O pluralismo político-partidário, segundo a ERC
Há dias, foi conhecida uma deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) que se debruçava sobre o "pluralismo político-partidário no serviço público de televisão" durante o primeiro semestre de 2008. Nesse documento, a ERC socorre-se de uma análise dos noticiários da RTP. Seleccionaram-se 23 dos primeiros 182 dias do ano e identificaram-se, nos vários noticiários emitidos nesses dias, todas as peças onde havia referências ao governo ou a um partido político ou presenças de figuras deles responsáveis. Visionadas as peças (634), fez-se uma contagem do total de "presenças" dos vários actores político-partidários (730). Calculando percentagens por partido, obteve-se o peso relativo de cada um nas notícias da RTP.
Utilizou-se depois um segundo modelo em que essas percentagens são ponderadas por dois factores adicionais. Um deles é a audiência média por segundo de cada peça (apesar do relatório executivo, provavelmente por lapso, afirmar na página 13 que é a sua "duração"). O outro factor é a chamada "valência/tom", ou seja, se a notícia retrata cada agente político de forma positiva ou negativa. O relatório de 2007 explica um pouco melhor o que se quer dizer com isto. Mas como qualquer um de nós constatará se um dia fizer a experiência, é muito difícil determinar, mesmo com protocolos estritos e detalhados, se uma notícia tem um tom favorável ou desfavorável a uma ou outra força política. Especialmente quando se trata da análise de conteúdos onde se combinam o texto, o som e a imagem. E muito especialmente tendo em conta que todos nós temos preferências políticas, e que essas preferências enviesam a nossa análise. Logo, a classificação das notícias exigiu certamente codificadores humanos, que assistiram a cada uma das peças e tiraram conclusões sobre o seu tom de forma independente. Quantos foram? Qual o grau de concordância entre eles, aspecto essencial para perceber se foi possível fazer medições fiáveis? O relatório é omisso sobre isto, tal como é omisso sobre como foram exactamente ponderadas as percentagens inicialmente obtidas. Mas não nos inquietemos demasiado. Como se pode ver nas páginas 21 e 22 do sumário executivo, no Jornal da Tarde, por exemplo, o Governo teve 48,21% de presenças no "modelo simples", e 48,21% de presenças no "modelo ponderado", pelo que a tal ponderação não há-de ser excessivamente importante. E note-se o pormenor das duas casas decimais, aplicadas a um número total de "presenças" de actores político-partidários no Jornal da Tarde nos dias analisados que ascendeu ao grande total de 112.
Seja como for, estes números são depois comparados com aquilo a que ERC chama os "valores de referência", que representam, se bem entendo, aquilo que se considera ser a distribuição "ideal" de presenças para se obter o tal "pluralismo". Esses valores são de 50% para o Governo e o PS, 27,67% para o PSD e não vos maço com o resto. Que conclusões possíveis? Exemplo: "no Jornal da Tarde, o Governo, em conjunto com o PS, obtêm 57,1% no modelo simples (que considera apenas a presença) e 56,9% no modelo ponderado (que pondera a presença com a duração e a valência/tom das peças), ultrapassando o valor referência de 50% atribuído a este conjunto" (pag. 13). Há dezenas de afirmações semelhantes, em que os relatores identificam "diferenças" entre noticiários, "diferenças" entre partidos e "diferenças" entre os valores apurados para os partidos e os "de referência", de onde se retiram variadas recomendações à RTP. Já nem aborreço os leitores com detalhes sobre a possibilidade de muitas destas alegadas diferenças poderem carecer - tendo em conta que se está a usar uma amostra - de significância estatística. O problema fundamental é outro. Porquê 50% para PS+Governo, quando tem mais de metade dos deputados? E mesmo se os valores de referência correspondessem à distribuição de deputados, por que não ter usado os votos? E porquê as últimas eleições, e não a média de várias eleições? E por que não os resultados de sondagens actuais? E se o que está em causa é a "expressão e o confronto das diversas correntes de opinião", por que não dar peso igual a cada partido? E porquê pensar apenas nos partidos, e não em associações, grupos de interesse, minorias étnicas e religiosas, orientações sexuais, géneros, idade ou outra coisa qualquer susceptível de estar relacionada com diferentes preferências e opiniões? Espero que se perceba que estas perguntas são retóricas e que não defendo qualquer um dos métodos anteriores. Elas têm como mero objectivo demonstrar como o exercício é puramente arbitrário e como é simplista a interpretação adoptada pela ERC do conceito de "pluralismo político".
Permito-me fazer três sugestões à ERC, em espírito que, espero, seja interpretado como construtivo. A primeira é que deixe de fazer estudos destes. No máximo, poderia encomendar estudos semelhantes a universidades portuguesas ou até estrangeiras. É possível que, num tema tão complexo, esses estudos também exibam muitos problemas. Mas uma coisa é promover produção de conhecimento e debate público e académico. Outra é implicar directamente um órgão de estado nessas fragilidades e - mais grave ainda - partir delas para condicionar as escolhas dos jornalistas.
A segunda é que dediquem algum tempo a repensar o que significam pluralismo, rigor e imparcialidade. Não vai ser fácil, nem é suposto sê-lo. Mas a transformação dos noticiários e da informação não-diária em "tempos de antena" partidários impostos com critérios simplistas e arbitrários não é certamente a resposta. Ela poderá ter até efeitos negativos sobre a qualidade dos conteúdos noticiosos, tornando-os anódinos e indiferenciados. "Equilíbrio" e "neutralidade" não são a mesma coisa - e são certamente menos importantes - que rigor e objectividade.
Finalmente, tentem pensar noutras coisas para além da política partidária. Uma visita ao site da Ofcom, o congénere britânico da ERC, dará algumas ideias. Encontramos lá estudos sobre acessibilidade e deficiências físicas, publicidade a produtos bancários, obesidade infantil e juvenil, novos conteúdos e suportes tecnológicos, o peso do desporto nas emissões televisivas, a forma como minorias sociais são retratadas na programação, violência televisiva e muitos outros. Nunca com espírito "policial", mas com a intenção de trazer todos estes temas para a agenda pública e gerar informação rigorosa sobre eles. A ERC pode tentar fazer o mesmo. Aqui também se joga muito do que significa "rigor", "pluralismo", "independência" e os direitos, liberdades e garantias das pessoas. E tudo isto é preferível ao policiamento absurdo do cumprimento de percentagens com duas casas decimais.
Utilizou-se depois um segundo modelo em que essas percentagens são ponderadas por dois factores adicionais. Um deles é a audiência média por segundo de cada peça (apesar do relatório executivo, provavelmente por lapso, afirmar na página 13 que é a sua "duração"). O outro factor é a chamada "valência/tom", ou seja, se a notícia retrata cada agente político de forma positiva ou negativa. O relatório de 2007 explica um pouco melhor o que se quer dizer com isto. Mas como qualquer um de nós constatará se um dia fizer a experiência, é muito difícil determinar, mesmo com protocolos estritos e detalhados, se uma notícia tem um tom favorável ou desfavorável a uma ou outra força política. Especialmente quando se trata da análise de conteúdos onde se combinam o texto, o som e a imagem. E muito especialmente tendo em conta que todos nós temos preferências políticas, e que essas preferências enviesam a nossa análise. Logo, a classificação das notícias exigiu certamente codificadores humanos, que assistiram a cada uma das peças e tiraram conclusões sobre o seu tom de forma independente. Quantos foram? Qual o grau de concordância entre eles, aspecto essencial para perceber se foi possível fazer medições fiáveis? O relatório é omisso sobre isto, tal como é omisso sobre como foram exactamente ponderadas as percentagens inicialmente obtidas. Mas não nos inquietemos demasiado. Como se pode ver nas páginas 21 e 22 do sumário executivo, no Jornal da Tarde, por exemplo, o Governo teve 48,21% de presenças no "modelo simples", e 48,21% de presenças no "modelo ponderado", pelo que a tal ponderação não há-de ser excessivamente importante. E note-se o pormenor das duas casas decimais, aplicadas a um número total de "presenças" de actores político-partidários no Jornal da Tarde nos dias analisados que ascendeu ao grande total de 112.
Seja como for, estes números são depois comparados com aquilo a que ERC chama os "valores de referência", que representam, se bem entendo, aquilo que se considera ser a distribuição "ideal" de presenças para se obter o tal "pluralismo". Esses valores são de 50% para o Governo e o PS, 27,67% para o PSD e não vos maço com o resto. Que conclusões possíveis? Exemplo: "no Jornal da Tarde, o Governo, em conjunto com o PS, obtêm 57,1% no modelo simples (que considera apenas a presença) e 56,9% no modelo ponderado (que pondera a presença com a duração e a valência/tom das peças), ultrapassando o valor referência de 50% atribuído a este conjunto" (pag. 13). Há dezenas de afirmações semelhantes, em que os relatores identificam "diferenças" entre noticiários, "diferenças" entre partidos e "diferenças" entre os valores apurados para os partidos e os "de referência", de onde se retiram variadas recomendações à RTP. Já nem aborreço os leitores com detalhes sobre a possibilidade de muitas destas alegadas diferenças poderem carecer - tendo em conta que se está a usar uma amostra - de significância estatística. O problema fundamental é outro. Porquê 50% para PS+Governo, quando tem mais de metade dos deputados? E mesmo se os valores de referência correspondessem à distribuição de deputados, por que não ter usado os votos? E porquê as últimas eleições, e não a média de várias eleições? E por que não os resultados de sondagens actuais? E se o que está em causa é a "expressão e o confronto das diversas correntes de opinião", por que não dar peso igual a cada partido? E porquê pensar apenas nos partidos, e não em associações, grupos de interesse, minorias étnicas e religiosas, orientações sexuais, géneros, idade ou outra coisa qualquer susceptível de estar relacionada com diferentes preferências e opiniões? Espero que se perceba que estas perguntas são retóricas e que não defendo qualquer um dos métodos anteriores. Elas têm como mero objectivo demonstrar como o exercício é puramente arbitrário e como é simplista a interpretação adoptada pela ERC do conceito de "pluralismo político".
Permito-me fazer três sugestões à ERC, em espírito que, espero, seja interpretado como construtivo. A primeira é que deixe de fazer estudos destes. No máximo, poderia encomendar estudos semelhantes a universidades portuguesas ou até estrangeiras. É possível que, num tema tão complexo, esses estudos também exibam muitos problemas. Mas uma coisa é promover produção de conhecimento e debate público e académico. Outra é implicar directamente um órgão de estado nessas fragilidades e - mais grave ainda - partir delas para condicionar as escolhas dos jornalistas.
A segunda é que dediquem algum tempo a repensar o que significam pluralismo, rigor e imparcialidade. Não vai ser fácil, nem é suposto sê-lo. Mas a transformação dos noticiários e da informação não-diária em "tempos de antena" partidários impostos com critérios simplistas e arbitrários não é certamente a resposta. Ela poderá ter até efeitos negativos sobre a qualidade dos conteúdos noticiosos, tornando-os anódinos e indiferenciados. "Equilíbrio" e "neutralidade" não são a mesma coisa - e são certamente menos importantes - que rigor e objectividade.
Finalmente, tentem pensar noutras coisas para além da política partidária. Uma visita ao site da Ofcom, o congénere britânico da ERC, dará algumas ideias. Encontramos lá estudos sobre acessibilidade e deficiências físicas, publicidade a produtos bancários, obesidade infantil e juvenil, novos conteúdos e suportes tecnológicos, o peso do desporto nas emissões televisivas, a forma como minorias sociais são retratadas na programação, violência televisiva e muitos outros. Nunca com espírito "policial", mas com a intenção de trazer todos estes temas para a agenda pública e gerar informação rigorosa sobre eles. A ERC pode tentar fazer o mesmo. Aqui também se joga muito do que significa "rigor", "pluralismo", "independência" e os direitos, liberdades e garantias das pessoas. E tudo isto é preferível ao policiamento absurdo do cumprimento de percentagens com duas casas decimais.
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