segunda-feira, maio 18, 2009

Num país a sério

No PÚBLICO de anteontem, entre outras considerações que não discuto aqui, Pacheco Pereira afirmava que, se Portugal fosse um país a sério, "não deixaria sequer um político balbuciar (como fazem no Bloco de Esquerda), face aos acontecimentos no Bairro da Bela Vista, que se trata de uma 'questão social'". A Igreja poderia fazê-lo porque "o seu Reino não é cá na Terra". "Mas a caridade não é a missão do Estado. A missão de Estado é garantir a nossa segurança, sem mas, nem ambiguidades." E passava de seguida a explicar por que razão as crises económicas e sociais nada têm a ver com o crime: "Os pobres não fazem carjacking, não se armam com uma caçadeira e não vão assaltar bancos, bombas de gasolina, ourives e ourivesarias, e caixas multibanco, para comprar roupa de marca." Está assim demonstrado.

Eu tenho uma opinião algo diferente sobre o tipo de coisa que faria de Portugal "um país a sério". Se Portugal fosse "um país a sério", o debate público sobre este tipo de questões já não ocorreria ao nível em que Pacheco Pereira o colocou. Haveria uma comunidade académica pujante de investigadores dedicados ao estudo do fenómeno do crime, cujo papel no debate público sobre este assunto já teria inibido qualquer pessoa que se apresente como "historiador" (ou seja, como um cientista social) de escrever o que Pacheco Pereira escreveu com objectivos única e exclusivamente políticos. Essa comunidade poderia já ter explicado, por exemplo, que não há hoje praticamente dúvidas de que os factores que melhor explicam a incidência de crimes num determinado contexto são a pobreza das populações e a falta de mecanismos de "controlo social" (em particular, a existência de alta instabilidade familiar). Que os efeitos positivos da encarceração sobre o crime são contrabalançados por efeitos negativos, ligados à quebra da estrutura familiar e à aprendizagem do crime nas prisões. Lembrariam também que, num "país a sério" como os Estados Unidos, o Departamento de Justiça e a Associação Nacional de Polícias estão seriamente preocupados com os efeitos da actual recessão económica na incidência de vários tipos de crimes, incluindo não apenas fraudes mas também todo o tipo de furtos, vandalismo, tráfico de drogas e violência doméstica. Que um conhecido estudo do Banco Mundial, utilizando dados de 86 países ao longo de 14 anos, mostra como as crises económicas aumentam a criminalidade. E que, na base da investigação existente, os factores que menos ajudam a explicar a criminalidade são a dureza das penas, o número de efectivos policiais e o aumento de recursos para as polícias. Na ciência, e ainda menos nas "ciências sociais", não há certezas. Mas é o melhor que temos. Fazer de conta que não existem, para quem se apresenta como fazendo algo mais do que mero combate político, justifica-se apenas por ignorância ou cegueira voluntária. Num país a sério, uma ou outra seriam dificilmente desculpáveis.

Num país a sério, um partido de centro-direita também já teria percebido que as conclusões destes estudos não são nem "de esquerda" nem "de direita", e não impedem a existência de debate ideológico e políticas alternativas. Há muitas maneiras de lidar com aquelas que se sabem ser as principais causas do crime. Há formas de combater a pobreza diferentes das políticas sociais e subsídios aos quais parte da direita ideológica se opõe. Há uma sólida agenda conservadora que pode ser avançada sobre a questão da estabilidade das famílias. O fortalecimento das normas de controlo social, obtido através do apoio a organizações culturais, de moradores e de jovens a nível local, favorecendo o estabelecimento de relações entre associações representativas de grupos étnicos e religiosos e a criação de um ambiente de confiança mútua entre as polícias e as populações não tem por que ser intrinsecamente um desígnio "de esquerda". Note-se, de resto, como é triplamente míope a condescendência com que Pacheco Pereira trata o papel da Igreja Católica e as declarações de D. Manuel Martins e D. Jorge Urtiga sobre o caso da Bela Vista. Primeiro, porque poucas instituições conhecem tão bem no terreno as realidades dos "bairros difíceis" como as paróquias e os agentes pastorais. Segundo, porque o seu papel no fortalecimento das normas de controlo social junto das comunidades locais pode ser fulcral, até em ligação a outras confissões religiosas. E, finalmente, é míope em termos estritamente políticos: ao enfatizar exclusivamente o papel securitário do Estado nestas matérias - "garantir a nossa segurança, sem mas, nem ambiguidades" -, Pacheco Pereira deixa aos seus adversários políticos o benefício de serem eles a proporem as soluções ao mesmo tempo mais prometedoras e mais rentáveis do ponto de vista político-eleitoral, tais como os "contratos locais de segurança" que o actual Governo vai celebrando pelo país com várias autarquias*. É bom que haja oferta partidária para todos os nichos de opinião sobre esta questão, inclusivamente as daqueles que acham que tudo se resolverá exclusivamente com penas mais duras e mais polícias. Mas essa é uma função que o CDS-PP já cumpre muitíssimo bem.

Finalmente, num país a sério, o repetido recurso a falácias argumentativas sobre as questões da "responsabilidade individual" já teria sido de tal modo sancionado pública e intelectualmente que certamente as ouviríamos com menos frequência. Já não ouviríamos dizer, por exemplo, que procurar explicar as causas do terrorismo significa defender os terroristas. Que conhecer e compreender as causas do insucesso escolar significa defender o "facilitismo" nas escolas ou impedir o reconhecimento do mérito individual. Que discutir as causas do crime e procurar agir sobre elas impede de alguma forma que se defenda a vigilância das zonas perigosas ou a repressão da criminalidade. Que constatar a baixíssima relação custo/benefício que a investigação sobre o tema mostra entre o investimento em (caras) medidas securitárias e a redução do crime significa abandonar o policiamento ou reduzir as penas. Ou que constatar que um fenómeno qualquer tem causas sociais, políticas e económicas significa desculpar comportamentos individuais inaceitáveis. Mas numa coisa Pacheco Pereira tem razão: deste e doutros pontos de vista, Portugal não é mesmo um país a sério. Se fosse, eu não teria de ter escrito este artigo.

*Para que fique tudo transparente, o CESOP/UCP, que dirijo, faz parte do contrato local de segurança de Loures, estando encarregado de medir os seus efeitos nas taxas de vitimação e no sentimento de segurança das populações.

O artigo tinha um erro no original - o sentido de duas frases no parágrafo final - que corrigi aqui.

terça-feira, maio 05, 2009

Ainda Lisboa e os automóveis

Há quinze dias, escrevi aqui sobre os efeitos positivos conhecidos da introdução de uma "taxa de congestão" sobre os veículos que entram no centro das cidades de Londres e Estocolmo. Critiquei alguns dos argumentos normalmente utilizados para afastar a possibilidade da aplicação de um sistema congénere na cidade de Lisboa. Recebi algumas críticas ao que escrevi, que me pareceram suficientemente interessantes para voltar a escrever sobre o assunto.

Um primeiro tipo de críticas invocou "direitos". Quem mora fora de Lisboa - ou de uma qualquer área que dentro do concelho se defina como "centro" - tem tanto "direito à cidade" como os que lá moram. Há aqui três falácias. A primeira consiste em supor que a introdução de taxas para entrar em Lisboa de automóvel retira "direito à cidade", como se não houvesse outras formas de entrar e circular em Lisboa e como se o excesso de trânsito não fosse, ele próprio, atentatório do "direito à cidade". A segunda consiste em supor que a faculdade de circular de automóvel por onde muito bem se entenda é um "direito" ilimitado. O problema é que, mesmo que fosse um "direito", não há cidade nenhuma no mundo - à excepção talvez de Mogadíscio e outras cidades de países onde a existência de um estado é duvidosa - onde esse direito seja ilimitado. Território e estradas são bens comuns, cuja utilização o Estado e as autarquias têm a obrigação de regular. A terceira falácia consiste em supor que a introdução de uma taxa de congestão à entrada da cidade exclui a imposição de custos para a circulação dos residentes. Não exclui. Tecnicamente, a solução pode tornar-se mais complicada, mas pode ser simplificada se os residentes pagarem mais do que pagam hoje por lugares de estacionamento ao pé de sua casa ou, genericamente, num imposto municipal sobre veículos. Mas neste capítulo da "igualdade de direitos" - a terminologia é inadequada, mas enfim - entre residentes e não residentes, há também três coisas que importa ter em conta. Primeiro, a utilização do carro na cidade tem externalidades negativas que incidem desproporcionalmente sobre os residentes em comparação com os não residentes, pelo que o custo tem sempre de ser superior para os segundos. Segundo, este diferencial pode ser manipulado e, eventualmente, aumentado, se se quiser usá-lo para dar mais incentivos para a fixação no centro. Terceiro, e mais importante, toda esta discussão sobre "igualdade de direitos" ignora completamente os direitos daqueles que, fora ou dentro da cidade, não circulam de automóvel.

Isto leva-nos para o segundo tipo de críticas: as que invocam preocupações de equidade social. Afinal, portagens à entrada da cidade incidiriam sobre os "pobres" residentes nas áreas suburbanas, com o único efeito de melhorarem a qualidade de vida dos "ricos" residentes. Deixemos de lado a validade de uma análise que só vê "pobres" na linha do Estoril e "ricos" na Ajuda, Marvila ou S. Jorge de Arroios. Mais importante é notar o seguinte. Primeiro, os mais "pobres" não vêm de carro para Lisboa nem andam de carro em Lisboa. Vêm e circulam de transportes públicos, e têm depois, ainda por cima, de suportar os efeitos do uso do automóvel por outros, entre eles a drástica degradação da qualidade de serviço dos transportes públicos causada pelo excesso de tráfego de automóveis particulares. São eles os principais prejudicados pela actual situação. Para além disso, como recorda Nicolás Stier, professor na Columbia University, a propósito da possível introdução de um sistema semelhante em Manhattan, as - importantes - preocupações com a equidade do sistema podem ser concretizadas de diversas formas, tais como, por exemplo, usando as receitas para melhorar os transportes públicos nas áreas mal servidas ou tornando o montante pago em taxas de circulação parcialmente dedutível para famílias com mais baixos rendimentos. O ponto central sobre a questão da equidade é, afinal, o seguinte: como assinalam Jonas Eliasson e Lars-Göran Mattsson num estudo sobre a taxa de congestão de Estocolmo e, precisamente, os seus efeitos diferenciais sobre grupos sociais concretos, as consequências redistributivas de um sistema deste género dependem da forma como ele é desenhado e, crucialmente, da forma como as suas receitas são aplicadas. No caso de Estocolmo, os autores concluem que a taxa acabou por ter efeitos progressivos (e não regressivos) e os custos incidiram desproporcionalmente sobre os residentes do centro com mais elevados rendimentos. Dependendo do desenho do sistema, pode não ser assim, mas também não tem de ser o contrário.

O último tipo de críticas baseia-se na ideia de que um sistema que tome em conta todos estes aspectos é uma impossibilidade prática em relação à qual devemos ser profundamente cépticos. Os críticos não acreditam que as receitas de uma taxa de congestão viessem a ser de facto aplicadas na melhoria dos transportes públicos de acesso à cidade. "As portagens que já são pagas para entrar em Lisboa nunca, até hoje, foram utilizadas para reforçar o sistema público de transportes", informa-nos João Pinto e Castro no blogue Jugular. A consequência seria que os residentes dos subúrbios teriam mais dificuldades a chegar a Lisboa. Terrenos e casas em Lisboa ficariam mais caros, levando a que pessoas e empresas procurassem outros concelhos para se localizarem. Em alternativa, João Pinto e Castro propõe outra via, "a única que nos levará a algum sítio onde vale a pena ir: a constituição da região político-administrativa de Lisboa".

A resposta é típica daquilo a que, um dia, outro economista chamou a "retórica da reacção": um pessimismo supostamente "realista", que aponta efeitos nulos ou mesmo perversos a uma proposta de mudança, e que avança, em alternativa, um chavão genérico. Mas se é "pessimismo realista" que queremos, aí vai: enquanto não houver barreiras significativas à entrada de veículos em Lisboa, as câmaras dos concelhos limítrofes e o Governo podem ficar descansados. Podem continuar a acrescentar faixas de rodagem às estradas que acedem a Lisboa, sem que as pessoas que lá vivem sintam real necessidade de exigir mais e melhores transportes públicos, especialmente dos locais onde vivem para os terminais ferroviários e fluviais. Podem dar prioridade a mais umas rotundas com fontes no meio, em vez de construírem parques de estacionamento junto a esses terminais. Podem continuar a dizer que "não há meios". Que o "verdadeiro problema" é outro (é sempre outro). E podem fazer reuniões, seminários e debates sobre esse "verdadeiro problema". Por exemplo, a "constituição da região político-administrativa de Lisboa". Boa sorte com isso, então.