terça-feira, setembro 26, 2006

Lula e o futuro

Nos seis meses que precederam as eleições presidenciais brasileiras de 2002, o real perdeu 40 por cento do seu valor e o índice de bolsa de São Paulo baixou cerca de 30 por cento. Em Junho desse ano, Alan Greenspan, chefe do banco central americano, avisava que "a causa da crise brasileira é política", não deixando dúvidas sobre a relação entre a situação económica e a liderança de Lula nas sondagens. George Soros avançou a previsão de que o destino do Brasil, caso Lula viesse a ser eleito, seria igual ao da Argentina. Só no The Economist, sempre sensato acima da média, se avisava que Lula não era uma "perspectiva assim tão assustadora" (29 de Junho de 2002). Mas o problema, adiantava-se, é que "os mercados têm o hábito de levar a sua avante mesmo quando estão errados.As previsões de colapso financeiro tendem a auto-realizar-se."

Sabemos hoje que o colapso financeiro previsto por Soros e muitos outros não se realizou. Muito pelo contrário. Chegado ao poder, Lula adoptou o mesmo "financismo" que, no passado, tanto tinha criticado a Fernando Henrique Cardoso, mantendo o controlo da inflação e da despesa como elementos centrais da política macro-económica brasileira. As taxas de juro permaneceram elevadas, o crescimento da despesa foi limitado e as receitas fiscais cresceram. Ao mesmo tempo, Lula conseguia fazer algo em que FCH tinha fracassado: uma reforma do sistema de segurança social, aumentando a idade de reforma e os níveis de contribuição dos funcionários públicos e estabelecendo tectos para as pensões mais altas. O Brasil recuperou a sua credibilidade nos mercados financeiros e a taxa de inflação baixou para menos de 10 por cento. E beneficiando da procura internacional, as exportações e a utilização da capacidade industrial cresceram. Em 2004 e 2005, a taxa de crescimento económico situou-se acima dos quatro por cento.

Uma história de sucesso? Em grande medida, sim. O facto da alternância entre FHC e Lula ter trazido uma fundamental continuidade de políticas macroeconómicas só pode ser visto favoravelmente, especialmente no contexto da América Latina, quase sempre mergulhada num círculo vicioso de alternância entre o neo-liberalismo mais selvagem e o radicalismo de esquerda mais populista. Parte desta continuidade é explicada pelos poderosos constrangimentos que a globalização económica e financeira coloca à margem de manobra dos governos. Mas a transformação de Lula e do PT tem raízes mais fundas. Por um lado, após sucessivas derrotas eleitorais, Lula foi-se apercebendo que o "financismo" de FCH não agradava apenas a uma minoria do eleitorado, mas sim a todos aqueles cujos salários tinham sido quotidianamente devorados pela hiper-inflação. O espaço eleitoral para o aventureirismo nas políticas sociais e económicas era, afinal, reduzido. Por outro lado, foi o próprio PT que se transformou. Como assinala David Samuels, num artigo de 2004 na Comparative Political Studies, a passagem do PT pelo poder local e estadual e a crescente heterogeneidade social da sua base sindical criaram incentivos para que se tornasse cada vez mais pragmático e moderado. Por outras palavras, o PT deixou de ser um "movimento político" que se podia comprazer, enquanto força de oposição, no radicalismo ideológico. Tornou-se um partido, obrigado a mover-se mais nos corredores do poder do que na rua ou nas fábricas.

Contudo, é precisamente aqui que começa o problema. No sistema político brasileiro - com separação entre poderes executivo e legislativo, poderosos governos estaduais, um sistema partidário fragmentado, caciquismo local e autonomia dos deputados em relação aos partidos - mover-se "nos corredores do poder" significa ter que fazer aquilo que todos os partidos de governos sempre fizeram: comprar e vender votos, trocar favores, cargos e posições e ver uma parte significativa das despesas do Estado empregue na cooptação de parceiros de coligação e dos muitos deputados e poderes sub-nacionais cujo apoio é necessário "comprar". Não é fácil saber se o PT terá, nesse domínio, ultrapassado a fronteira da legalidade com maior ou menor entusiasmo que os seus predecessores. Mas há pelo menos duas coisas que são certas. Por um lado, a reputação do PT como "partido limpo", conquistada durante o seu longo período na oposição, foi irremediavelmente perdida. Por outro lado, muitos dos recursos que seria necessário empregar em programas de promoção da saúde, da educação e de melhoria das condições sociais dos mais pobres encontram-se, como sempre, capturados por interesses particularistas.

Lula, contudo, vai conseguindo sobreviver. Quando escrevo este artigo, as mais recentes sondagens publicadas davam-no como vencedor à primeira volta nas eleições do próximo domingo. O "mensalão" não se lhe colou directamente à pele e os benefícios sociais que acabou por conseguir distribuir directa e indirectamente - o aumento do poder de compra dos salários, a diminuição do desemprego e a "bolsa família" - têm sido, pelos vistos, suficientes para compensar a perda de credibilidade noutros domínios. Veremos o que sucede até ao dia da eleições, agora que um novo escândalo envolve o PT e abala ainda mais a sua reputação.

O problema, contudo, é de mais longo prazo. Os magros benefícios sociais distribuídos pelo governo têm dependido em grande medida de um clima económico internacional favorável. A capacidade de Lula para desviar a responsabilidade pela corrupção para o PT não é ilimitada e, de resto, acabará sempre por minar o apoio legislativo de que precisa para avançar com mais reformas estruturais. Há muitos países - como o nosso - em que o discurso recorrente acerca da reforma das instituições políticas parece ocioso, um elemento de retórica política com o qual se pretende desviar a atenção do fundamental. No Brasil, contudo, nada é tão urgente e imperativo como reformar um sistema eleitoral e de governo cujo funcionamento é um convite à corrupção, ao clientelismo e à irracionalidade na alocação dos recursos. Sem ela, as profecias de colapso podem vir a pecar apenas por atraso.

terça-feira, setembro 12, 2006

A ameaça terrorista, cinco anos depois

Há dias, Vasco Pulido Valente escrevia no PÚBLICO que, "apesar do 11 de Setembro e de tudo o que a seguir aconteceu, o Ocidente não consegue levar a sério a ameaça do islamismo como levou a sério a do comunismo". Nem de propósito, uma sondagem do Pew Research Center for the People and the Press revelada anteontem mostrava que, de facto, a maioria dos americanos continua a achar que o 11 de Setembro marcou o início de um conflito com um "grupo radical", mas não com o islão. A pergunta que se segue é "porquê?". Por que razão a ideia tantas vezes repetida de que estamos perante uma nova guerra mundial entre o "terrorismo islâmico" e a "democracia ocidental" não é vista como credível? Felizmente, os próprios termos em que a comparação inicial é feita - com a guerra fria - ajudam a dar a resposta: a ameaça que o terrorismo islâmico coloca à sobrevivência das democracias ocidentais é incomensuravelmente menor do que aquela que alguma vez foi colocada pelo comunismo.

Durante várias décadas, o inimigo soviético comandou, directa ou indirectamente, os aparelhos de coerção de mais de uma dezena de estados, os destinos de centenas de milhões de pessoas e armas capazes de destruir o planeta em poucas horas. Hoje, apesar de haver regimes que persistem no apoio tácito a organizações terroristas - o Irão e, talvez, a Síria -, não existe qualquer actor estatal que coloque a plenitude dos seus recursos políticos, económicos e militares ao serviço do terrorismo islâmico. Aliás, foi precisamente porque pôs fim a essa situação que a invasão do Afeganistão foi tão crucial e, ao mesmo tempo, quase universalmente apoiada. E foi ela que, de forma mais decisiva, permitiu que a Al-Qaeda tenha sido substancialmente enfraquecida, quer devido à captura e eliminação de muitos dos seus líderes e agentes quer através do desmantelamento das suas redes de financiamento, recrutamento e comunicação (relatório ao Congresso Norte-Americano, Julho de 2006, .pdf)

Ninguém o diria olhando apenas para o conteúdo habitual dos meios de comunicação ocidentais, mas o certo é que, desde 2002, quer a incidência de ataques terroristas quer o número de vítimas deles decorrentes têm vindo a diminuir, como se pode verificar na base de dados que a Rand Corporation mantém sobre o tema. Há, claro, uma excepção: o Iraque, onde se deu um em cada três dos ataques terroristas em 2005. Mas este caso ilustra bem a confusão que decorre de misturar a Al-Qaeda com outras organizações. Aquilo que sempre distinguiu a primeira foi o singular maximalismo dos seus objectivos: mudança de regimes e expulsão dos Estados Unidos do Médio Oriente; destruição de Israel; controle social das populações; e combate aos valores e instituições da democracia ocidental. Em comparação, a maior parte das restantes organizações terroristas têm objectivos políticos muito mais limitados, adoptando e descartando fundamentos religiosos com espantosa facilidade e usando - isso sim - o mesmo abominável método de luta política. Empacotá-las todas numa mesma definição do inimigo ("o terrorismo islâmico") e atribuir-lhes a todas o mesmo objectivo ("a destruição do Ocidente") até pode ser um dispositivo retórico útil nas mãos dos actores políticos, mas não deixa de constituir um erro de análise.

Mas há mais. Também do ponto de vista ideológico, o terrorismo islâmico é um inimigo muito menos poderoso do que o comunismo alguma vez terá sido. No Ocidente - donde, de resto, tinham sido política e intelectualmente originários - os ideais de mudança revolucionária da sociedade, da economia centralizada e planificada e da "ditadura do proletariado" disputaram durante décadas o estatuto de alternativa legítima ao reformismo político, à economia de mercado e à democracia liberal. Nada de comparável sucede com o terrorismo islâmico. É certo que, nos últimos anos, os Estados Unidos parecem não ter conseguido preservar o capital de legitimidade e superioridade moral que tinham acumulado durante o século XX e transportado ainda com sucesso para a invasão do Afeganistão. Este soft power, cujo papel na vitória sobre a União Soviética não foi despiciendo, encontra-se hoje parcialmente perdido, como comprovam as sucessivas sondagens onde os Estados Unidos aparecem vistos, no Ocidente e fora dele, como uma das principais ameaças à estabilidade global. Mas os observadores que vejam nestes resultados uma tendência de vitória ideológica do terrorismo islâmico estão completamente equivocados: esses estudos são frequentemente os mesmos que mostram como a dimensão política do fundamentalismo islâmico e o terrorismo como instrumento de luta política são, cá como lá, ideias universalmente rejeitadas.

Inquéritos académicos sucessivos, como o World Values Survey(.pdf) têm mostrado que os cidadãos dos países maioritariamente muçulmanos não são significativamente diferentes dos das democracias ocidentais no que respeita às suas opiniões em relação à superioridade da democracia como regime político e à rejeição do autoritarismo. Dois estudos de opinião conduzidos em 2005 e 2006 pelo Pew Global Attitudes Project junto de muçulmanos em dez países mostram que um número maioritário e crescente dos inquiridos declara que o terrorismo é "sempre injustificado". Esta opinião é absolutamente esmagadora quer em países como a Indonésia, a Turquia e o Paquistão quer entre os muçulmanos residentes em países ocidentais, e tem expressão já maioritária em países onde - como a Jordânia ou o Egipto - o terrorismo islâmico ainda poderia aparecer com algum verniz de legitimação enquanto instrumento de uma "luta de libertação".

Não me passa pela cabeça negar a existência de uma ameaça real, o potencial de desestabilização que o fundamentalismo comporta para algumas regiões do mundo, a natureza abominável do terrorismo ou o sofrimento causado às suas vítimas. Mas o inverso - a sobrestimação da ameaça - também não serve os interesses da democracia ou daquilo que os mais grandiloquentes gostam de chamar a "civilização ocidental". Por um lado, ela tem ajudado aqueles que - em várias ditaduras agora aliadas do Ocidente mas também, desgraçadamente, nos Estados Unidos - desejam limitar as liberdades individuais muito para além do que seria inevitável em face de uma ameaça desta natureza. Por outro lado, ao aumentar o medo das populações, ela constrange as democracias a responderem ao terrorismo de uma de duas formas: a cedência ou a retaliação indiscriminada e desproporcionada. Ambas servem os interesses dos terroristas.