terça-feira, novembro 11, 2008

As diferenças

De todas as coisas que se disseram e escreveram em Portugal sobre as eleições americanas e as suas possíveis consequências, uma das mais intrigantes foi a ideia de que a identidade do vencedor não faria grande diferença, nem de um candidato para outro, nem em relação ao passado recente. Os argumentos utilizados variaram em grau de sofisticação e de aderência à realidade. Por exemplo, há quem insista ainda na ideia de que o discurso dos candidatos - especialmente o do que acabou por vencer - era "retórico", "vazio" ou "vago". Não estou indisponível para tentar compreender este argumento, mas não imagino, especialmente em comparação com os programas partidários portugueses, como isso me será possível. Lendo Blueprint for Change, o livrinho de 43 páginas onde o candidato democrata descrevia as suas propostas, encontramos promessas como "eliminar impostos sobre os rendimentos a todos os idosos que ganham menos de 50.000 dólares por ano", "exigir que os empregadores paguem sete dias de baixa aos seus empregados", "alargar o pagamento de subsídio de desemprego em 12 semanas" ou "aumentar o salário mínimo para 9,5 dólares por hora e indexá-lo à inflação". São apenas quatro exemplos de dezenas de medidas com objectivos quantificados, inequívocos e com relevância directa para temas politicamente salientes no contexto americano. Sensatos? Realizáveis? Cá estaremos para ver e discutir. Mas quem acha que coisas como estas são "vazias" ou "retóricas" mostra estar demasiado intoxicado pelas suas próprias preferências políticas para que possamos ter grandes esperanças quando ao seu "distanciamento" e "objectividade", quando se voltar a pronunciar sobre o assunto.

Há, contudo, um argumento potencialmente mais sofisticado por detrás da ideia de que o resultado desta eleição pode não fazer grande diferença: o de que, em face dos constrangimentos colocados pelo sistema político americano - um sistema federal, separando poderes executivo e legislativo e com partidos "indisciplinados" - a capacidade que os presidentes têm para "cumprir promessas" e alterar fundamentalmente o statu quo nas políticas públicas é muito limitada. Este problema colocar-se-ia de forma ainda mais clara no que diz respeito às políticas económicas, afectadas por constrangimentos ligados às situações económicas doméstica e internacional, os incentivos de curto prazo colocados por eleições regulares e pela forma como os agentes económicos se antecipam e reagem às mudanças anunciadas, neutralizando muitos dos seus efeitos desejados. Deste ponto de vista, governos "de esquerda" ou de "direita", os laços que cultivam com diferentes coligações de grupos sociais e as suas reputações por adoptarem políticas que favorecem ou desfavorecem esses grupos (as suas "ideologias") acabariam por não fazer grandes diferenças nas políticas que adoptam e muito menos nas suas consequências reais.

O principal problema com este argumento consiste no facto de ele não ser apoiado pela história e pelos números. Num capítulo do Oxford Handbook of Political Economy, Robert Franzese e Karen Long Jukso analisam a vasta literatura na Ciência Política e na Economia sobre a teoria dos "ciclos partidários" iniciada por Douglas Hibbs, ou seja, a noção de que a ideologia dos partidos no poder afecta as políticas que adoptam e os resultados da economia, produzindo, nomeadamente, maior inflação sob governos de esquerda e maior desemprego sob governos de direita. Em geral, especialmente nos estudos conduzidos desde os anos 70 nas democracias industrializadas - incluindo dados de períodos mais recentes e metodologias mais sofisticadas uma maioria significativa das investigações existentes conclui de facto pela existência desses efeitos, especialmente no que respeita a maiores despesas e receitas do Estado, crescimento do emprego e de políticas sociais sob governos de esquerda. E, curiosamente, a hipótese que tem menos apoio empírico é ao mesmo tempo a mais ingénua e a mais agitada na luta política: não parece haver qualquer relação entre a composição dos governos e o equilíbrio orçamental. A produção de défices é tão frequente sob governos de direita como sob governos de esquerda nas democracias industrializadas.

Os Estados Unidos não são excepção a estes padrões. Poderá ser também ingénuo e até algo manipulativo comparar o desempenho económico americano sob governos democratas e republicanos desde o pós-guerra e constatar que, sob os primeiros, o crescimento da economia foi três vezes superior ao verificado sob os segundos. Há muitos factores para além do controlo partidário do executivo que podem justificar esta discrepância. Mas os efeitos propriamente distributivos do controlo da presidência por um outro partido são, esses sim, claríssimos. Como mostra um estudo de 2004 do politólogo Larry Bartels, um efeito recorrente e sistemático da estadia de presidentes republicanos na Casa Branca é que, durante esses períodos, o rendimento das famílias cresceu tanto mais quanto mais elevado ele já era, com os 20 por cento mais pobres a serem os menos beneficiados e os rendimentos dos 5 por cento mais ricos a serem os que mais crescem. Pelo contrário, sob presidentes democratas, o padrão é muito mais equilibrado e, curiosamente, em comparação com presidentes republicanos, de crescimento superior para todos os escalões de rendimento, com a única excepção dos 5 por cento mais ricos. Bartels mostra que a grande responsabilidade por esta variação não está sequer em políticas fiscais mais ou menos redistributivas, mas sim em políticas que promovem o crescimento do emprego. Até aos anos 70 - como Hibbs já mostrava - mas também depois disso, a preocupação dos governos democratas com a diminuição do desemprego em desfavor do controlo da inflação teve como sistemática consequência o aumento do rendimento disponível para os sectores mais desfavorecidos.

Nos próximos meses, Barack Obama terá de tomar muitas decisões, tais como a de saber quais serão os 7000 funcionários que nomeará, que novos juízes indicará para os tribunais federais (incluindo o Supremo Tribunal) ou o que fará com Guantánamo. Estaremos cá para testar a mais do que implausível hipótese de que isto seja tudo irrelevante. Mas o que a história também diz é que, mesmo nos domínios onde é mais difícil um presidente democrata fazer diferença, ela existe e é de enormes consequências. Por que razão deveria ser diferente desta vez?