segunda-feira, abril 24, 2006

Uma floresta de enganos

O absentismo dos deputados parece ser suficientemente grave para que, segundo se anuncia, o Presidente da República vá amanhã falar sobre o assunto no parlamento. Estamos em terreno de tal modo fértil para a demagogia e as banalidades que não estou seguro, confesso, de conseguir chegar ao fim deste texto sem incorrer numa ou noutras. Será então prudente que comece pelos factos.

O primeiro é que os parlamentares portugueses parecem ter adoptado para si próprios um dos mais duros regimes de punição de faltas às sessões plenárias existentes nas democracias ocidentais, prevendo — salvo motivo justificado — a perda de mandato por falta de comparência a apenas quatro sessões plenárias. Uma visita à base de dados da União Interparlamentar revela, por exemplo, que dos vinte e cinco regimentos dos parlamentos da União Europeia, apenas em quatro deles (Áustria, Finlândia, Letónia e Portugal) se prevê a perda de mandato de deputado por semelhante motivo. Na maioria dos casos existem apenas sanções pecuniárias, havendo inclusivamente seis países — Bélgica, Dinamarca, Holanda, Suécia, Reino Unido e Estónia — em que não existe sequer uma obrigatoriedade de presença no plenário. Não consta que tenha sido isto que levou ao declínio do Império Britânico, nem que seja factor de peso na “qualidade” das democracias dinamarquesa ou sueca. E não deixa de ser enigmático que, na mesma altura em que instituições como o Centro Europeu de Pesquisa e Documentação Parlamentar discutem a utilização de meios electrónicos que permitam discussões e votações sem a presença física dos deputados no parlamento - para que possam passar mais tempo junto dos seus círculos eleitorais e noutras actividades políticas - os nossos deputados coloquem tanto empenho em criar regras que, supostamente, os deveriam manter sentados no hemiciclo.

O segundo facto ajuda a decifrar o enigma. Na verdade, não é evidente que os parlamentares portugueses tenham tido alguma vez a intenção de colocar estas regras draconianas em prática, se não na letra pelo menos no espírito. Por exemplo, em Julho de 2001, numa das várias épocas de caça ao deputado faltoso abertas pela comunicação social nos últimos anos, relatava-se que nada menos de 30 deputados tinham já ultrapassado o limite de três faltas injustificadas nessa sessão legislativa. Mas ficou-se também a saber que o processo de perda de mandatos não tinha sequer sido accionado, alegando-se que os serviços administrativos tinham marcado faltas ao plenário a quem estava a trabalhar em comissão. E pelo caminho, foi o próprio Presidente da Assembleia quem veio afirmar, afinal, a sua discordância “pessoal” com o “excesso de rigor” da norma. Ao longo dos meses que se seguiram, os faltosos puderam — chamemos-lhe assim — “justificar” as suas faltas, muito depois do período regulamentar para tal. Através deste e outros processos semelhantes ocorridos nos últimos anos, nunca um deputado perdeu o mandato por excesso de faltas injustificadas, sendo mesmo raríssimos os casos de faltas que tenham ficado por justificar.

O que se costuma seguir a esta constatação é a denúncia pública do “escândalo”, a contrição dos líderes partidários e parlamentares e o apelo a mais regras “moralizadoras”, de forma a “recuperar o prestígio” do parlamento junto da opinião pública. Tudo bem. Mas talvez seja importante recordar que não há qualquer estudo de opinião que sugira que a imagem que os portugueses têm do seu parlamento seja minimamente afectada, para o mal ou para o bem, quer pelos supostos “escândalos” quer pelas supostas “reformas” que lhes têm respondido ao longo dos últimos anos. Não tem havido, em termos da imagem do parlamento, um “antes” ou um “depois” dos diversos “pacotes” de reforma parlamentar. O que a investigação sugere é, pelo contrário, que o anti-partidarismo dos portugueses é forte, arreigado e não tem sofrido mudanças especialmente notáveis nos últimos anos. E que as avaliações que fazem do parlamento são muito mais sensíveis a factores como o desemprego, a inflação e o crescimento económico, sendo também mais negativas, naturalmente, entre os simpatizantes dos partidos que estão a cada momento na oposição. De facto, nem é sequer seguro que os cidadãos tenham uma “imagem” propriamente dita do “parlamento”, de tão dependente que ela parece ser daquela que é feita do sistema político em geral e do seu desempenho.

Deste modo, a preocupação com o impacto destes rocambolescos eventos na imagem do parlamento e dos políticos está provavelmente a confundir causas e efeitos. Se os parlamentares vão aprovando para si próprios normas de conduta de aplicabilidade incerta e, nalguns casos, indesejada à partida, é precisamente porque querem dar ao público aquilo que pensam — provavelmente com razão — que o público quer, ou seja, regras que tratem os políticos na base de um princípio generalizado de suspeição. E se de seguida os mesmos parlamentares subvertem o espírito das normas que por eles próprios aprovadas, é porque também julgam — mais uma vez com acerto — que, quando chegar a hora da verdade, nada disto vai ter qualquer efeito no que realmente conta: a sua colocação em lugares elegíveis nas listas e a opção de voto dos eleitores neste ou naquele partido.

É por tudo isto que o habitual discurso do “escândalo”, seguido da necessidade de “moralização”, pode facilmente tornar-se, nesta floresta de enganos, no mais situacionista dos discursos. Em primeiro lugar, porque permite que não se repense sequer por um segundo qual poderá ser o papel dos deputados e dos parlamentos nas democracias contemporâneas, ou sequer os mecanismos de responsabilização política que poderiam dispensar a adopção de regras mais ou menos absurdas que tratam deputados eleitos como funcionários públicos tendencialmente relapsos. E em segundo lugar, porque ajuda a perpetuar um jogo perverso entre políticos, jornalistas e opinião pública que, a esta hora, os primeiros já aprenderam a jogar de olhos fechados.

segunda-feira, abril 10, 2006

Presidenciais e anti-partidarismo

Que espécie de eleição é aquela onde se escolhe um presidente num sistema de governo semi-presidencial? Em França, tudo se assemelha ao que sucede em regimes presidenciais. Por um lado, apesar da personalização do cargo, os eleitores deixam-se guiar por pistas como o “partido” ou a “ideologia” na sua opção de voto. Por outro lado, especialmente após períodos de coincidência político-partidária entre a presidência e o governo, o voto é também influenciado por factores como o desempenho da economia, pelo qual o presidente (ou o candidato do seu partido) tende a ser directamente responsabilizado.

Pelo contrário, em países como a Irlanda ou a Islândia — onde, tal como em França, um presidente eleito coexiste com um chefe de governo responsável perante o parlamento — predomina uma despolitização quase completa. O apoio partidário a este ou aquele candidato — que no caso da Islândia é, de resto, raramente explicitado — parece ter uma relevância nula nas escolhas feitas pelos eleitores, em favor da mera avaliação das qualidades pessoais dos candidatos.

E em Portugal? O estudo pós-eleitoral coordenado pelo Instituto de Ciências Sociais, cujos resultados são apresentados nesta edição do Público, gera tantas perplexidades como aquelas que resolve. Por um lado, a luta partidária e ideológica que prevalece na arena das eleições legislativas parece também penetrar as eleições presidenciais. De entre os eleitores que foram às urnas em Janeiro, mais de 90% dos simpatizantes do PSD votaram em Cavaco Silva, enquanto 80% dos simpatizantes do PS votaram em Mário Soares ou Manuel Alegre. No mesmo sentido, Cavaco fez limitadíssimas incursões entre os eleitores que se posicionam na esquerda do espectro ideológico, ao passo que os candidatos dos partidos de esquerda raramente conquistaram votos à direita. Até aqui, tudo normal.

Contudo, isto não impediu que as lógicas partidária, ideológica e de confronto entre maioria e oposição fossem curto-circuitadas por um substancial número de eleitores. Nada menos que um em cada cinco daqueles que votaram no PS em 2005 optou, desta vez, por votar em Cavaco Silva, ao passo que os eleitores que se situam no centro do espectro ideológico, que em 2005 tinham desproporcionalmente votado no PS, tenderam desta vez a votar no candidato dos partidos de direita.

Da mesma forma, a utilização do voto para responsabilizar agentes políticos pelo seu desempenho foi, na melhor das hipóteses, ténue e indirecta. Mário Soares, o candidato “do governo”, foi previsivelmente punido por aqueles que faziam piores avaliações do estado da economia. Contudo, como destaca André Freire nesta edição do Público, isso não foi suficiente para que as avaliações da situação económica (tal como as da actuação do governo ou do desempenho de Jorge Sampaio) chegassem para explicar as opções de voto de um grande número de eleitores. Afinal, cerca de metade dos votos em Cavaco Silva veio de eleitores que faziam uma avaliação “boa” ou “muito boa” da actuação do governo socialista. Assim, em Portugal, onde a função presidencial vai além da natureza cerimonial dos casos irlandês ou islandês, mas tem ficado aquém da função de real liderança do executivo que, em determinadas fases, assume em França, os padrões de comportamento eleitoral parecem ficar também a “meio caminho” entre uma e outra variedades de semi-presidencialismo.

Há, contudo, um elemento adicional que parece assumir especial importância no nosso caso. Uma das estratégias que acabou por ser frutuosa para alguns candidatos foi a sua capacidade de tornar credível um distanciamento em relação aos partidos. Soares, preso à sua condição de “candidato do PS”, ficou exclusivamente dependente de votos de eleitores socialistas e impossibilitado de fazer incursões entre a crescente massa de eleitores sem simpatias partidárias, coisa em que o “apartidário” Alegre foi muito mais bem sucedido. Francisco Louçã e, em menor grau, Jerónimo de Sousa, envolvidos nestes eleições com o objectivo principal de marcar terreno para os seus partidos, acabaram por sofrer, à última hora, a deserção de parte dos seus simpatizantes em favor do candidato que parecia mais viável à esquerda (Alegre, uma vez mais). E quanto a Cavaco, apesar do seu estudado distanciamento em relação aos partidos ter causado alguma desmobilização no eleitorado daquele que mal conseguiu nomear durante a campanha – o CDS-PP — isso foi mais do que compensado pela atracção de um significativo número de eleitores que não se identificam com qualquer partido.

É por tudo isto que me parece algo incompleta a análise que atribui a chave da vitória de Cavaco Silva à capacidade de se apresentar como um candidato longe da “direita” e perto da “social-democracia” ou do “centro”. Ou a chave do sucesso de Manuel Alegre à sua capacidade para se distanciar do PS e do seu governo. Em 2005, na primeira vaga deste estudo de painel, os inquiridos tinham sido convidados a pronunciar-se sobre duas frases normalmente usadas como indicadores de sentimentos duráveis de anti-partidarismo: “os partidos só servem para dividir as pessoas” e “sem partidos políticos não pode haver democracia”. Chegados a 2006, em quem votaram desproporcionalmente aqueles que mais concordam com a ideia de que os partidos só servem para dividir, ou aqueles que mais facilmente dispensariam os partidos políticos da nossa democracia? A resposta já não surpreenderá o leitor: respectivamente, em Cavaco Silva e Manuel Alegre.

Por outras palavras, os candidatos mais bem sucedidos foram aqueles que conseguiram não só atrair o voto dos “independentes”, mas também aqueles que conseguiram mobilizar e enquadrar os eleitores que sentem maior hostilidade em relação aos partidos e ao seu papel na democracia portuguesa. As implicações do fenómeno são muitas e terão de ficar para outro dia. Mas há uma pergunta óbvia a que já não se consegue escapar: conseguirá um dia um candidato presidencial fazer-se eleger contra os partidos? Ao que parece, já estivemos mais longe.