segunda-feira, novembro 26, 2007

Uma crise da democracia

No último século, a maneira de se pensar na democracia enquanto regime político sofreu várias transformações. A primeira foi descrita pelo filósofo C. B. Macpherson há já 40 anos: aquilo que antes era uma "palavra feia", uma forma de "governo pelas massas populares" contrária à "liberdade individual e aos encantos da vida civilizada", tornou-se, ao longo do século XX, numa "coisa boa". A segunda transformação é mais recente, e decorre da multiplicação de regimes democráticos em países e contextos - a Europa do Sul, a América Latina, a Europa de Leste e até partes da África e da Ásia -, onde a instalação de regimes democráticos pareceu, durante muito tempo, e por diversas razões, altamente improvável. Ela consistiu em pensar-se que um regime democrático, para além de ser "uma coisa boa", é também uma aspiração (e uma possibilidade) universal. A democracia seria a penúltima estação de um percurso desejado e possível em todas as sociedades, à qual se seguiria não uma mudança de espécie, mas, espera-se, apenas de grau: mais e melhor democracia.

Esta transformação no mundo das ideias, concomitante com uma transformação no mundo real - a difusão da democracia enquanto forma de governo no século XX - cria, contudo, alguns problemas de análise. Desde logo, é cada vez mais difícil saber onde estão realmente as democracias. Segundo a Freedom House, existem hoje no mundo 123 "democracias eleitorais", ou seja, regimes onde a identidade dos governantes é determinada por eleições regulares onde se pratica o sufrágio universal, onde não existem fraudes eleitorais generalizadas e onde é permitido aos eleitores que façam escolhas entre partidos ou candidatos alternativos que apresentam as suas propostas em campanha. Mas é arriscado presumir que estas características são necessariamente acompanhadas por um conjunto de outras condições que também associamos, mesmo que implicitamente, ao conceito de democracia, tais como o estado de direito, a separação de poderes, o respeito pelas liberdades cívicas e políticas ou o pluralismo social e económico. Não por acaso, os famosos "critérios de Copenhaga", que definem a elegibilidade dos países para a sua pertença à União Europeia, vão bastante para além da "democracia eleitoral".

O problema, contudo, é que a existência ou não dessas restantes regras, instituições e características nos mergulha na análise de uma multiplicidade de critérios e indicadores onde é difícil evitar avaliações subjectivas, ideológicas e politizadas. Há quem procure clarificar este mapa conceptual falando em democracias "delegativas" ou "iliberais". Mas onde colocar o limiar a partir do qual elas se transformariam em genuínas democracias "representativas" ou "liberais"? Há também quem detecte nestas últimas, também elas com os seus "défices democráticos" e "crises de representação", deficiências funcionalmente equivalentes às das novas democracias. Mas a partir de que momento esse défices se tornam tão graves que deixamos de poder realmente falar em "democracia"?

Independentemente da forma como queiramos lidar com este estado de coisas, importa reconhecer que ele é particularmente benéfico para líderes políticos que pretendem garantir a instalação ou a sobrevivência de regimes autoritários sob outros nomes. Para combinarem a manutenção no poder com alguma legitimação interna e externa, basta-lhes preservar eleições "livres e justas", ao mesmo tempo que vão activamente minando tudo aquilo que permite que, mesmo com muitas imperfeições, essas eleições possam garantir algum grau de representação e responsabilização políticas: a autonomia da sociedade civil; a independência do poder judicial; ou o pluralismo na informação. Dizer que, afinal, tudo é uma questão de grau, e que isso se encontra também imperfeitamente garantido nas democracias consolidadas, será porventura verdadeiro. Mas é uma verdade que oculta outra ainda mais fundamental. Essas alegadas "imperfeições", em muitas novas democracias eleitorais, são o resultado de uma estratégia deliberada para a perpetuação no poder e de eliminação daquilo que, em última análise, também faz parte da essência do que é um regime democrático: a existência de alguma incerteza sobre quem, no futuro, vai ocupar o poder.

Há também quem julgue poder resolver o problema "subjectivando" completamente a definição de democracia: se a população de um dado país deseja e sente viver num regime democrático, então viverá numa democracia. Contudo, os defensores dessa ideia terão de conseguir explicar por que razão, em países como a Venezuela ou Singapura, a maioria dos eleitores se diz apoiante de regimes democráticos e, ao mesmo tempo, geralmente satisfeita com o funcionamento das suas "democracias". Ou como é possível que, na Rússia, a maioria dos eleitores declare genericamente o seu apoio à democracia como regime, mas acabe por admitir que uma liderança forte e sem obstáculos é a melhor maneira de lidar com os problemas do país, depositando a sua confiança em Putin. Ou até como é possível que a administração americana reclame ainda hoje que, apesar de todos os problemas e imperfeições, se conseguiu, apesar de tudo, levar a "liberdade" e a "democracia" ao Afeganistão ou ao Iraque. O mundo não está fácil para quem quer saber onde está e onde não está a democracia. Mas quem está disposto a desistir de fazer distinções claras, tornando a democracia numa questão "de grau" ou subjectivando o conceito, deveria ter mais cuidado com as companhias.

terça-feira, novembro 13, 2007

Números

Por estes dias, com a discussão do Orçamento de Estado, a negociação dos aumentos salariais ou o confronto entre as previsões governamentais do défice e do crescimento económico e as da Comissão Europeia, é difícil não notar como o debate público se encontra povoado de “números” sobre a sociedade e a economia. O fenómeno é historicamente recente. Apesar da recolha de “estatísticas” se ter iniciado nalguns estados no século XVII, a construção de aparelhos estatais equipados para a recolha desta informação e apoiados pelos conhecimentos mais avançados das técnicas matemáticas para a sua análise e tratamento remonta apenas aos anos 30 do século passado, em particular à administração Roosevelt nos Estados Unidos. Não por acaso, é também por esta altura que a noção de que seria possível medir rigorosamente as preferências dos eleitores através de sondagens ganha credibilidade pública e científica. Assim, realidades como o desemprego, a riqueza ou a opinião pública passaram a ser descritas através de indicadores como a “taxa de desemprego”, o “produto interno bruto” ou os “índices de popularidade”. Estas representações numéricas da realidade ganharam um poder enorme: na economia, primeiro, mas cada vez mais na política e noutros domínios da vida social, elas são uma das maneiras principais como nos apercebemos do mundo que nos rodeia, e trazem consigo uma carga de irrefutabilidade que é quase impossível desmontar.*

Haveria muito para dizer sobre esta transformação na maneira de olharmos, descrevermos e explicarmos a sociedade. Poderíamos começar pelos incentivos que os produtores desta informação - estados, empresas, organizações de interesses e por vezes os próprios agentes políticos - têm para a distorcerem em seu benefício, como já explicava em 1950 o economista Oskar Morgenstern, no clássico On the Accuracy of Economic Observations. E mesmo que contemos com a existência de regras e instituições que minimizem as distorções grosseiras, o debate não se esgota aí. As opções sobre como representar quantitativamente a sociedade até podem ser tomadas em absoluta neutralidade técnica e o erro que lhes está sempre associado tomado em conta. Mas as consequências sociais e políticas dessas opções nunca são “neutras”. Basta ver como a ideia de que há uma “opinião pública” captável através de sondagens transformou a concepção do eleitorado e das campanhas: o primeiro é cada vez mais visto como um agregado de preferências individuais de membros de um “mercado” eleitoral; as segundas são cada vez mais cobertas como uma “corrida” entre candidatos que vão “à frente” ou “atrás” nas sondagens, e todas as suas acções e propostas enquadradas como fazendo parte dessa corrida.

Tudo isto vale a pena debater. Contudo, em Portugal, estamos de alguma forma numa fase anterior e primitiva a todos estes possíveis debates. Dois exemplos – os rankings das escolas secundárias e as sondagens político-eleitorais – servem para ilustrar a ideia. Como explicava André Freire nas páginas deste jornal há exactamente uma semana, chega a ser implausível a incipiência técnica e científica com que, sete anos volvidos após o início da divulgação de dados absolutamente preciosos, se continuam a fazer inferências a partir deles na comunicação social e no discurso político. Os mais variados pronunciamentos sobre a “superioridade” do ensino privado (ou falta dela) ou sobre os efeitos supostamente esmagadores das origens sociais dos estudantes continuam a sobreviver incólumes a quaisquer noções sobre controlo estatístico, os obstáculos à inferência sobre efeitos individuais e contextuais na base de dados agregados ou a heterogeneidade interna das categorias “privado” e “público”. E o problema não consiste apenas, como sugeria André Freire, na necessidade imperiosa de recolher dados a nível individual. Esta não é a minha área de investigação académica e não quereria cometer injustiças: mas é verdadeiramente espantoso como, em poucos dias após as divulgação dos “rankings”, um blogue de um economista não-académico (Miguel Madeira, no Vento Sueste) tenha feito mais pela análise dos resultados que centenas de técnicos do Ministério da Educação e dezenas de professores universitários supostamente especialistas em políticas educativas nos últimos sete anos.

As sondagens são outro exemplo da forma como ainda nos falta debater o essencial. Amanhã, por exemplo, inicia-se uma conferência organizada pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) sobre a regulação das sondagens em Portugal. Neste género de conferências (e já assisti a muitas) as discussões tendem sempre a desembocar na questão da “manipulação da opinião pública”, nos juízos casuísticos sobre a “precisão” das sondagens ou nos seus supostamente estrondosos efeitos no comportamento eleitoral. Tudo bem. Mas seria bom que o batalhão de políticos, jornalistas e juristas que domina - com raras excepções - os painéis desta conferência encontrasse algum tempo para debater alguns pontos prévios. Por exemplo, como é possível que, sete anos após uma legislação que supostamente o deveria garantir, a divulgação das sondagens pela comunicação social continue a não ser acompanhada, de forma consistente e sistemática, da informação mais elementar sobre os aspectos metodológicos da sua realização? Como é possível que, com o crescente predomínio das sondagens na cobertura e análise da vida política, não existam jornalistas especializados no tratamento desta informação, nem sequer uma comunidade académica identificável capaz de os formar? E já agora, “mea culpa”: como é possível que, quase 40 anos após a fundação do National Council on Public Polls, uma associação de auto-regulação dos principais institutos de sondagens americanos, os responsáveis dos institutos portugueses ainda permitam que seja um batalhão de políticos, jornalistas e juristas - na ERC ou fora dela - a discutir e a regular a sua actividade?

Os números merecem ser tratados com cuidado. Especialmente num país onde, aparentemente - e aqui vai outro “número” - apenas 5 por cento dos alunos do 6º ano conseguem responder correctamente nas provas de aferição às perguntas sobre cálculo e…números.

*Para conhecer uma análise magistral desta transformação, leia-se um livro de 1993, La politique des grands nombres: Histoire de la raison statistique, de Alain Desroisières.

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