segunda-feira, janeiro 21, 2008

A lei dos mais fortes

Por que será tão difícil, raro e improvável o sucesso de novos partidos em Portugal? De há uns anos para cá, estas questões vêm sendo colocadas por ocasião dos bons resultados de alguns candidatos independentes em eleições locais ou presidenciais, das crises de liderança nalguns dos principais partidos ou mesmo, genericamente, dos indicadores de insatisfação dos eleitores em relação aos desempenhos dos governos, dos partidos ou do regime. E é impossível não sentir alguma perplexidade a este nível. De um certo ponto de vista, existe em Portugal uma estrutura de oportunidades razoavelmente favorável à mudança: partidos pouco enraizados na sociedade, com bases sociais difusas e flutuantes; uma grande convergência programática entre o PS e o PSD, alargada, nalguns temas - tais como a Europa ou papel do Estado na sociedade e na economia - a outros partidos; ou as atitudes críticas e cépticas que a maioria dos cidadãos tem em relação ao sistema partidário. Em suma, se for verdade que existe o que se costuma chamar um "divórcio" entre eleitores e partidos e um desfasamento entre a oferta e a procura partidária, como se explica a enorme estabilidade do sistema?

A recente iniciativa do Tribunal Constitucional no sentido de verificar a existência de 5000 filiados em cada um dos partidos oficialmente inscritos (a fim de proceder à extinção judicial daqueles que não cumpram esse requisito) chama a atenção para uma explicação possível: independentemente dos factores sociais e políticos que possam favorecer a emergência de novos partidos, os obstáculos à mudança e à inovação no nosso sistema partidário são, fundamentalmente, institucionais. Não somos, longe disso, a única democracia onde esses obstáculos existem, nem faz sequer sentido conceber um sistema sem eles. A representatividade e o pluralismo têm de ser conciliados com objectivos de governabilidade e responsabilização, limitando a pulverização partidária. As associações que se convertam em partidos ganham direito a recursos que são escassos e que, logo, têm de ser associados a deveres, evitando a existência de partidos "virtuais" ou "fantasmas". E a própria noção de representatividade é indissociável da ideia de que nem todos os interesses e opiniões podem ter o mesmo peso no debate eleitoral e no Parlamento. Para os cidadãos, cuja capacidade de tomar decisões e processar informação política é inevitavelmente limitada, o confronto com uma oferta partidária pulverizada e instável não é necessariamente favorável à boa representação. Por tudo isto, sistemas excessivamente "permissivos" do ponto de vista da entrada de novas forças políticas no sistema não são necessariamente mais "democráticos".

Devemos perguntar-nos, contudo, até que ponto se justifica toda a bateria de obstáculos que o sistema português introduz à inovação a este nível. Tudo começa nos requisitos de formação, onde a exigência de 5000 assinaturas para inscrever um partido, já de si invulgar e desproporcional do ponto de vista comparativo,* foi aumentada para 7500 em 2003. Prolonga-se através das regras existentes que permitem a extinção de um partido, um acto, de resto, de tal gravidade e importância que só circunstâncias extremas deveriam autorizar. Mas em Portugal é possível fazê-lo, por exemplo, em relação a partidos com menos de 5000 filiados, não só um aumento em relação à legislação que vigorava anteriormente, mas também, de resto, uma anomalia do ponto de vista comparativo: segundo um estudo da Comissão de Veneza, apenas a Moldávia, a Estónia e a Ucrânia (dois deles, semidemocracias na melhor das hipóteses) têm disposições deste género. As subvenções públicas à actividade partidária estão limitadas a partidos com deputados ou, em alternativa, mais do que 50.000 votos. Mas desde 1991 que uma e outra coisa são equivalentes funcionais. O crescimento exponencial das subvenções públicas à actividade partidária nos últimos anos não fez mais do que aumentar a assimetria entre os partidos com representação parlamentar e os restantes. O nosso sistema eleitoral, consequência do método de Hondt e do número de círculos de pequena dimensão, é, entre os sistemas ditos "proporcionais", um dos menos permissivos à entrada de novos partidos. Só no que respeita à possibilidade de apresentação de candidaturas sem um número mínimo de assinaturas o nosso sistema é relativamente aberto. Mas se juntarmos a tudo o resto a proibição de partidos que partilham determinadas ideologias (quando a ênfase deveria talvez ser menos nas ideias que nos métodos de acção política) ou a controversa regulação da organização interna dos partidos, o diagnóstico final é simples: como assinala Lauri Karvonen num estudo de 2007 na revista Party Politics, Portugal é uma das democracias consolidadas onde a rigidez da legislação sobre partidos e a intensidade da regulação estatal, em termos do número e natureza de restrições e sanções, mais se assemelha à existente em regimes semi-democráticos ou mesmo ditatoriais.

Não há razões para se terem excessivas ilusões sobre o contributo que novos partidos ou candidaturas independentes possam dar ao funcionamento da nossa democracia, nem para se ignorarem os méritos da estabilidade. Mas também ninguém pode ter ilusões sobre o que está por detrás da singular rigidez das nossas instituições deste ponto de vista: quanto mais favorável é a estrutura de oportunidades para a mudança no sistema de partidos numa dada sociedade, mais os partidos existentes recorrem àquilo que está ao seu alcance - as instituições - para neutralizar esse potencial de mudança e estabelecer, assim, uma lei dos mais fortes. As alterações recentes no sistema eleitoral autárquico e as que se anunciam no das eleições legislativas autorizam, de resto, uma leitura semelhante. Mas apesar de tudo, o sistema eleitoral, não sendo nunca neutro nas suas consequências, tem pelo menos o mérito de condicionar mais as probabilidades de sucesso eleitoral de novos partidos do que o seu simples surgimento, a sua sobrevivência ou a discussão das ideias que eles tenham para apresentar. Já o resto - uma legislação dirigista, restritiva e enviesada - serve muito mais os interesses dos partidos estabelecidos do que os dos eleitores.


*Cf. W. C. Müller e U. Sieberer (2006), "Party Law", in R. S. Katz e W. Crotty (eds.), Handbook of Party Politics, London: Sage.

segunda-feira, janeiro 07, 2008

Liberalismo de pacotilha

Os melhores colunistas e comentadores dos jornais portugueses andam por estes dias algo irritados com a crescente regulação dos comportamentos individuais pelo Estado ou até, simplesmente, com o esforço para efectivamente sancionar violações de regras já existentes. A coisa vai desde a proibição de fumar em espaços públicos onde não se consiga efectivamente separar fumadores de não fumadores até ao papel usado para embrulhar as castanhas assadas, passando pelos métodos de fabrico e venda das bolas-de-berlim. A irritação que isto suscita nem sequer é recente: ela já tinha caracterizado as reacções públicas aos radares instalados nas ruas de Lisboa, aos parquímetros ou ao (mitológico) fim dos joaquinzinhos às mãos da União Europeia. Mas, apesar da enorme diversidade dos pretextos, são três, e apenas três, os argumentos a que mais frequentemente recorrem os que se dizem incomodados com estas coisas.

O primeiro é utilizado pelos autoproclamados defensores do "património cultural". Há dias circulava uma petição onde, a propósito de uma alegada proibição de servir cafés em chávenas de porcelana, se invocavam ameaças à "cultura" e à "tradição", esmagadas pela fúria normalizadora e moralizadora da ASAE. O facto de essa proibição nunca ter realmente existido já seria um indicador interessante do grau de racionalidade do argumento, mas nem é o único. Quando há uns anos se discutia uma possível diminuição da taxa de alcoolemia, os empresários dos sectores da restauração e vitivinícola invocavam, com surpreendentes preocupações antropológicas, a secular "cultura do vinho" em Portugal como algo que seria destruído por semelhante medida. Nada impede que aqueles cujos interesses são afectados por determinadas leis utilizem a retórica que muito bem entendam para esconder os argumentos mais absurdos e obviamente interesseiros, mas nada obriga a que os levemos a sério. E não consigo afastar a ideia, porventura injusta, que mesmo aqueles que desinteressadamente invocam argumentos "culturais" a propósito destes assuntos são um pouco como aqueles turistas do Norte da Europa que nos visitam todos os anos: o "pitoresco" é muito giro para visitar e saber que existe, desde que sejam os outros a levar com ele todos os dias.

Um segundo argumento é aquele que vê a proibição pelo Estado de determinados comportamentos individuais como um invariável atentado à liberdade, ou até um primeiro passo na abolição de direitos políticos fundamentais. Ao invocar-se a este respeito uma concepção liberal da autonomia individual e do papel do Estado, até se dá a este argumento uma embalagem sedutora. O problema é que estes liberais não devem ter lido o seu John Stuart Mill até ao fim. Para o liberalismo, cada indivíduo é o melhor juiz dos seus próprios interesses, e não deve caber ao Estado proibir determinados comportamentos, mesmo que eles possam ter consequências nocivas para aqueles que os adoptam. O uso da coerção nestas circunstâncias, mesmo com as melhores intenções, pode e provavelmente deve ser visto como paternalista e contrário à liberdade. Mas até os libertários reconhecem, seguindo Mill, que esse raciocínio se aplica exclusivamente aos comportamentos que não têm consequências nocivas para os outros. Quando essas consequências existem - como é manifestamente o caso do fumo em locais públicos, do estacionamento selvagem ou da condução sob efeito do álcool ou em excesso de velocidade - a invocação da liberdade individual como justificação para a não intervenção do Estado é insustentável. E é até possível contemplar que se proíbam comportamentos que têm consequências nocivas exclusivamente para aqueles que os adoptam sem que isso implique necessariamente uma colisão com a liberdade de escolha individual. Como explicava recentemente Richard Posner a propósito da proibição da venda de alimentos com gorduras sintéticas em Nova Iorque, não é preciso aderirmos a uma concepção paternalista e moralista do papel do Estado para compreendermos como, para os cidadãos, aceder a toda a informação necessária para fazer escolhas autónomas e informadas pode ser excessivamente oneroso. Por exemplo, esperar que os cidadãos saibam exactamente os riscos associados à toma de todos os medicamentos que as farmacêuticas queiram colocar no mercado é obviamente irrealista, e é por isso mesmo que delegamos decisões sobre essa matéria em agências reguladoras e em especialistas. Da mesma forma, delegar no Estado a responsabilidade de proibir determinados tipos de produtos, alimentos e modos da sua produção e confecção não contraria necessariamente o exercício de liberdades individuais, até porque, nas democracias, os termos dessa delegação podem ser revistos periodicamente. Os liberais, antigos e novos, têm assuntos bem mais graves com que se preocuparem na sociedade portuguesa.

Resta um terceiro argumento, o dos fatalistas. Estes até desejariam que os portugueses fossem mais ou menos civilizados e capazes de imaginar que as regras não são apenas para os outros. Contudo, julgam ser tal objectivo impossível, e muito menos por decreto. O que seria bom, afinal, era que fôssemos como os "anglo-saxónicos", que se regem por normas implícitas de comportamento e convivência e que partilham uma cultura cívica, em vez de estarem sujeitos a violentas e potencialmente ineficazes sanções legais. Mas suponho que estes fatalistas nunca terão tentado entrar com um carro no centro de Londres, estacioná-lo em segunda fila em Frankfurt ou deixá-lo parado em frente a um terminal em JFK "só um bocadinho que estou à espera de uma pessoa". Se o tivessem feito, teriam talvez ficado com dúvidas sobre aquilo que realmente causa o comportamento "civilizado": a cultura cívica, ou, pelo contrário, instituições, regras e um aparelho coercivo disposto a aplicá-las sem contemplações. Quem tenha vivido algum tempo nestas sociedades terá certamente verificado como pessoas de todas as culturas, "cívicas" ou não "cívicas", se civilizam com uma rapidez surpreendente.

O moralismo com que a legislação sobre o tabaco é apresentada por alguns dos seus defensores incomoda-me, e o mesmo sucede em relação ao crescente espalhafato da actuação da ASAE. Mas incomoda-me ainda mais verificar como pessoas que julgamos serem sensatas se revelam, neste caso, totalmente incapazes de se posicionarem sobre estes temas sem ser com um absolutamente transparente egoísmo, ainda por cima mal disfarçado de uma espécie de liberalismo de pacotilha, ele próprio moralista e paternalista, incapaz de imaginar que aqueles que querem apenas um pouco menos de caos e um pouco mais de respeito nas suas vidas quotidianas também amam a liberdade. Mas suponho que, num certo sentido, isso acaba por confirmar em parte os argumentos dos fatalistas: quando são os principais responsáveis pela aplicação das regras a minar a sua legitimidade no primeiro momento em que elas se aplicam a eles próprios, tal como sucedeu com a argumentação patética do director do ASAE no caso do "fumo do casino", que mais poderíamos esperar?