segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Religião, valores e política

Uma das ideias expressas nas últimas semanas acerca dos resultados do referendo do dia 11 é a de que eles foram consequência de uma mudança social, cultural e política de grande alcance que teria ocorrido em Portugal. Mudança no sentido do enfraquecimento da autoridade moral e influência social da Igreja Católica, da “modernização” da sociedade portuguesa, ou até, nas palavras da nota pastoral da Conferência Episcopal sobre o tema, do “individualismo no uso da liberdade e na busca da verdade”. Em suma, um Portugal mais “moderno” e até mais “europeu”, independente de acharmos ou não que isso é uma coisa boa.

À primeira vista, é difícil discordar. Apesar de 90 por cento dos portugueses se declararem “católicos”, a percentagem de praticantes regulares (que assistem a serviços religiosos pelo menos uma vez por semana) terá descido, desde finais dos anos 70 até hoje, de mais de metade para cerca de um quarto da população. A palavra “declínio” talvez nem capte bem o sucedido. Trata-se sim de um verdadeiro corte intergeracional, com aqueles que nasceram a partir dos anos 70 a darem hoje uma contribuição ínfima para o contingente dos praticantes regulares. Vários estudos na área da sociologia da família vêm revelando que quer as práticas quer as atitudes em relação à sexualidade e a vida familiar - divórcio, contracepção, sexo antes do casamento, coabitação - mudaram de forma dramática nas últimas três décadas, invariavelmente em direcções opostas àquelas que a igreja vê como sendo moralmente aceitáveis. O enquadramento legal da prática do aborto é, no domínio das políticas públicas, um dos mais fortes correlatos do grau de secularização de uma sociedade. E não vejo, excluindo artifícios de linguagem ou algum incómodo com o uso “normativo” do conceito, como se possa evitar a designação desta mudança social como uma “modernização”. Vem nos manuais: níveis crescentes de desenvolvimento económico, ao permitirem que os indivíduos sejam socializados em condições de maior segurança e prosperidade e adquiram maiores recursos educacionais, produzem mudanças nos valores, gerando desconfiança em relação às fontes de autoridade tradicionais, cepticismo em relação ao uso repressivo do poder do estado e uma ênfase na autonomia e escolha individual. Nada que a Conferência Episcopal não tenha detectado com mais presciência e realismo que alguns observadores.

Sucede, contudo, que esta versão dos acontecimentos pode fazer com que se percam de vista dois factos igualmente importantes, que nos ajudarão a perceber por que razão o alcance da “mudança” ocorrida no dia 11 talvez seja menor do que parece. O primeiro, banal mas nem por isso suficientemente lembrado, é o facto de as nossas “secularização” e “modernização” empalidecerem em comparação com se passa nos países da nossa área geo-cultural. Portugal permanece um dos países com maiores níveis de religiosidade da Europa, a par da Polónia, a Itália ou a Irlanda, e bem mais altos, de resto, do que os da nossa vizinha Espanha. Mais importante, Portugal não deixou de ser, como revelam vários estudos baseados no World Values Survey, um país singular na Europa Ocidental no que respeita às atitudes em relação às instituições tradicionais de autoridade, ao valor da autonomia individual ou à tolerância em relação à diversidade de estilos de vida. Tão singular que, em bom rigor, estamos a este nível mais próximos da América Latina do que da Europa, mesmo da Europa Católica. Poucos indicadores são tão reveladores disso mesmo como a rejeição dos portugueses em relação à concessão de direitos aos homossexuais, onde um olhar pelo mapa revelado pelo último inquérito do Eurobarómetro nos mostra isolados quer a Sul quer a Ocidente. E ao contrário do que já se vai dizendo, a diferença em relação a Espanha não é um produto recente “pós-Zapatero”. Quer em 1990 quer em 1999, nos resultados do European Values Study, a percentagem de portugueses que consideravam a homossexualidade com algo “sempre injustificável” estava mais de 20 pontos percentuais acima da detectada em Espanha. “Modernos”? Depende.

Mas mesmo que as atitudes dos portugueses em relação a este e a outros temas fossem diferentes, haveria um segundo aspecto a considerar. O Portugal de 1998 era assim tão diferente do Portugal de 2007? Não me parece. A diferença nos resultados dos dois referendos tem causas mais próximas, ligadas ao comportamento dos agentes políticos: antes de mais, a posição de Sócrates; e depois, como destacava André Freire no Público há uma semana, a maior capacidade de mobilização desta vez revelada pelo campo do Sim. Assim, se é verdade que a “modernização social” pode criar novas clivagens e aumentar os segmentos do eleitorado “mobilizáveis” para a mudança política, essa mudança depende também da actuação dos “mobilizadores”. Por outras palavras, num país com associações e organizações intermédias débeis, ela depende quase exclusivamente da disponibilidade dos partidos, que controlam a agenda política, para transformarem clivagens sociais em clivagens políticas. E Portugal, também deste ponto de vista, não é Espanha. PSD e PS têm eleitorados muito mais semelhantes entre si em termos culturais e religiosos do que PP e PSOE, estando, ao mesmo tempo, muito mais divididos internamente a esse nível. À direita do PSD e à esquerda do PS existem partidos que têm tudo a ganhar com uma “guerra cultural”, ao passo que em Espanha essa competição é inexistente. Para Aznar, primeiro, e Zapatero, depois, reactivar na política espanhola uma clivagem religiosa que permanecia dormente desde a transição foi uma estratégia eleitoral como qualquer outra: falível, mas plausível. Em Portugal, é certamente vista pelas lideranças do PS e do PSD como suicida. Assim, o aumento da saliência deste tipo de temas na agenda política terá de vir da sociedade, ou não virá de todo. E sabendo o que sabemos sobre essa sociedade, a coisa não poderá ser para muito breve.

terça-feira, fevereiro 13, 2007

Anatomia de uma campanha

Em vários estudos realizados sobre o referendo de 1998, os politólogos André Freire e Michael Baum destacavam duas explicações quer para a elevada abstenção (68%) quer para a derrota do "sim": as divisões internas no Partido Socialista e, especialmente, a posição de António Guterres, lançando sinais contraditórios para o seu eleitorado; e a "vitória anunciada" do "sim" veiculada por várias sondagens, galvanizando os apoiantes do "não" e fornecendo um falso sentimento de tranquilidade aos defensores da despenalização.

Se nos guiássemos desde o início por estas pistas, a comparação entre 2007 e 1998 sugeria desde logo uma vantagem clara para o "sim" no referendo de ontem. É verdade que dificilmente se consegue pôr uma máquina partidária a funcionar a todo o vapor quando não estão cargos políticos em jogo. Mas também é verdade que as posições do PS e do seu líder dificilmente poderiam ter sido mais claras. Ao contrário do que muitas vezes se supõe, os partidos contam muito neste tipo de eleição, ao fornecerem aos eleitores as pistas de que necessitam para que tomem decisões em contextos de incerteza e complexidade. Quando a ambiguidade veio do "sim", como em 1998, o "sim" perdeu. Quando veio do "não", o "não" perdeu. Simples.

Depois, também não houve, desta vez, uma "vitória anunciada" do "sim" pelas sondagens. É certo que, em 1998, só uma análise muito superficial dos estudos então divulgados autorizaria a noção de que essa vitória estava garantida. E é também verdade que, em Outubro de 2006, eles indicavam ainda uma margem de vitória muito generosa para o "sim". Contudo, a partir de Outubro, esse sentimento foi-se desvanecendo, à medida que o "não" encetava uma recuperação evidente a partir de Janeiro. A maioria dos eleitores, claro, não acompanha directamente os resultados das sondagens. Mas a comunicação social, que é quem veicula, filtra e amplifica este tipo de informação, entendeu desta vez enquadrar os resultados não pelo ângulo da vantagem considerável que, apesar de tudo, o "sim" ia mantendo nas intenções de voto, mas sim pelo ângulo da crescente incerteza em relação aos resultados finais, mensagem essa que os líderes dos partidos favoráveis ao "sim" resolveram, inteligentemente, amplificar o mais possível. Se há queixa que o "não" possa ter em relação à comunicação social é esta: a de ela ter tido excesso de memória, dramatizando o resultado.

Há, contudo, um terceiro aspecto do que está em jogo num referendo como este que não terá sido suficientemente analisado em 1998. Em vários estudos de opinião, muitos dos eleitores que partilhavam uma predisposição genérica para a despenalização - a maioria - acabavam também, quando questionados sobre se o aborto devia ser legal "quando a mulher não deseja ter o filho" ou sobre o momento de início de uma "vida humana", por recusar a primeira hipótese e apontar a "concepção" como resposta à segunda pergunta. Houve quem interpretasse estas respostas como sintoma de ignorância dos portugueses em relação ao tema ou mesmo da sua generalizada falta de sofisticação política. Mas as campanhas do "sim" e do "não", com sensatez, interpretaram essas respostas como aquilo que realmente são: expressão normal de sentimentos de "ambivalência" em relação à despenalização do aborto. "Ambivalência" não significa indiferença ou falta de opinião, nem sequer necessariamente "moderação", mas apenas a coexistência de atitudes contraditórias em relação a um mesmo objecto ou a diferentes características desse objecto, independentemente da intensidade que essas atitudes possam ter. Em 1998, estes "ambivalentes" tinham sido ignorados por ambas as campanhas, mais interessadas em mobilizar os núcleos duros de opinião do "sim" e do "não", no que acabou por se tornar numa competição centrífuga que alienou uma parte considerável do eleitorado, incapaz de se rever em qualquer uma das posições.

Cientes deste problema, ambas as campanhas procuraram lidar com ele. Do lado do "sim", a preocupação fundamental foi a de tornar esta campanha o mais monotemática possível, enfatizando apenas aquelas dimensões nas quais se sabia de ciência certa que a maioria dos eleitores, incluindo os ambivalentes, tinham sentimentos negativos em relação ao statu quo: o aborto clandestino e a penalização das mulheres. Já o "não" dificilmente poderia ter feito melhor. Apesar de não ter descurado uma campanha de proximidade às populações onde se adoptava um discurso mais radical, procurou, junto da população urbana e através dos meios de comunicação social, adicionar dimensões ao tema, aumentar a incerteza sobre alegadas consequências de uma vitória do "sim" e construir uma interpretação dessas consequências que aparecesse como "extremista" ("o aborto livre"), ao passo que a vitória do "não" seria "moderada" ou "compromissória". O "centrismo" do "não" foi ao ponto de propor que a sua vitória seria também a vitória de uma espécie de despenalização. Mas esta foi, também, uma táctica de desespero, proposta por quem, pelo percurso passado e pela falta de poder presente, não tinha autoridade suficiente para garantir que seria para valer.

Realizado o referendo, há certamente vencedores e vencidos. Mas não creio que do lado do "não" haja apenas vencidos. Por um lado, o debate público ocorrido, o resultado final do referendo - apesar de tudo, menos desequilibrado do que se pensaria em Outubro passado - e a revelação da fundamental ambivalência de muitos eleitores em relação ao tema não deixarão de condicionar as opções da maioria parlamentar quando se tratar de regulamentar a prática legal do aborto até às 10 semanas. Por outro lado, por muito que se possa duvidar da sensatez da utilização do instituto do referendo para tomar decisões em matérias como esta, e por muito que a participação relativamente baixa continue a suscitar preocupações, a campanha parece ter suscitado um envolvimento político muito considerável dos cidadãos. É difícil defender a ideia de que não estamos hoje mais informados sobre a questão do que estávamos há uns meses. E isso é bom para todos.