Os custos da democracia
Segundo o PSD, as declarações de Manuela Ferreira Leite da semana passada - onde defendia a suspensão da democracia durante seis meses para "pôr tudo na ordem" e fazer as reformas necessárias - foram uma ironia dirigida contra o actual Governo. Logo, a questão que vale a pena discutir não é tanto sobre Manuela Ferreira Leite. É sobre nós. Se a ironia era o efeito desejado, por que razão falhou tão completamente? A ironia exige uma contradição entre aquilo que se diz e aquilo que de facto se quer transmitir. Mas para que essa contradição seja evidente para todos, o que é dito tem de ser obviamente deslocado e inaplicável. Mas, pelos vistos, para quem ouviu, nem tanto. A ideia de que a realização das reformas do país só seria possível com a suspensão da democracia pareceu algo que valia a pena debater ou contestar, e não como algo totalmente absurdo ou até vagamente cómico. E isso é que é verdadeiramente interessante.
Esta nossa reacção não significa que sobrevivam em Portugal resquícios significativos de apoio ao autoritarismo. Todos os estudos sobre a opinião pública portuguesa realizados desde meados dos anos 80 mostram que a esmagadora maioria dos cidadãos defende a superioridade da democracia em relação a qualquer das alternativas. Mas parece haver outro tipo de ideias que, após mais de uma década de estagnação económica, começam a ganhar - ou a recuperar - alguma credibilidade em Portugal. Já todos as ouvimos dezenas de vezes. Que a democracia impele os Governos a abandonar objectivos de longo prazo, fazendo com que manipulem a economia para fins eleitoralistas, abdiquem de fazer reformas necessárias e adoptem políticas que acabam por ser inimigas do crescimento económico. Que a democracia impede os Governos de controlar e confrontar os apetites dos grupos de interesses, que passam assim a poder impedir a adopção de políticas que aumentem o bem-estar geral. E, fechando o círculo, a ideia de que são os próprios eleitores, desinformados sobre a realidade e interessados unicamente no que se passa com a sua carteira, que acabam, na sua miopia, por obrigar os Governos a políticas disfuncionais e eleitoralistas. Há até quem recorde os anos áureos do crescimento económico em Portugal - os anos 60 - para mostrar, de forma irrefutável, como o autoritarismo produz, apesar de tudo, melhores resultados económicos. Acreditar nestas ideias não significa, repete-se, que se seja contra a democracia. Mas significa que se acredita que a liberdade e a igualdade políticas vêm acompanhadas de uma importante factura no que respeita à governabilidade e à prosperidade.
Sucede que todas estas crenças assentam em fundações teóricas e empíricas muito débeis. Olhemos, por exemplo, para a questão do crescimento económico. Num artigo publicado este ano no American Journal of Political Science, os economistas Hristos Doucouliagos e Mehmet Ulubasoglu passam em revista 84 estudos diferentes realizados nos últimos 30 anos sobre a relação entre o tipo de regime político e o crescimento económico. A conclusão mais sólida que se pode tirar deste conjunto de estudos é muito simples: não há qualquer relação directa entre o tipo de regime político e o crescimento económico. É certo que a democracia parece produzir vários efeitos indirectos sobre o crescimento, positivos nuns casos (ao aumentar a acumulação de capital humano, por exemplo) e negativos noutros (ao causar um maior peso do Estado, por exemplo). Mas o efeito final parece ser nulo. Por outras palavras, a ideia de que, ao optarmos pela democracia, estamos também a abdicar de regimes que poderiam produzir maior crescimento não tem, pura e simplesmente, qualquer fundamento na base dos dados disponíveis.
A segunda noção - de que as democracias são presas mais fáceis dos interesses particularistas do que as ditaduras - é igualmente problemática. Ela esquece que, nas ditaduras, o interesse mais particularista de todos e que tem ao mesmo tempo maiores probabilidades de vingar sem qualquer controlo é, claro, o do próprio ditador. Nada substitui a democracia como método de controlo desse potencial predador em que qualquer governante se pode transformar. É certo que a aparente cedência do Governo em face dos professores não deixará de ser apontada como exemplo recente das dificuldades dos governos democráticos em face de certos grupos organizados. Mas não creio que tenhamos saído deste processo tão mal como se julga. Precisamente por haver democracia e eleições, o Governo teve incentivos para mobilizar a maioria dos eleitores contra certos interesses organizados. O resultado é que, apesar de tudo, a consciência da insustentável preponderância que os sindicatos chegaram a ter na política educativa e dos privilégios concedidos a alguns segmentos da classe nunca foi tão grande como é hoje, e fornece uma base para quaisquer futuras reformas. E foi também precisamente por haver democracia que a mobilização dos sindicatos e o eco que teve na opinião pública impediu a adopção de um processo de avaliação manifestamente absurdo. Tudo podia ter sido feito melhor? Sem dúvida alguma. Ficámos pior do que estávamos no início? Não creio.
Finalmente, temos os eleitores, esses egoístas e manipuláveis míopes que impelem os Governos à adopção de políticas eleitoralistas e insensatas, voltadas para o curto prazo. Mas a verdade é que muito do que sabemos sobre os eleitores contraria em grande medida esta imagem. Por exemplo, os eleitores parecem ser muito mais atreitos a castigar ou recompensar Governos na base da percepção da situação do país como um todo e em reacção a indicadores objectivos do que na base da sua própria situação financeira pessoal. Para alegados egoístas, não deixa de ser curioso. Também não são tão influenciáveis e inconstantes como se pensa. A maioria, de resto, vota no mesmo partido (ou abstém-se) eleição após eleição, e a maior parte das mudanças que observamos nos resultados eleitorais decorrem de passagens do voto à abstenção (e vice-versa) e só raramente de mudanças de partido. E importa não esquecer que, há cerca de quatro anos, os eleitores portugueses saudaram com alívio a demissão de um Governo que poucos dias antes lhes tinha prometido, para o orçamento do ano seguinte, nada mais e nada menos do que aumentar as pensões e diminuir os impostos. Os eleitores não são tolos, mesmo que por vezes os eleitos pareçam julgar que sim. Devíamos ter mais fé neles e na democracia.
Esta nossa reacção não significa que sobrevivam em Portugal resquícios significativos de apoio ao autoritarismo. Todos os estudos sobre a opinião pública portuguesa realizados desde meados dos anos 80 mostram que a esmagadora maioria dos cidadãos defende a superioridade da democracia em relação a qualquer das alternativas. Mas parece haver outro tipo de ideias que, após mais de uma década de estagnação económica, começam a ganhar - ou a recuperar - alguma credibilidade em Portugal. Já todos as ouvimos dezenas de vezes. Que a democracia impele os Governos a abandonar objectivos de longo prazo, fazendo com que manipulem a economia para fins eleitoralistas, abdiquem de fazer reformas necessárias e adoptem políticas que acabam por ser inimigas do crescimento económico. Que a democracia impede os Governos de controlar e confrontar os apetites dos grupos de interesses, que passam assim a poder impedir a adopção de políticas que aumentem o bem-estar geral. E, fechando o círculo, a ideia de que são os próprios eleitores, desinformados sobre a realidade e interessados unicamente no que se passa com a sua carteira, que acabam, na sua miopia, por obrigar os Governos a políticas disfuncionais e eleitoralistas. Há até quem recorde os anos áureos do crescimento económico em Portugal - os anos 60 - para mostrar, de forma irrefutável, como o autoritarismo produz, apesar de tudo, melhores resultados económicos. Acreditar nestas ideias não significa, repete-se, que se seja contra a democracia. Mas significa que se acredita que a liberdade e a igualdade políticas vêm acompanhadas de uma importante factura no que respeita à governabilidade e à prosperidade.
Sucede que todas estas crenças assentam em fundações teóricas e empíricas muito débeis. Olhemos, por exemplo, para a questão do crescimento económico. Num artigo publicado este ano no American Journal of Political Science, os economistas Hristos Doucouliagos e Mehmet Ulubasoglu passam em revista 84 estudos diferentes realizados nos últimos 30 anos sobre a relação entre o tipo de regime político e o crescimento económico. A conclusão mais sólida que se pode tirar deste conjunto de estudos é muito simples: não há qualquer relação directa entre o tipo de regime político e o crescimento económico. É certo que a democracia parece produzir vários efeitos indirectos sobre o crescimento, positivos nuns casos (ao aumentar a acumulação de capital humano, por exemplo) e negativos noutros (ao causar um maior peso do Estado, por exemplo). Mas o efeito final parece ser nulo. Por outras palavras, a ideia de que, ao optarmos pela democracia, estamos também a abdicar de regimes que poderiam produzir maior crescimento não tem, pura e simplesmente, qualquer fundamento na base dos dados disponíveis.
A segunda noção - de que as democracias são presas mais fáceis dos interesses particularistas do que as ditaduras - é igualmente problemática. Ela esquece que, nas ditaduras, o interesse mais particularista de todos e que tem ao mesmo tempo maiores probabilidades de vingar sem qualquer controlo é, claro, o do próprio ditador. Nada substitui a democracia como método de controlo desse potencial predador em que qualquer governante se pode transformar. É certo que a aparente cedência do Governo em face dos professores não deixará de ser apontada como exemplo recente das dificuldades dos governos democráticos em face de certos grupos organizados. Mas não creio que tenhamos saído deste processo tão mal como se julga. Precisamente por haver democracia e eleições, o Governo teve incentivos para mobilizar a maioria dos eleitores contra certos interesses organizados. O resultado é que, apesar de tudo, a consciência da insustentável preponderância que os sindicatos chegaram a ter na política educativa e dos privilégios concedidos a alguns segmentos da classe nunca foi tão grande como é hoje, e fornece uma base para quaisquer futuras reformas. E foi também precisamente por haver democracia que a mobilização dos sindicatos e o eco que teve na opinião pública impediu a adopção de um processo de avaliação manifestamente absurdo. Tudo podia ter sido feito melhor? Sem dúvida alguma. Ficámos pior do que estávamos no início? Não creio.
Finalmente, temos os eleitores, esses egoístas e manipuláveis míopes que impelem os Governos à adopção de políticas eleitoralistas e insensatas, voltadas para o curto prazo. Mas a verdade é que muito do que sabemos sobre os eleitores contraria em grande medida esta imagem. Por exemplo, os eleitores parecem ser muito mais atreitos a castigar ou recompensar Governos na base da percepção da situação do país como um todo e em reacção a indicadores objectivos do que na base da sua própria situação financeira pessoal. Para alegados egoístas, não deixa de ser curioso. Também não são tão influenciáveis e inconstantes como se pensa. A maioria, de resto, vota no mesmo partido (ou abstém-se) eleição após eleição, e a maior parte das mudanças que observamos nos resultados eleitorais decorrem de passagens do voto à abstenção (e vice-versa) e só raramente de mudanças de partido. E importa não esquecer que, há cerca de quatro anos, os eleitores portugueses saudaram com alívio a demissão de um Governo que poucos dias antes lhes tinha prometido, para o orçamento do ano seguinte, nada mais e nada menos do que aumentar as pensões e diminuir os impostos. Os eleitores não são tolos, mesmo que por vezes os eleitos pareçam julgar que sim. Devíamos ter mais fé neles e na democracia.
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