticas estrangeiras e domésticas, ataques esses que recebem agora a compreensão de sectores da população que antes não os veriam favoravelmente. Nos Estados Unidos, o ambiente intelectual nos estudos sobre a democratização quase parece ter regressado aos anos 60: a ênfase voltou a ser colocada na "ordem" e no "realismo" políticos, nos pré-requisitos estruturais para a democratização e no pessimismo sobre a probabilidade de progressos a este nível. Entre a opinião pública americana, a pressão para um novo isolacionismo, no rescaldo do fracasso iraquiano, é enorme. Isto não significa que as razões intelectuais para algum optimismo moderado sobre a democratização tenham desaparecido, tal como não significa que elas não existissem nos anos 60. Significa apenas que é muito mais difícil descortiná-las, defendê-las e agir sobre elas no momento presente.
Nos seus últimos artigos no PÚBLICO, Pacheco Pereira argumenta, bastante zangado, que a invasão não deve ser discutida na base das "mentiras" que a administração americana ou os defensores da invasão teriam propalado, como se de criminosos se tratasse. Não posso estar mais de acordo. Essas são matérias para comissões parlamentares de inquérito, nuns casos, e juízos pessoais relativamente desinteressantes, noutros, que ainda por cima se basearão sempre em informações incompletas e de veracidade contestável. De facto, aquilo que todos hoje podemos apreciar devidamente é outra coisa: a magnitude da insensatez daqueles que alguma vez acharam que "a ideia mais global da resposta à crise suscitada pelo terrorismo apocalíptico" por detrás da invasão do Iraque fazia alguma espécie de sentido político, estratégico e moral, assim como a sua total incapacidade para anteciparem as consequências nefastas dessa invasão para aqueles que defendem a democracia e a liberdade no mundo. Não é crime, de facto. Mas eu, se fosse ele, também estaria zangado.
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