Longe do consenso
A democracia espanhola sempre foi interessante para os estudiosos dos fenómenos políticos. O principal objecto desse fascínio é, de resto, o próprio processo através do qual Espanha se tornou um regime democrático. À partida, pareceria que poucos países poderiam apresentar condições tão desfavoráveis para uma transição pacífica, com elites políticas que se encontravam profunda e historicamente divididas em redor de temas tão centrais como o modelo económico e social, as relações entre o Estado e a Igreja, a inserção geoestratégica do país, a forma de estado ou a forma de governo. Mas, na verdade, as "duas Espanhas travadas em luta incessante", como escreveu Ortega y Gasset, acabaram surpreendentemente por encontrar a paz num processo mil vezes estudado de negociação e conciliação de interesses, à sombra da memória recente de uma das guerras mais selváticas da história da civilização ocidental. E este enorme milagre foi seguido, nas décadas seguintes, de outros mais pequenos mas também significativos: a transformação do PSOE de um partido marxista num partido de centro-esquerda moderado e pragmático; a participação de partidos nacionalistas bascos e catalães em coligações ou entendimentos políticos estáveis e eficazes no Governo central; a aparente deslocação do PP para o centro do espectro político e a conversão definitiva da direita espanhola à democracia; e a transformação de Espanha numa sociedade moderna, com altos níveis de desenvolvimento económico e social, hoje a nona economia mundial e com um PIB per capita superior ao de Itália.
Por estes dias, contudo, Espanha desperta o interesse dos especialistas por razões bastante distintas. Uma das coisas que durante algum tempo se julgou saber sobre o comportamento eleitoral é que a modernização tenderia a enfraquecer a ancoragem social do eleitorado. A mobilidade social, a complexificação da estrutura de classes, o declínio dos sindicatos e a secularização seriam processos através dos quais os eleitores se tornariam cada vez mais independentes em relação a grupos e identidades sociais. Os partidos poderiam contar cada vez menos com bases sociais estáveis. No máximo, poderiam contar apenas com bases formadas por indivíduos com atitudes e valores semelhantes, mas sem laços sociais claros entre si e, de resto, com opiniões heterogéneas sobre a multiplicidade de temas em jogo numa eleição. E, neste cenário, as escolhas eleitorais reorientar-se-iam cada vez mais para critérios de desempenho e eficiência.
Mas, nos últimos anos, Espanha vem fornecendo uma excelente ilustração de como essas alegadas tendências são tudo menos inexoráveis. Como mostram Mariano Torcal e Lucia Medina num capítulo de um livro altamente recomendável por estes dias (Elecciones Generales 2004, editado em Dezembro passado pelo Centro de Investigaciones Sociológicas), a classe social a que os eleitores pertencem vem crescendo de importância na explicação do comportamento de voto dos espanhóis, sendo igualmente visível, desde 2000, um aumento de importância da religiosidade como factor explicativo do voto. Um dos reflexos desta crescente ancoragem social do voto é visível quer nos últimos resultados eleitorais, quer nas sondagens para as eleições de 9 de Março próximo: apesar do óptimo desempenho da economia espanhola em ambos os períodos (pela qual o partido de Governo deveria supostamente ser altamente beneficiado) ou da actual enorme vantagem de Zapatero em relação à Rajoy no que respeita à simpatia que evocam nos eleitores, os votantes espanhóis em 2004 e 2008 parecem divididos em dois grandes blocos quase completamente estanques. Nas sondagens, cujos resultados parecem decalcados dos das últimas eleições, a vantagem do PSOE anda pelos três ou quatro pontos percentuais, e torna-se ínfima quando se trata de projectar a distribuição de assentos parlamentares.
A criação desta profunda clivagem que hoje parece atravessar Espanha remonta a 2000 e à vitória do PP por maioria absoluta nas eleições desse ano. Como explica Julián Santamaría no já mencionado livro, essa estrondosa vitória dos populares resultou não apenas do excepcional desempenho económico de Espanha nos anos anteriores mas também da surpreendente disponibilidade do Governo para fazer pactos com os sindicatos ou os nacionalistas bascos e catalães em áreas políticas fundamentais, assim como da sua moderação ideológica e aceitação das regras do jogo da democracia espanhola. Contudo, o PP decidiu interpretar a vitória de 2000 de outra forma, como sintoma de um realinhamento eleitoral dos espanhóis à direita. O que se viu de seguida foi que a sua moderação, afinal, tinha sido meramente táctica, fruto da circunstância de não dispor de uma maioria absoluta. Entre 2000 e 2004, assistiu-se a um mandato de confrontação total com os sindicatos, com os nacionalismos, com a oposição parlamentar e, no tema do Iraque, com toda a sociedade espanhola. Recuou-se ao passado no delicadíssimo tema da separação entre o Estado e a Igreja, reabrindo uma das feridas mais difíceis de sarar na sociedade espanhola. E como a derrota do PP em 2004 não foi digerida pelo partido como legítima ou até legal, não se tirou dela quaisquer ilações que não fossem a de um reforço da estratégia de confrontação. Nem o PSOE, desde então, tem abdicado de alimentar estas clivagens quando pressente que, mesmo que dividindo a Espanha em duas, pode ficar com a maior parte.
O consenso não é em si mesmo uma virtude, algo que os abundantes (e em grande medida falsos) consensos na política portuguesa e a inacção que deles resultam demonstram amplamente. Mas a ausência de quaisquer bases para um consenso entre os dois maiores partidos espanhóis em temas tão centrais como a defesa e a política externa, a luta contra o terrorismo, os poderes e as competências das comunidades autónomas ou a justiça só pode ser vista como perturbante. É também verdade que o passado mostra como nada a este nível é definitivo, e que as clivagens políticas, mesmo as mais profundas, podem ser activadas mas também desactivadas pelos actores políticos. Contudo, as sondagens não prenunciam nada nesse sentido. A vitória do PSOE - o cenário mais provável neste momento - será sempre por pouco, podendo ser assim insuficiente para deslegitimar os actuais quadros dirigentes do PP e dificultando o caminho para moderados como Ruiz-Gallardón. E uma vitória do PP - um cenário possível, mesmo que o PSOE tenha mais votos, fruto dos particulares enviesamentos do sistema eleitoral espanhol - seria para os populares a prova definitiva de que o confronto e a polarização compensam. Espanha está longe do regresso ao consenso.
Por estes dias, contudo, Espanha desperta o interesse dos especialistas por razões bastante distintas. Uma das coisas que durante algum tempo se julgou saber sobre o comportamento eleitoral é que a modernização tenderia a enfraquecer a ancoragem social do eleitorado. A mobilidade social, a complexificação da estrutura de classes, o declínio dos sindicatos e a secularização seriam processos através dos quais os eleitores se tornariam cada vez mais independentes em relação a grupos e identidades sociais. Os partidos poderiam contar cada vez menos com bases sociais estáveis. No máximo, poderiam contar apenas com bases formadas por indivíduos com atitudes e valores semelhantes, mas sem laços sociais claros entre si e, de resto, com opiniões heterogéneas sobre a multiplicidade de temas em jogo numa eleição. E, neste cenário, as escolhas eleitorais reorientar-se-iam cada vez mais para critérios de desempenho e eficiência.
Mas, nos últimos anos, Espanha vem fornecendo uma excelente ilustração de como essas alegadas tendências são tudo menos inexoráveis. Como mostram Mariano Torcal e Lucia Medina num capítulo de um livro altamente recomendável por estes dias (Elecciones Generales 2004, editado em Dezembro passado pelo Centro de Investigaciones Sociológicas), a classe social a que os eleitores pertencem vem crescendo de importância na explicação do comportamento de voto dos espanhóis, sendo igualmente visível, desde 2000, um aumento de importância da religiosidade como factor explicativo do voto. Um dos reflexos desta crescente ancoragem social do voto é visível quer nos últimos resultados eleitorais, quer nas sondagens para as eleições de 9 de Março próximo: apesar do óptimo desempenho da economia espanhola em ambos os períodos (pela qual o partido de Governo deveria supostamente ser altamente beneficiado) ou da actual enorme vantagem de Zapatero em relação à Rajoy no que respeita à simpatia que evocam nos eleitores, os votantes espanhóis em 2004 e 2008 parecem divididos em dois grandes blocos quase completamente estanques. Nas sondagens, cujos resultados parecem decalcados dos das últimas eleições, a vantagem do PSOE anda pelos três ou quatro pontos percentuais, e torna-se ínfima quando se trata de projectar a distribuição de assentos parlamentares.
A criação desta profunda clivagem que hoje parece atravessar Espanha remonta a 2000 e à vitória do PP por maioria absoluta nas eleições desse ano. Como explica Julián Santamaría no já mencionado livro, essa estrondosa vitória dos populares resultou não apenas do excepcional desempenho económico de Espanha nos anos anteriores mas também da surpreendente disponibilidade do Governo para fazer pactos com os sindicatos ou os nacionalistas bascos e catalães em áreas políticas fundamentais, assim como da sua moderação ideológica e aceitação das regras do jogo da democracia espanhola. Contudo, o PP decidiu interpretar a vitória de 2000 de outra forma, como sintoma de um realinhamento eleitoral dos espanhóis à direita. O que se viu de seguida foi que a sua moderação, afinal, tinha sido meramente táctica, fruto da circunstância de não dispor de uma maioria absoluta. Entre 2000 e 2004, assistiu-se a um mandato de confrontação total com os sindicatos, com os nacionalismos, com a oposição parlamentar e, no tema do Iraque, com toda a sociedade espanhola. Recuou-se ao passado no delicadíssimo tema da separação entre o Estado e a Igreja, reabrindo uma das feridas mais difíceis de sarar na sociedade espanhola. E como a derrota do PP em 2004 não foi digerida pelo partido como legítima ou até legal, não se tirou dela quaisquer ilações que não fossem a de um reforço da estratégia de confrontação. Nem o PSOE, desde então, tem abdicado de alimentar estas clivagens quando pressente que, mesmo que dividindo a Espanha em duas, pode ficar com a maior parte.
O consenso não é em si mesmo uma virtude, algo que os abundantes (e em grande medida falsos) consensos na política portuguesa e a inacção que deles resultam demonstram amplamente. Mas a ausência de quaisquer bases para um consenso entre os dois maiores partidos espanhóis em temas tão centrais como a defesa e a política externa, a luta contra o terrorismo, os poderes e as competências das comunidades autónomas ou a justiça só pode ser vista como perturbante. É também verdade que o passado mostra como nada a este nível é definitivo, e que as clivagens políticas, mesmo as mais profundas, podem ser activadas mas também desactivadas pelos actores políticos. Contudo, as sondagens não prenunciam nada nesse sentido. A vitória do PSOE - o cenário mais provável neste momento - será sempre por pouco, podendo ser assim insuficiente para deslegitimar os actuais quadros dirigentes do PP e dificultando o caminho para moderados como Ruiz-Gallardón. E uma vitória do PP - um cenário possível, mesmo que o PSOE tenha mais votos, fruto dos particulares enviesamentos do sistema eleitoral espanhol - seria para os populares a prova definitiva de que o confronto e a polarização compensam. Espanha está longe do regresso ao consenso.
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