terça-feira, junho 20, 2006

"Thatcherismo" à portuguesa

Um dos aspectos mais distintivos da actuação do governo parece ser a sua reiterada disponibilidade para iniciar e sustentar conflitos com os mais variados grupos de interesse e organizações profissionais. Apesar de algumas desafinações, a estratégia parece ser consistente. Ela consiste em remover, de forma explícita e deliberada, os interesses organizados e as corporações do processo de tomada das decisões políticas que os afectam, transferindo a "negociação" o mais cedo possível para a praça pública ou, pura e simplesmente, dispensando-a. É certo que cada conflito que assim surge terá as suas circunstâncias e implicações próprias, mas o carácter sistemático do fenómeno e daquelas que têm sido as suas consequências até ao momento sugerem algumas lições sobre os modos de actuação quer do governo quer dos grupos em causa, assim como sobre a forma como os interesses sociais organizados se relacionam com o poder político em Portugal.

Já se escreveu muitas vezes que um dos aspectos fundamentais na mudança ocorrida do autoritarismo para a democracia em países como Portugal ou Espanha foi a transição de um "corporativismo autoritário" para aquilo a que se veio a chamar o "neo-corporativismo". Apesar de, no nosso caso, se encontrar debilitado pelas divisões internas dos parceiros sociais e pela sua declinante representatividade, este modelo geral de relacionamento entre o estado e os interesses sociais permitiu, apesar de tudo, que se fossem emulando alguns aspectos das versões mais consolidadas deste sistema existentes no norte da Europa, em particular o estabelecimento de acordos entre governos, sindicatos e organizações patronais em matérias tão carecidas de compromissos estáveis como as políticas salariais, laborais e de segurança social.

Contudo, algo que tem sido frequentemente negligenciado é o facto de este corporativismo centralizado e trilateral coexistir com uma série de outros sub-sistemas de relações entre o poder político e os interesses organizados. Em muitos casos, tratam-se de sub-sistemas em que os interesses em causa são os de "insider groups", que dispõem de acesso directo ao poder político e estão até, por vezes, localizados no interior do próprio aparelho de estado. Ao longo das últimas décadas, estes grupos de interesse foram exercendo direitos formais e informais de participação na tomada de decisões políticas que os afectam, sendo eles quem, de facto, parece ter determinado a direcção de políticas públicas absolutamente centrais como a saúde, a justiça ou a educação.

Ao que parece, este governo deseja ser visto pela opinião pública como tendo colocado o combate a estes grupos de interesse no topo das suas prioridades. É uma estratégia com algumas vantagens. Em primeiro lugar, ela serve para enviar ao eleitorado a mensagem de que os "sacrifícios" que lhe vão sendo impostos afectam também os "privilegiados", favorecendo assim a aceitação geral de uma política económica que, noutras condições, já teria trazido maiores perdas de popularidade. Em segundo lugar, ela transfere os conflitos com estes grupos dos gabinetes onde eram normalmente resolvidos para um terreno muito mais favorável ao governo, a praça pública. Como se tem visto, quando expostos à luz dos holofotes, os representantes destes grupos revelam como é escasso o seu repertório de acção colectiva (que raramente tiveram de usar no passado) e como são ineptos no cumprimento de uma tarefa que os políticos desempenham com frequência e habilidade (mas que eles nunca tinham precisado de aprender): a de apresentar a defesa de interesses particulares como sendo também a defesa de interesses públicos. O resultado final é previsível. Em geral, a opinião pública só é favoravelmente influenciada pelas posições públicas tomadas por organizações cujas causas são potencialmente partilháveis por todos, tais como, por exemplo, as dos direitos humanos, o ambiente ou a segurança rodoviária; quando essas causas são construídas como "egoístas", o efeito que geram na opinião pública é, na maioria dos casos, de repulsa.

Sucede que esta estratégia não é isenta de riscos a mais longo prazo. Quando Margaret Thatcher chegou ao poder no Reino Unido, também ela sonhava com a possibilidade de estabelecer uma relação directa entre o poder político e o eleitorado, curto-circuitando o papel dos grupos de interesses na formulação das políticas públicas. Beneficiando de um grau de centralização da autoridade política inédito fora de períodos de guerra e com um partido aparentemente domesticado, Thatcher encarregou-se não apenas de destruir o poder dos sindicatos (coisa que Blair lhe agradece eternamente) mas também de enfrentar aquilo que ela - tal como a maioria dos britânicos - encarava como uma união perversa entre a burocracia estatal e os interesses particulares de professores, médicos, enfermeiros e outros.

O que se seguiu, contudo, foi a degradação geral da qualidade dos serviços públicos no Reino Unido, que terá jogado um papel não desprezível no declínio e fim do thatcherismo. Nuns casos, isso sucedeu porque a saída encontrada para os conflitos com os interesses instalados - a privatização - só serviu para substituir esses interesses por outros e, pelo caminho, para conduzir a desempenhos ainda piores. Noutros casos, porque só tarde demais se terá percebido de onde realmente provém o poder destes grupos profissionais e corporativos: do conhecimento especializado de que dispõem e do grau de autonomia inerente às funções que exercem. É isto que lhes permite neutralizar no terreno muitos dos efeitos desejados de quaisquer reformas decididas por qualquer governo, e é isto que exige que a sua colaboração seja, em última análise, necessária para o sucesso. Há uma linha que separa a indispensável demonstração de autoridade política por parte do governo da bravata improdutiva e demagógica. Mas é uma linha muito estreita, que este governo, para benefício geral, talvez devesse atravessar com menor frequência.

terça-feira, junho 06, 2006

Uma tragédia reencenada

Os especialistas no caso de Timor-Leste não deixarão de dissecar as particularidades históricas, políticas e sociais que conduziram à instabilidade que hoje nele se vive. Contudo, para os não-especialistas – como eu — o caso é interessante por razões que o transcendem. Aquilo a que assistimos hoje em Timor é a uma tragédia reencenada que, por não ser exclusiva da nova nação, nos obriga a questionar o optimismo e o voluntarismo daqueles que acreditam na viabilidade da instauração de regimes democráticos em contextos que lhe são particularmente desfavoráveis.

Primeiro, importa recordar, dolorosamente, que o terreno menos propício possível para a estabilização de um novo regime democrático é o proporcionado por sociedades caracterizadas por pobreza extrema e padrões pré-modernos de economia de subsistência. Nestes sociedades, o que está em jogo nos conflitos políticos e distributivos tende a assumir uma importância tão vital e dramática — a própria sobrevivência pessoal — que a sua intensidade os torna demasiado intratáveis para que se possam enquadrar e resolver no quadro institucional de eleições livres e regulares. A “moderação” e o “compromisso”, de que a democracia necessita imperiosamente, são luxos a que apenas os ricos se podem entregar facilmente. E se é verdade que há casos de países pobres que foram conseguindo preservar, a custo, a democracia, é também certo que o fizeram compensando a sua desvantagem inicial com o crescimento económico e a elevação do nível de vida dos cidadãos. Contudo, até isto tem estado vedado aos timorenses. Uma breve nota publicada na Economist de Março passado, intitulada “Free but hungry”, explicava como a diminuição da procura interna, causada pela retirada de parte do contingente das Nações Unidas, tinha sido responsável pela contracção da economia a partir de 2002. Mais de 40 por cento da população vive com menos de 40 cêntimos por dia, sendo que a maior parte dos magros recursos do novo estado foram gastos na capital, deixando de fora a paupérrima população rural. A lista de problemas poderia continuar indefinidamente, desde o facto de Timor-Leste ter um dos mais baixos valores de PIB per capita no mundo até ao facto da sua taxa de mortalidade infantil quase triplicar a da vizinha Indonésia. A mensagem contudo, é sempre a mesma: do ponto de vista estrutural, a jovem democracia timorense nunca esteve fora da zona de altíssimo risco.

Ainda menos surpreendente é a agora generalizada constatação de que Timor-Leste constitui um “estado falhado”. É certo que seria difícil imaginar um legado menos favorável a este nível como aquele que Timor recebeu das milícias e das forças armadas indonésias: a completa desintegração do (já de si esquelético) aparelho administrativo; a total destruição das infra-estruturas existentes; e a inexistência de timorenses capazes de substituir os quadros indonésios que administravam o território. Neste quadro desolador, as Nações Unidas assumiram total e exclusiva responsabilidade pela construção de um novo aparelho de estado, numa experiência de “state-building” única na sua história. Contudo, hoje, já não é arriscado dizer-se que essa experiência resultou num fracasso. Um fracasso exemplificado, acima de tudo, pela incapacidade em promover o desenvolvimento institucional necessário para o cumprimento da função mais básica de qualquer estado: a constituição de um aparelho de segurança e de justiça credíveis, imparciais e profissionais. Como relata Ludovic Hood, num deprimente artigo publicado na International Peacekeeping há apenas dois meses, a falta de planeamento e de liderança a este nível por parte das sucessivas missões das Nações Unidas, o seu alheamento em relação ao treino e liderança das FALINTIL e sua incapacidade em enquadrar o envolvimento dos próprios timorenses na institucionalização das forças policiais e do sistema de justiça tiveram consequências graves. Em particular, elas levaram a uma ausência de controlo e monitorização civil do aparelho de segurança no território, que por sua vez favoreceu uma politização e faccionalização cujas consequências foram bem visíveis nas últimas semanas. Assim, neste como em muitos outros domínios, não temos ainda resposta para a questão de saber como se constrói a partir do zero um estado que foi desmantelado ou nunca terá existido, em locais tão distintos como o Iraque, o Afeganistão, a Somália ou Timor-Leste. Sem essa resposta, contudo, não há regime de qualquer espécie, e muito menos um regime democrático, do qual se possa esperar estabilidade.

Neste contexto, o problema das instituições políticas concretas que acabam por ser adoptadas — sistema de governo, sistema eleitoral ou outras — é provavelmente secundário. É certo que se vai dizendo que a importação acrítica do semi-presidencialismo à portuguesa — ao favorecer ambiguidades e conflitos institucionais sobre quem governa — é uma das principais explicações do que se passa em Timor-Leste. Mas a este respeito aproximo-me muito mais do que vem sugerindo Paulo Gorjão no seu informativo Bloguítica. O objectivo por detrás da adopção do semi-presidencialismo em Timor-Leste foi menos o de “imitar” o antigo colonizador do que neutralizar Xanana Gusmão, tarefa a que a FRETILIN se lançou e na qual, do ponto de vista institucional, acabou por ser bem sucedida, mercê da posição privilegiada que as eleições de 2002 lhe concederam na assembleia constituinte. Logo, esta não é exactamente uma história sobre o semipresidencialismo. É sim uma história — que de resto nos devia ser bem familiar — sobre o que sucede quando as instituições políticas são desenhadas numa situação de clara assimetria de poder entre os actores envolvidos e quando as consequências das opções tomadas são claramente previsíveis. Nesses contextos, quem tem mais poder é capazes de impor regras que vão servir apenas os seus interesses, mas é precisamente por isso que essas regras se tornam eminentemente contestáveis e logo, elas próprias, fonte de instabilidade.