Valores de esquerda
Há dias, foi apresentado o projecto de ampliação da Gare do Oriente para a alta velocidade. Santiago Calatrava vai receber mais de seis milhões de euros e promete aproveitar a ocasião para emendar algumas das - note-se o encantador eufemismo - "falhas" do projecto anterior. Abrilhantando ainda mais a ocasião, o presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, avançou a proposta de encerrar a estação de Santa Apolónia à actividade ferroviária, transformando-a em terminal de cruzeiros. Quanto aos terrenos afectos, deveriam ser vendidos para - outro eufemismo - "projectos urbanísticos", com as receitas a ajudarem ao reequilíbrio financeiro da Refer.
Há várias coisas interessantes neste episódio. Já se conhecia a total incapacidade das inúmeras autoridades e jurisdições sobrepostas, cujas decisões têm impacto na vida dos lisboetas, para chegarem a um nível mínimo de coordenação e planeamento. Mas a situação parece ter chegado a extremos inéditos de diletantismo. No dia seguinte às declarações do presidente da câmara, a CP fez saber que discorda da ideia de António Costa, tendo em conta as consequências graves que ela teria para o congestionamento das linhas e para as operações de manutenção, logística e estacionamento de composições. O que impressiona aqui, claro, não é que duas entidades tenham visões contraditórias sobre o mesmo tema, mas sim que a "ideia" tenha sido avançada sem que, aparentemente, tenha havido a mínima consulta prévia sobre o assunto entre as partes interessadas. De resto, isto parece ser sintoma de uma síndrome ainda mais grave. Quando António Costa era candidato, muito se disse - ou insinuou - sobre as vantagens que decorreriam de ter na câmara um ex-membro do Governo com grande peso político no partido do poder. Mas, como os sucessivos obstáculos colocados às suas "ideias" pelo Tribunal de Contas, pelo Presidente da República, pela oposição camarária e, agora, até pela CP parecem demonstrar, uma das consequências de ser ter eleito António Costa parece ter sido a de colocar na presidência da câmara alguém que ainda não se deu devidamente conta de quão limitados são os seus reais poder, influência e capacidade de realização.
É até possível que o presidente da câmara acredite que é disto, destas "ideias", que se pode, afinal, fazer um bom lugar. No dia em foi eleito, António Costa prometeu, em frente às câmaras de televisão, algumas medidas imediatas, para as quais fixava prazos concretos: para além do simbolismo - que disso ainda não passa - de encerrar o Terreiro do Paço ao trânsito nos domingos, prometeu limpeza das ruas, pintura de passadeiras, ataque ao estacionamento em segunda fila e em cima dos passeios e recuperação dos espaços verdes. Na altura, foi muito criticado por propor medidas aparentemente comezinhas e pouco ambiciosas. Mas a ênfase era correctíssima: uma cidade que, no confronto com as restantes capitais europeias, se caracteriza antes de mais pelo elevado grau de decadência e degradação física do espaço público, precisa em primeiro lugar, e sempre, de manutenção e regulação. Contudo, duzentos e oitenta dias depois, não é preciso deambular muito pela cidade para perceber que, com excepção do simbolismo, estamos muito, muito longe da concretização de qualquer uma dessas "medidas imediatas". E, surpreendentemente, ao contrário da acérrima vigilância que cada vez mais - e bem - se faz da actividade do Governo central, são raríssimas as menções na comunicação social a este fracasso, tendo cabido quase exclusivamente a alguns cidadãos comuns, em vários blogues profusamente ilustrados, a sua diária demonstração. Como a sua presença na Quadratura do Círculo demonstra, os horizontes que António Costa tem para a sua carreira política vão muito para além da "mera" presidência da Câmara de Lisboa. E o risco é que, perante a passividade da comunicação social, a inépcia, falta de visibilidade ou cooptação da oposição camarária, o fascínio de muitos eleitores com as "grandes obras" e a sua habituação ao quotidiano desastroso do que é a vida em Lisboa, o presidente da câmara sinta que se pode dedicar ainda mais a este tipo de "ideias".
A verdade, de resto, é que a proposta de António Costa tem um honroso pedigree na vida da cidade. Inaugurada em 1988, a estação de metro das Laranjeiras tinha sido inicialmente concebida com o fim de servir os utentes do futuro Luna Park. Na ausência de semelhante coisa, a estação serviu para estimular variados "projectos urbanísticos", do T1 ao T6, também disponíveis em duplex. No mesmo dia, abriu a estação do Alto dos Moinhos, inicialmente concebida para servir a "cidade administrativa", onde seriam colocados todos os serviços governamentais hoje situados no Terreiro do Paço. Morta a ideia, vários outros "projectos urbanísticos" ocuparam o seu lugar. Sessenta e oito anos depois da inauguração do Aeroporto da Portela e 50 anos depois da inauguração do Metro de Lisboa, avançam agora as obras de ligação entre um e outro, que têm apenas a ligeira desvantagem de, entretanto, ter sido decidida a construção de um novo aeroporto noutro sítio. Mas há sempre "projectos urbanísticos" que podem suprir uma necessidade tornada subitamente inexistente. E se há novidade nesta proposta de António Costa, é o facto de propor eliminar a razão de ser da extensão da linha de metro para a recém-renovada Estação de Santa Apolónia - com um custo por quilómetro que deverá ter sido um dos mais altos deste meio de transporte em todo o mundo - já depois de a obra estar concluída. Assim, colocada em prática esta ideia, os habitantes da parte ocidental de Lisboa que precisem de fazer um percurso ferroviário de longo curso terão de atravessar toda a cidade até ao seu extremo oriental. Mas sempre que desejarem fazer um cruzeiro, dar um passo de dança à noite, comprar produtos gourmet ou fruir dos vários "projectos urbanísticos" que António Costa terá em mente para a zona, é um saltinho. Em suma, então, a "ideia": pegar em milhares de milhões de euros dos contribuintes que serviram para construir uma obra de alegado interesse público e transformá-los num serviço para uma minoria de cidadãos, fonte de lucro fácil para interesses imobiliários e fonte de receitas para compensar défices ruinosos em empresas públicas. Mas verdade seja dita, António Costa já tinha explicado, na Quadratura do Círculo, que "uma coisa são os valores (de esquerda), outra coisa é a sua aplicação no dia-a-dia." Ora nem mais.
Há várias coisas interessantes neste episódio. Já se conhecia a total incapacidade das inúmeras autoridades e jurisdições sobrepostas, cujas decisões têm impacto na vida dos lisboetas, para chegarem a um nível mínimo de coordenação e planeamento. Mas a situação parece ter chegado a extremos inéditos de diletantismo. No dia seguinte às declarações do presidente da câmara, a CP fez saber que discorda da ideia de António Costa, tendo em conta as consequências graves que ela teria para o congestionamento das linhas e para as operações de manutenção, logística e estacionamento de composições. O que impressiona aqui, claro, não é que duas entidades tenham visões contraditórias sobre o mesmo tema, mas sim que a "ideia" tenha sido avançada sem que, aparentemente, tenha havido a mínima consulta prévia sobre o assunto entre as partes interessadas. De resto, isto parece ser sintoma de uma síndrome ainda mais grave. Quando António Costa era candidato, muito se disse - ou insinuou - sobre as vantagens que decorreriam de ter na câmara um ex-membro do Governo com grande peso político no partido do poder. Mas, como os sucessivos obstáculos colocados às suas "ideias" pelo Tribunal de Contas, pelo Presidente da República, pela oposição camarária e, agora, até pela CP parecem demonstrar, uma das consequências de ser ter eleito António Costa parece ter sido a de colocar na presidência da câmara alguém que ainda não se deu devidamente conta de quão limitados são os seus reais poder, influência e capacidade de realização.
É até possível que o presidente da câmara acredite que é disto, destas "ideias", que se pode, afinal, fazer um bom lugar. No dia em foi eleito, António Costa prometeu, em frente às câmaras de televisão, algumas medidas imediatas, para as quais fixava prazos concretos: para além do simbolismo - que disso ainda não passa - de encerrar o Terreiro do Paço ao trânsito nos domingos, prometeu limpeza das ruas, pintura de passadeiras, ataque ao estacionamento em segunda fila e em cima dos passeios e recuperação dos espaços verdes. Na altura, foi muito criticado por propor medidas aparentemente comezinhas e pouco ambiciosas. Mas a ênfase era correctíssima: uma cidade que, no confronto com as restantes capitais europeias, se caracteriza antes de mais pelo elevado grau de decadência e degradação física do espaço público, precisa em primeiro lugar, e sempre, de manutenção e regulação. Contudo, duzentos e oitenta dias depois, não é preciso deambular muito pela cidade para perceber que, com excepção do simbolismo, estamos muito, muito longe da concretização de qualquer uma dessas "medidas imediatas". E, surpreendentemente, ao contrário da acérrima vigilância que cada vez mais - e bem - se faz da actividade do Governo central, são raríssimas as menções na comunicação social a este fracasso, tendo cabido quase exclusivamente a alguns cidadãos comuns, em vários blogues profusamente ilustrados, a sua diária demonstração. Como a sua presença na Quadratura do Círculo demonstra, os horizontes que António Costa tem para a sua carreira política vão muito para além da "mera" presidência da Câmara de Lisboa. E o risco é que, perante a passividade da comunicação social, a inépcia, falta de visibilidade ou cooptação da oposição camarária, o fascínio de muitos eleitores com as "grandes obras" e a sua habituação ao quotidiano desastroso do que é a vida em Lisboa, o presidente da câmara sinta que se pode dedicar ainda mais a este tipo de "ideias".
A verdade, de resto, é que a proposta de António Costa tem um honroso pedigree na vida da cidade. Inaugurada em 1988, a estação de metro das Laranjeiras tinha sido inicialmente concebida com o fim de servir os utentes do futuro Luna Park. Na ausência de semelhante coisa, a estação serviu para estimular variados "projectos urbanísticos", do T1 ao T6, também disponíveis em duplex. No mesmo dia, abriu a estação do Alto dos Moinhos, inicialmente concebida para servir a "cidade administrativa", onde seriam colocados todos os serviços governamentais hoje situados no Terreiro do Paço. Morta a ideia, vários outros "projectos urbanísticos" ocuparam o seu lugar. Sessenta e oito anos depois da inauguração do Aeroporto da Portela e 50 anos depois da inauguração do Metro de Lisboa, avançam agora as obras de ligação entre um e outro, que têm apenas a ligeira desvantagem de, entretanto, ter sido decidida a construção de um novo aeroporto noutro sítio. Mas há sempre "projectos urbanísticos" que podem suprir uma necessidade tornada subitamente inexistente. E se há novidade nesta proposta de António Costa, é o facto de propor eliminar a razão de ser da extensão da linha de metro para a recém-renovada Estação de Santa Apolónia - com um custo por quilómetro que deverá ter sido um dos mais altos deste meio de transporte em todo o mundo - já depois de a obra estar concluída. Assim, colocada em prática esta ideia, os habitantes da parte ocidental de Lisboa que precisem de fazer um percurso ferroviário de longo curso terão de atravessar toda a cidade até ao seu extremo oriental. Mas sempre que desejarem fazer um cruzeiro, dar um passo de dança à noite, comprar produtos gourmet ou fruir dos vários "projectos urbanísticos" que António Costa terá em mente para a zona, é um saltinho. Em suma, então, a "ideia": pegar em milhares de milhões de euros dos contribuintes que serviram para construir uma obra de alegado interesse público e transformá-los num serviço para uma minoria de cidadãos, fonte de lucro fácil para interesses imobiliários e fonte de receitas para compensar défices ruinosos em empresas públicas. Mas verdade seja dita, António Costa já tinha explicado, na Quadratura do Círculo, que "uma coisa são os valores (de esquerda), outra coisa é a sua aplicação no dia-a-dia." Ora nem mais.
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