terça-feira, dezembro 30, 2008

A crise e a política

Há quatro meses, a desvantagem dos trabalhistas britânicos no Governo em relação aos conservadores, em termos de intenções de voto, andava pelos 15 pontos percentuais. Hoje encontra-se reduzida a cerca de cinco pontos. Em França, a popularidade de Nicolas Sarkozy, que se vinha afundando desde finais de 2007, sofreu uma súbita recuperação desde Setembro passado. Em Espanha, apesar das sondagens mostrarem um declínio acentuado das avaliações sobre o estado da economia desde o início do ano, o último barómetro de Outubro do Centro de Investigaciones Sociológicas mostra que a descida das intenções de voto no partido do Governo parece ter sido estancada. Os exemplos poderiam multiplicar-se e Portugal não é excepção. Uma sondagem recente mostra que, apesar de mais de dois terços dos eleitores considerarem que o estado da economia piorou no último ano, as intenções de voto no PS se mantêm relativamente estáveis e as avaliações da actuação quer do Governo quer do primeiro-ministro sofreram melhorias sensíveis desde Outubro. E há até sondagens que indicam uma subida nas intenções de voto no partido de Governo desde Setembro passado. O aparecimento dos meses de Setembro e de Outubro como pontos de viragem é repetido e não parece ser ocasional. O que eles têm de especial é evidente: estes foram os meses em que a crise financeira internacional se revelou em todo o seu horrível esplendor.

Que relação poderá haver entre esta crise e a popularidade dos governos? Por um lado, as causas - reais ou apercebidas - da crise podem estar a afectar a relação entre a economia e o comportamento eleitoral. A hipótese mais testada e confirmada na investigação sobre o tema é a de que os eleitores castigam os governos por maus desempenhos económicos. Contudo, a magnitude desses efeitos parece variar muito de acordo com a clareza com que a responsabilidade pelo desempenho económico pode ser atribuída aos governos. Em contextos onde a margem de manobra dos governos para afectar o desempenho da economia é menor, os eleitores tendem, sensatamente, a desvalorizar esse desempenho quando avaliam os partidos no Governo. É por isso que, por exemplo, os efeitos da economia no voto tendem a ser maiores em contextos de governos maioritários monopartidários do que em governos minoritários ou de coligação. E, mais próximo do tema que nos interessa aqui hoje, parece haver uma tendência, como mostra o politólogo Timothy Hellwig numa série de estudos recentes, para que os países cujas economias e mercados são objectivamente mais abertos (em que importações e exportações ou fluxos de capital representam uma parcela maior do seu produto interno bruto), ou onde os eleitores tendem a acreditar mais nos efeitos da globalização, sejam também aqueles onde a relação entre economia doméstica e os resultados eleitorais é mais ténue. Deste ponto de vista, a crise financeira internacional fez vingar a noção de que o que vem sucedendo nas economias nacionais está a ser determinado por factores que, em grande medida, estão fora do controlo dos governos. Nos próximos tempos, não se espera nada de bom - pelo contrário - para os indicadores económicos fundamentais que costumam afectar o desempenho eleitoral dos governos nas democracias industrializadas. Mas esses indicadores poderão ter, em eleições próximas, efeitos bem mais mitigados do que o habitual. Os governos, especialmente naqueles países onde os dados da economia eram mais negativos, podem agora usar a crise internacional para serem parcialmente isentados de responsabilidades aos olhos das suas opiniões públicas.

Contudo, não é apenas pelo lado das causas da crise, e pela forma como elas ajudam a obscurecer a responsabilidade pela economia, que a posição dos governos vem sendo fortalecida. As consequências da crise e as - reais ou alegadas - soluções para ela também ajudam. Em muitos países, temas não-económicos como a lei e a ordem, o ambiente ou os direitos das minorias vinham ganhando importância crescente e permitindo que novos partidos minassem as bases eleitorais dos partidos do centro. Mas o "estado de emergência" económico que se viverá nos próximos tempos limitará certamente a saliência de quaisquer outros assuntos e dificultará a tarefa desses novos partidos. Para além disso, as soluções para a crise que emergem de todo o lado são, aparentemente, convergentes: intervenção dos governos nos mercados financeiros, investimentos e estímulos públicos, salvamento das indústrias em risco de colapso e aumento das despesas em apoio aos sectores sociais em risco. Para as oposições, especialmente as de centro-direita, defender qualquer coisa que pareça diferente disto começa a parecer cada vez mais suicidário. E para os governos, especialmente os de centro-esquerda, a oportunidade para reencontrar bases de apoio previamente alienadas por políticas de ortodoxia orçamental é demasiado boa para ser perdida. Se a isto adicionarmos o pânico social trazido por alguns aspectos desta crise e o reflexo imediato que ele tem em termos do aumento da confiança nos governos e do apoio a soluções de estabilidade política, é fácil verificar como as oposições têm a sua vida dificultada para os próximos tempos.

"A longo prazo, estamos todos mortos", como dizia alguém cuja merecida reputação parece ter crescido abruptamente nos últimos meses. Mas, a curto prazo, as consequências políticas da crise já são visíveis. Por um lado, ela trouxe boas notícias para muitos governos europeus que estavam em acentuada crise de popularidade e que recebem assim um balão de oxigénio. Por outro lado, ela vem neutralizar os mecanismos de responsabilização dos governos pelo seu desempenho, limitar o espaço de contestação política e diminuir as possibilidades de alternância. Se estas são boas notícias é que já não estou tão seguro.

terça-feira, dezembro 09, 2008

O sistema eleitoral, outra vez

Uma das actividades favoritas dos partidos políticos portugueses é discutir possíveis reformas do sistema eleitoral para a Assembleia da República. No passado dia 4 de Dezembro, o PS promoveu mais um desses debates, desta vez em torno de uma proposta solicitada pelos socialistas a três politólogos - André Freire, Manuel Meirinho e Diogo Moreira - onde se defendia, entre outras coisas, a criação de um círculo eleitoral nacional e a introdução do chamado voto preferencial (permitindo aos eleitores exprimir a preferência não apenas por um partido mas também por deputados desse partido). Não vou discutir os méritos ou deméritos da proposta, nem sequer abordar as razões pelas quais, a acreditar nos jornais, essa proposta deverá ter falecido logo nessa quinta-feira. A questão mais interessante, a meu ver, é outra: por que razão se anda sempre a discutir este assunto? Arrisco três hipóteses.

A primeira coisa que pode tornar este tema tão atraente para a classe política portuguesa é o facto de 99,9 por cento dos portugueses - e estimo por baixo - não compreenderem praticamente nada do que se está a discutir. O caro leitor preferia ter listas fechadas e bloqueadas, fechadas e não bloqueadas ou abertas? Gosta do método da média mais alta D'Hondt, ou acha que as quotas de Hare ou de Droop seriam preferíveis? Concordaria com a introdução de cláusulas-barreira? E com a aplicação do apparentement aos círculos primários? Se conseguiu responder a estas perguntas, parabéns. Mas saiba que pertence a uma ínfima minoria. O problema, de resto, está longe de ser português. Segundo julgo saber, a última vez que uma proposta de reforma eleitoral foi submetida a referendo foi na Roménia onde, há cerca de um ano, se perguntou aos eleitores se "estavam de acordo com a eleição de todos os deputados e senadores em círculos uninominais por uma maioria a duas voltas". Pergunta simples. Mas mesmo com o referendo a decorrer em simultâneo com a eleição dos primeiros deputados romenos para o Parlamento Europeu, 74 por cento dos eleitores não se dignaram a comparecer nas urnas. Para os membros da classe política, a oportunidade de discutir assuntos que tornam os eleitores incapazes de os responsabilizar num sentido ou noutro é imperdível, um verdadeiro oásis no meio de uma multiplicidade de outros temas - economia, emprego, ambiente, aborto, taxas de juro - em relação aos quais qualquer eleitor julga poder formar um juízo qualquer na base dos seus valores ou da sua experiência quotidiana. A brutal assimetria de informação que se cria entre os eleitores e os eleitos quando se discutem temas sobre os quais os segundos são os maiores e quase únicos especialistas - trata-se, afinal, das regras através das quais adquiriram o seu cargo - deve parecer demasiado boa para não aproveitar o mais possível.

A segunda coisa que torna este assunto atraente para a classe política é o facto de permitir que ela sinalize a sua preocupação com a "qualidade da democracia", a "aproximação entre deputados e eleitores" e uma série de outros temas em relação aos quais, aparentemente e em abstracto, todos estamos de acordo. Para os partidos, especialmente os grandes partidos com ambições de governo, é frequentemente preferível conduzir o debate político para os chamados temas de "valência" em desfavor dos chamados temas "posicionais". Nos segundos - temas como a imigração ou o peso do Estado na economia, só para dar dois entre muitos exemplos possíveis - os eleitores têm diferentes preferências, estão divididos e o mesmo sucede, frequentemente, com os próprios partidos. Nos primeiros, contudo, essas divisões desaparecem, e tudo passa a depender da capacidade de um partido se associar a objectivos universalmente aprovados. Ninguém quer "mais crime" ou "mais corrupção". E todos querem "melhor democracia". Para que isto funcione como os partidos desejam, o ponto anterior é fundamental: se os detalhes sobre como supostamente se obtém "melhor democracia" forem totalmente incompreensíveis para o eleitor comum, as divisões nunca emergem, e tudo se pode passar no domínio da mera associação de partidos a "bandeiras" e "símbolos" puramente abstractos, coisas como "representatividade", "aproximação entre eleitores e eleitos" ou "governabilidade".

Finalmente, o tema da reforma eleitoral tem uma vantagem adicional para os partidos. Como sucede com outras regras básicas na maior parte das democracias, passar da discussão para a concretização das reformas eleitorais é algo que raramente está ao alcance de uma única força política. As regras que exigem a aprovação destas reformas por maiorias qualificadas impõem o acordo entre pelo menos dois partidos, impedindo que o vencedor de uma eleição modifique as regras com o objectivo de se perpetuar no poder. Contudo, as maiorias qualificadas acabam por servir um propósito adicional. Se um partido político desejar declarar perante os eleitores a sua intenção de "melhorar a democracia" sem ter de enfrentar as incertezas decorrentes de uma mudança real do sistema eleitoral e as suas consequências para aquilo que realmente conta - a distribuição de poder - basta-lhe propor algo que sabe ser inaceitável para os restantes partidos com os quais teria de negociar a sua aprovação. Segue-se um jogo de "passa-culpas", no qual cada partido tenta marcar o máximo de pontos possíveis enquanto "reformista" e "democrata" enquanto se espera que a ignorância dos eleitores sobre os detalhes da coisa impeça que compreendam o que está realmente a suceder.

Não censuro os politólogos envolvidos na mais recente proposta, nem defendo que as pessoas que ganham a vida a estudar estes temas se alheiem do debate político sobre eles. Eu próprio, confesso, com alguma dose de arrependimento, já subscrevi há alguns anos uma proposta de reforma do sistema eleitoral. Mas importa não perder de vista aquilo que alguma distância sanitária em relação a estes processos ajuda a perceber. As discussões a que assistimos nos últimos 30 anos sobre a reforma do sistema eleitoral têm, por tudo o que disse anteriormente, o seu quê de farsa. Provavelmente, o sistema só mudará se houver uma pressão pública imensa (e por isso implausível) nesse sentido ou, em alternativa, se PS e PSD acharem que ela é indispensável para a manutenção da sua hegemonia em relação aos pequenos partidos. E importa lembrar que, se é verdade que há casos de mudanças globalmente positivas - a Nova Zelândia, por exemplo -, também é verdade que a Itália fica bem mais perto daqui: a mudança, se ocorrer, pode ser para nada, para pior, ou até para muito pior.