Malditas estatísticas
Como assinala o criminólogo Vincent Sacco no seu livro When Crime Waves (2005, Sage Publications), o crime é um dos poucos fenómenos sociais que são discutidos em termos de "ondas". Uma pesquisa no Google News à expressão "onda de" confirma-o plenamente. Para além das ondas "de assaltos", "de violência", "de homicídios", "de furtos" e "de insegurança", só se encontram ondas "de protestos" e "de incêndios". Aqui está, de resto, uma boa maneira de prever a ocorrência de uma onda de criminalidade como aquela em que, alegadamente, Portugal está mergulhado nos últimos tempos. É mais provável que ocorra quando os sindicatos estão de férias, ou seja, quando as águas do protesto estão em repouso à espera da chamada rentrée política. E se a área florestal ardida até Agosto estiver abaixo da média da última década, como sucedeu este ano, estão reunidas as condições ideais para que um tsunami de assaltos, roubos e homicídios inunde o país.
Exagero? Não creio. Os crimes são uma matéria-prima fácil, barata e rentável para a comunicação social. Ocorrem todos os dias (assegurando um fluxo constante de notícias), a informação é fornecida por fontes oficiais que não carecem de verificação (a polícia), têm culpados e inocentes (dramatismo assegurado) e baixa complexidade factual (facilitando o trabalho quer dos jornalistas quer da audiência). Na ausência de outras notícias relevantes durante um período prolongado, as "ondas" facilmente ganham dimensão. Não surpreende, por isso, que uma das coisas que se sabem da investigação sobre a matéria é que a relação entre a real ocorrência de crimes e a sua cobertura pelos meios de comunicação social é, na melhor das hipóteses, ténue. E uma das direcções mais promissoras deste tipo de estudos consiste precisamente em mostrar que a ordem causal pode ser exactamente contrária à que imaginaríamos à partida. Independentemente de reflectirem ou não reais aumentos na criminalidade, as "ondas" podem amplificar a percepção social de que a actividade criminosa está a aumentar, de que é bem sucedida e de que a polícia não a consegue travar. Podem contribuir assim, precisamente, para estimular as decisões individuais de cometer um crime, ao colocarem em causa o efeito dissuasor da lei penal e das forças de segurança.
Significa isto que a criminalidade não é um problema grave em Portugal, ou que estamos proibidos de a discutir? De forma alguma. Mas seria interessante que, pelo meio do arrazoado dos últimos tempos, os "criminólogos" de serviço e os responsáveis políticos e institucionais tivessem assinalado dois factos. O primeiro é que, na base da informação disponível, ninguém faz a mais pequena ideia se a criminalidade grave e violenta aumentou ou diminuiu em Portugal nos anos mais recentes. Quando se comparam dados sobre a frequência de crimes graves e violentos participados às forças policiais (a base das estatísticas oficiais) com dados sobre a vitimação pelos mesmos crimes, medida na base de inquéritos realizados a amostras representativas da população, duas discrepâncias óbvias emergem. Primeiro, há naturalmente menos crimes participados do que aqueles de que as pessoas dizem ter sido realmente vítimas. Segundo, as tendências de evolução de uns e outros são completamente discrepantes. De 1999 para 2004, segundo os relatórios de segurança interna, as ocorrências de crimes graves e violentos participados à polícia aumentaram em quase 30 por cento. Mas as taxas de prevalência desses crimes, medidas através do International Crime Victims Survey das Nações Unidas, permaneceram estáveis de um ano para o outro. Por outras palavras, o que se passou terá sido, ao mesmo tempo, mais e menos grave do que julgamos. Mais grave porque os números oficiais subestimaram a criminalidade real. Menos grave porque o verdadeiro aumento foi na participação dos crimes. A criminalidade real aumentou em 2008? Em rigor, ninguém sabe.
Os "criminólogos" de serviço poderiam também ter mencionado que ninguém sabe se a mudança das leis penais, no número de efectivos policiais, nas taxas de encarceração ou noutra qualquer medida de política criminal produziu este ou aquele efeito na criminalidade em Portugal. Ninguém sabe porque não existe - que eu conheça - qualquer estudo sobre a matéria no nosso país que, com um mínimo de sofisticação metodológica, tenha apurado o efeito desses factores na criminalidade participada ou na vitimação. Fazê-lo é um pouco mais complicado do que olhar para um gráfico e comparar o que aconteceu antes e depois de qualquer coisa. Por um lado, porque a criminalidade é afectada por muitos factores - a situação económica e as desigualdades nos rendimentos, em especial - que não são constantes ao longo do tempo, sendo que as mudanças detectadas podem dever-se a eles e não a outras alegadas causas. Segundo, porque as medidas de política criminal são elas próprias reacções a mudanças na criminalidade, o que dificulta sobremaneira o apuramento dos reais efeitos dessas medidas. Mas juristas, políticos, polícias e "criminólogos" defenderam e atacaram, nas últimas semanas, as mais variadas medidas do passado como se tivessem em seu poder informação rigorosa sobre quais foram as suas consequências. Não têm.
Como em muitos outros domínios, a discussão sobre a política criminal em Portugal encontra-se numa era pré-moderna e pré-científica, carente de dados e análises objectivas sobre o impacto das políticas públicas. A realização de um Inquérito Nacional à Vitimação patrocinado pelo MAI, cujos resultados deverão ser conhecidos em Janeiro, é um primeiríssimo passo na direcção certa. Mas à luz de exemplos recentes, é impossível não ficar algo preocupado. Em Março passado, o Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT) promoveu um inquérito de opinião que mostrava que mais de metade dos portugueses confia nas forças de segurança e que mais de 70 por cento se sentiam seguros. Contudo, em reacção aos resultados, o presidente do OSCOT, Garcia Leandro, acha que "somos um povo excessivamente optimista". E acha também "que a criminalidade organizada vai aumentar" e que os factos recentes lhe têm dado "alguma razão, mesmo que isto ainda não tenha um significado directo nas estatísticas". Ora bolas. Malditas estatísticas.
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