O sistema eleitoral, outra vez
Uma das actividades favoritas dos partidos políticos portugueses é discutir possíveis reformas do sistema eleitoral para a Assembleia da República. No passado dia 4 de Dezembro, o PS promoveu mais um desses debates, desta vez em torno de uma proposta solicitada pelos socialistas a três politólogos - André Freire, Manuel Meirinho e Diogo Moreira - onde se defendia, entre outras coisas, a criação de um círculo eleitoral nacional e a introdução do chamado voto preferencial (permitindo aos eleitores exprimir a preferência não apenas por um partido mas também por deputados desse partido). Não vou discutir os méritos ou deméritos da proposta, nem sequer abordar as razões pelas quais, a acreditar nos jornais, essa proposta deverá ter falecido logo nessa quinta-feira. A questão mais interessante, a meu ver, é outra: por que razão se anda sempre a discutir este assunto? Arrisco três hipóteses.
A primeira coisa que pode tornar este tema tão atraente para a classe política portuguesa é o facto de 99,9 por cento dos portugueses - e estimo por baixo - não compreenderem praticamente nada do que se está a discutir. O caro leitor preferia ter listas fechadas e bloqueadas, fechadas e não bloqueadas ou abertas? Gosta do método da média mais alta D'Hondt, ou acha que as quotas de Hare ou de Droop seriam preferíveis? Concordaria com a introdução de cláusulas-barreira? E com a aplicação do apparentement aos círculos primários? Se conseguiu responder a estas perguntas, parabéns. Mas saiba que pertence a uma ínfima minoria. O problema, de resto, está longe de ser português. Segundo julgo saber, a última vez que uma proposta de reforma eleitoral foi submetida a referendo foi na Roménia onde, há cerca de um ano, se perguntou aos eleitores se "estavam de acordo com a eleição de todos os deputados e senadores em círculos uninominais por uma maioria a duas voltas". Pergunta simples. Mas mesmo com o referendo a decorrer em simultâneo com a eleição dos primeiros deputados romenos para o Parlamento Europeu, 74 por cento dos eleitores não se dignaram a comparecer nas urnas. Para os membros da classe política, a oportunidade de discutir assuntos que tornam os eleitores incapazes de os responsabilizar num sentido ou noutro é imperdível, um verdadeiro oásis no meio de uma multiplicidade de outros temas - economia, emprego, ambiente, aborto, taxas de juro - em relação aos quais qualquer eleitor julga poder formar um juízo qualquer na base dos seus valores ou da sua experiência quotidiana. A brutal assimetria de informação que se cria entre os eleitores e os eleitos quando se discutem temas sobre os quais os segundos são os maiores e quase únicos especialistas - trata-se, afinal, das regras através das quais adquiriram o seu cargo - deve parecer demasiado boa para não aproveitar o mais possível.
A segunda coisa que torna este assunto atraente para a classe política é o facto de permitir que ela sinalize a sua preocupação com a "qualidade da democracia", a "aproximação entre deputados e eleitores" e uma série de outros temas em relação aos quais, aparentemente e em abstracto, todos estamos de acordo. Para os partidos, especialmente os grandes partidos com ambições de governo, é frequentemente preferível conduzir o debate político para os chamados temas de "valência" em desfavor dos chamados temas "posicionais". Nos segundos - temas como a imigração ou o peso do Estado na economia, só para dar dois entre muitos exemplos possíveis - os eleitores têm diferentes preferências, estão divididos e o mesmo sucede, frequentemente, com os próprios partidos. Nos primeiros, contudo, essas divisões desaparecem, e tudo passa a depender da capacidade de um partido se associar a objectivos universalmente aprovados. Ninguém quer "mais crime" ou "mais corrupção". E todos querem "melhor democracia". Para que isto funcione como os partidos desejam, o ponto anterior é fundamental: se os detalhes sobre como supostamente se obtém "melhor democracia" forem totalmente incompreensíveis para o eleitor comum, as divisões nunca emergem, e tudo se pode passar no domínio da mera associação de partidos a "bandeiras" e "símbolos" puramente abstractos, coisas como "representatividade", "aproximação entre eleitores e eleitos" ou "governabilidade".
Finalmente, o tema da reforma eleitoral tem uma vantagem adicional para os partidos. Como sucede com outras regras básicas na maior parte das democracias, passar da discussão para a concretização das reformas eleitorais é algo que raramente está ao alcance de uma única força política. As regras que exigem a aprovação destas reformas por maiorias qualificadas impõem o acordo entre pelo menos dois partidos, impedindo que o vencedor de uma eleição modifique as regras com o objectivo de se perpetuar no poder. Contudo, as maiorias qualificadas acabam por servir um propósito adicional. Se um partido político desejar declarar perante os eleitores a sua intenção de "melhorar a democracia" sem ter de enfrentar as incertezas decorrentes de uma mudança real do sistema eleitoral e as suas consequências para aquilo que realmente conta - a distribuição de poder - basta-lhe propor algo que sabe ser inaceitável para os restantes partidos com os quais teria de negociar a sua aprovação. Segue-se um jogo de "passa-culpas", no qual cada partido tenta marcar o máximo de pontos possíveis enquanto "reformista" e "democrata" enquanto se espera que a ignorância dos eleitores sobre os detalhes da coisa impeça que compreendam o que está realmente a suceder.
Não censuro os politólogos envolvidos na mais recente proposta, nem defendo que as pessoas que ganham a vida a estudar estes temas se alheiem do debate político sobre eles. Eu próprio, confesso, com alguma dose de arrependimento, já subscrevi há alguns anos uma proposta de reforma do sistema eleitoral. Mas importa não perder de vista aquilo que alguma distância sanitária em relação a estes processos ajuda a perceber. As discussões a que assistimos nos últimos 30 anos sobre a reforma do sistema eleitoral têm, por tudo o que disse anteriormente, o seu quê de farsa. Provavelmente, o sistema só mudará se houver uma pressão pública imensa (e por isso implausível) nesse sentido ou, em alternativa, se PS e PSD acharem que ela é indispensável para a manutenção da sua hegemonia em relação aos pequenos partidos. E importa lembrar que, se é verdade que há casos de mudanças globalmente positivas - a Nova Zelândia, por exemplo -, também é verdade que a Itália fica bem mais perto daqui: a mudança, se ocorrer, pode ser para nada, para pior, ou até para muito pior.
A primeira coisa que pode tornar este tema tão atraente para a classe política portuguesa é o facto de 99,9 por cento dos portugueses - e estimo por baixo - não compreenderem praticamente nada do que se está a discutir. O caro leitor preferia ter listas fechadas e bloqueadas, fechadas e não bloqueadas ou abertas? Gosta do método da média mais alta D'Hondt, ou acha que as quotas de Hare ou de Droop seriam preferíveis? Concordaria com a introdução de cláusulas-barreira? E com a aplicação do apparentement aos círculos primários? Se conseguiu responder a estas perguntas, parabéns. Mas saiba que pertence a uma ínfima minoria. O problema, de resto, está longe de ser português. Segundo julgo saber, a última vez que uma proposta de reforma eleitoral foi submetida a referendo foi na Roménia onde, há cerca de um ano, se perguntou aos eleitores se "estavam de acordo com a eleição de todos os deputados e senadores em círculos uninominais por uma maioria a duas voltas". Pergunta simples. Mas mesmo com o referendo a decorrer em simultâneo com a eleição dos primeiros deputados romenos para o Parlamento Europeu, 74 por cento dos eleitores não se dignaram a comparecer nas urnas. Para os membros da classe política, a oportunidade de discutir assuntos que tornam os eleitores incapazes de os responsabilizar num sentido ou noutro é imperdível, um verdadeiro oásis no meio de uma multiplicidade de outros temas - economia, emprego, ambiente, aborto, taxas de juro - em relação aos quais qualquer eleitor julga poder formar um juízo qualquer na base dos seus valores ou da sua experiência quotidiana. A brutal assimetria de informação que se cria entre os eleitores e os eleitos quando se discutem temas sobre os quais os segundos são os maiores e quase únicos especialistas - trata-se, afinal, das regras através das quais adquiriram o seu cargo - deve parecer demasiado boa para não aproveitar o mais possível.
A segunda coisa que torna este assunto atraente para a classe política é o facto de permitir que ela sinalize a sua preocupação com a "qualidade da democracia", a "aproximação entre deputados e eleitores" e uma série de outros temas em relação aos quais, aparentemente e em abstracto, todos estamos de acordo. Para os partidos, especialmente os grandes partidos com ambições de governo, é frequentemente preferível conduzir o debate político para os chamados temas de "valência" em desfavor dos chamados temas "posicionais". Nos segundos - temas como a imigração ou o peso do Estado na economia, só para dar dois entre muitos exemplos possíveis - os eleitores têm diferentes preferências, estão divididos e o mesmo sucede, frequentemente, com os próprios partidos. Nos primeiros, contudo, essas divisões desaparecem, e tudo passa a depender da capacidade de um partido se associar a objectivos universalmente aprovados. Ninguém quer "mais crime" ou "mais corrupção". E todos querem "melhor democracia". Para que isto funcione como os partidos desejam, o ponto anterior é fundamental: se os detalhes sobre como supostamente se obtém "melhor democracia" forem totalmente incompreensíveis para o eleitor comum, as divisões nunca emergem, e tudo se pode passar no domínio da mera associação de partidos a "bandeiras" e "símbolos" puramente abstractos, coisas como "representatividade", "aproximação entre eleitores e eleitos" ou "governabilidade".
Finalmente, o tema da reforma eleitoral tem uma vantagem adicional para os partidos. Como sucede com outras regras básicas na maior parte das democracias, passar da discussão para a concretização das reformas eleitorais é algo que raramente está ao alcance de uma única força política. As regras que exigem a aprovação destas reformas por maiorias qualificadas impõem o acordo entre pelo menos dois partidos, impedindo que o vencedor de uma eleição modifique as regras com o objectivo de se perpetuar no poder. Contudo, as maiorias qualificadas acabam por servir um propósito adicional. Se um partido político desejar declarar perante os eleitores a sua intenção de "melhorar a democracia" sem ter de enfrentar as incertezas decorrentes de uma mudança real do sistema eleitoral e as suas consequências para aquilo que realmente conta - a distribuição de poder - basta-lhe propor algo que sabe ser inaceitável para os restantes partidos com os quais teria de negociar a sua aprovação. Segue-se um jogo de "passa-culpas", no qual cada partido tenta marcar o máximo de pontos possíveis enquanto "reformista" e "democrata" enquanto se espera que a ignorância dos eleitores sobre os detalhes da coisa impeça que compreendam o que está realmente a suceder.
Não censuro os politólogos envolvidos na mais recente proposta, nem defendo que as pessoas que ganham a vida a estudar estes temas se alheiem do debate político sobre eles. Eu próprio, confesso, com alguma dose de arrependimento, já subscrevi há alguns anos uma proposta de reforma do sistema eleitoral. Mas importa não perder de vista aquilo que alguma distância sanitária em relação a estes processos ajuda a perceber. As discussões a que assistimos nos últimos 30 anos sobre a reforma do sistema eleitoral têm, por tudo o que disse anteriormente, o seu quê de farsa. Provavelmente, o sistema só mudará se houver uma pressão pública imensa (e por isso implausível) nesse sentido ou, em alternativa, se PS e PSD acharem que ela é indispensável para a manutenção da sua hegemonia em relação aos pequenos partidos. E importa lembrar que, se é verdade que há casos de mudanças globalmente positivas - a Nova Zelândia, por exemplo -, também é verdade que a Itália fica bem mais perto daqui: a mudança, se ocorrer, pode ser para nada, para pior, ou até para muito pior.
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